quinta-feira, 30 de junho de 2011

Confirmada a desonestidade política

Passos Coelho anunciou, no Parlamento, a razão pela qual votou, há três meses, a revogação do actual modelo de (pseudo) avaliação, e agora, no poder, já não o revoga. A razão apresentada foi esta: «Em Março, podia-se revogar porque, nessa altura, o Governo ficava com seis meses para preparar um novo modelo de avaliação, agora só temos três meses, o que é tempo insuficiente.»
Lamentavelmente, Passos Coelho estreou-se na Assembleia da República seguindo a metodologia de Sócrates: a metodologia da desonestidade política. Confesso ter chegado a pensar que, independentemente das divergências de fundo que tenho relativamente a muitas das matérias do programa do Governo, passaríamos a ter, com Passos Coelho, uma postura ética diferente daquela que tivemos nos últimos seis anos. Vejo que me enganei. Passos Coelho revelou, como Sócrates, não ter pruridos em faltar à palavra e em falsear a realidade.
Passos Coelho foi desonesto politicamente porque:

  • Se considerava que, depois das eleições, já não podia revogar o actual modelo de (pseudo) avaliação, tinha a obrigação ética de o ter afirmado, com clareza, durante a campanha eleitoral. Não o fez. Omitiu, escondeu, enganou. Isto tem um nome: desonestidade política.
  • Em 20 de Novembro de 2009, há pouco mais de ano e meio, o PSD, através de uma Resolução que fez aprovar na Assembleia da República, deu 30 dias ao Governo, do PS, para negociar com os sindicatos um novo modelo de avaliação dos professores. Repito: deu 30 dias. Agora, considera que 3 meses são insuficientes. Isto tem um nome: desonestidade política.
  • É falso que o Governo tivesse apenas três meses. A questão dos três meses nem se coloca. O primeiro-ministro sabe, toda a gente sabe, que, desde que se iniciou o «circo» da (pseudo) avaliação dos professores, têm existido longos meses em que o processo tem estado parado (quer devido a alterações sofridas no modelo, quer por «mudança» de modelo): foi o que aconteceu em 2008 e foi o que aconteceu em 2010. Nada disso impediu que o processo de (pseudo) avaliação não fosse (lamentavelmente) realizado. O primeiro-ministro sabe que esta é a verdade, mas faz de conta que não sabe. Isto é desonestidade política.
  • Passos Coelho sabe que legalmente não existia, como não existe, nenhuma dificuldade, nenhum entrave para que pudesse proceder à revogação do actual modelo, e para que pudesse, provisoriamente, até à entrada em vigor do novo modelo de avaliação, adoptar os procedimentos previstos no Despacho nº 4913-B/2010, de 18 de Março, no âmbito da apreciação intercalar, até ao final de Agosto de 2011.  Ou seja, podia fazer precisamente aquilo que o PSD há três meses aprovou no Parlamento — recorde-se que a inconstitucionalidade decretada não foi relativa ao conteúdo da revogação, mas relativa à violação do princípio da separação e interdependência dos órgãos de soberania, que impede que o Parlamento revogue decretos-regulamentares, que são da competência do Governo. Agora seria o próprio Governo a proceder à revogação e, consequentemente, o problema da inconstitucionalidade já não teria lugar. Passos Coelho sabe isto, mas faz de conta que não sabe. Isto é, mais uma vez, desonestidade política.
Lamentavelmente, Passos Coelho não passou de um Sócrates II.

Quinta da Música - Hildegard von Bingen

quarta-feira, 29 de junho de 2011

Dois pontos de vista sobre a não revogação

O desenlace que se adivinha relativamente ao actual modelo de (pseudo) avaliação do desempenho docente (ou seja, o Governo não revogar a legislação que o sustenta, e permitir que ele chegue ao fim, em Dezembro) é surpreendente?
É e não é. Depende do ponto de vista.
Se partirmos do ponto de vista da seriedade política, é surpreendente. Surpreendente e sórdido. Pode-se procurar virar o problema de pernas para o ar, de pernas para baixo ou para o lado, que não se encontra — dentro da seriedade política — uma razão que possa justificar a mudança radical de posição do PSD. O que era verdade há três meses não pode ser mentira hoje. A indistinção entre verdade e mentira poderá ser normal no domínio dos futebóis, mas não pode ser normal no domínio da política. Fazer política não é dar uns pontapés na bola, fazer política interfere com a vida de milhões de pessoas, por isso, o seu exercício não pode ser leviano nem pouco sério.
Ora a justificação (que se lê e ouve) de que agora não é adequado revogar o actual modelo de (pseudo) avaliação — porque o processo está no fim, e a sua revogação seria faltar ao respeito aos professores, já que implicaria anular o trabalho realizado — é, justamente, um exemplo de leviandade e de falta de seriedade, na política.
Vejamos.
1. O processo não está no fim: falta meio ano para ser concluído — só em Dezembro se encerra. (Aliás, em muitas escolas, o tempo que falta é superior ao tempo que até agora foi efectivamente dedicado ao processo pseudo-avaliativo). E o que falta para concluir o processo não é pouco importante, pelo contrário: será neste período que se  formalizará a gigantesca mentira, a incomensurável farsa, a que os professores têm estado sujeitos. Na realidade, do ponto de vista formal, o pior ainda está para vir.
Até aqui, viveu-se no faz-de-conta que se é avaliador e que se é avaliado — o que, só por si, já é grave e deontologicamente indigno; mas, a partir de agora, vai ter lugar a formalização do faz-de-conta, através da atribuição de classificações. Isto é, a encenação e a mentira avaliativas vão ser traduzidas em números, vão ser quantificadas e formalizadas, e, deste modo, a encenação e a mentira passarão a ter consequências na vida profissional de milhares de professores.
Não revogar é ser conivente e é validar esta encenação e esta mentira avaliativas.

2. É uma encenação e uma mentira avaliativas por duas razões de todos conhecidas:
i) Porque o modelo é tecnicamente incompetente e inexequível, numa palavra, ou, melhor, nas palavras de Passo Coelho: é um processo monstruoso e kafkiano.
Não revogar é, pois, ser conivente e é validar um processo monstruoso e kafkiano;
ii) Porque, mesmo que o processo não fosse incompetente (e mesmo que não fosse um processo kafkiano), ele seria sempre (e é) uma gigantesca farsa: mais de 90% dos professores que exercem a função de avaliadores não tiveram nem têm qualquer formação ou preparação para o exercício dessa função. E a maioria dos professores que está a cumprir esta função fá-lo por uma única razão: porque foi feita a ameaça de processos disciplinares.
Não revogar é validar esta farsa avaliativa e é ser conivente com esta indignidade profissional.

3. Dias antes das eleições, o PSD votou a revogação do processo (pseudo) avaliativo. Com esse acto e com os discursos então proferidos, expressou com absoluta clareza a sua total oposição a esse processo. Durante a campanha eleitoral não anunciou que tivesse mudado de posição. Pelo contrário, reafirmou publicamente essas posições, quer pela palavra escrita, quer pela palavra oral: foi através da palavra escrita que o líder do PSD classificou a avaliação do desempenho docente como um «caso revoltante» (in prefácio de O Ensino Passado a Limpo, de Santana Castilho, p. 9); foi através da palavra oral que o líder do PSD, quer na apresentação pública desse livro, quer em entrevistas, quer em discursos de campanha eleitoral, repetidamente chamou de kafkiana essa avaliação.
Deste modo, não é sério que, após contados os votos, se proceda de forma inversa à que anteriormente se anunciou. Um homem de palavra, como Passos Coelho diz ser, não se comporta assim. Assim comporta-se Sócrates.
Não revogar é, pois, faltar à palavra.

Conclusão.
Se nos colocarmos do ponto de vista da seriedade política, a não revogação do modelo (pseudo) avaliativo é surpreendente. Repito: surpreendente e sórdida.
Se nos colocarmos do ponto de vista da falta de coragem política, da falta de palavra, da falta de consistência na fundamentação das ideias, do ponto de vista do oportunismo e da trapaça política, a não revogação não é surpreendente nem é sórdida. É normal.

Trechos - Tony Judt

«No palco da política económica, os cidadãos das democracias actuais aprenderam a ser demasiado modestos. Fomos avisados de que isso são assuntos para especialistas: que a economia e as suas implicações políticas estão muito para além do entendimento do homem ou mulher comuns — um ponto de vista reforçado pela linguagem cada vez mais obscura e matemática da disciplina.
É improvável que muitos 'leigos' questionem nessas matérias o ministro das Finanças ou os seus conselheiros especialistas. Se o fizessem, dir-lhes-iam — à maneira de um padre medieval a aconselhar o seu rebanho — que isso são questões com as quais não precisam de se preocupar. A liturgia deve ser entoada numa língua misteriosa, só acessível aos iniciados. Para todos os demais, basta a fé.
Mas a fé não tem bastado. Os imperadores da política económica [...] vão nus. Temos de reaprender como criticar os que nos governam. Mas para o fazer com credibilidade temos de libertar-nos do círculo de conformidade no qual estamos [...] aprisionados.»
Tony Judt, Um Tratado Sobre os Nossos Actuais Descontentamentos, pp. 155-156.

Às quartas

MINHA PRIMA ÁGUEDA

     Minha madrinha convidava minha prima Águeda
para passar o dia em nossa casa;
minha prima chegava
com um contraditório
prestígio de goma e de temível
luto cerimonioso.

     Águeda aparecia, ressoante
de goma, e seus olhos
verdes e faces rubicundas
protegiam-me contra o pavoroso
luto...
          Eu era menino
e conhecia o o por ser redondo,
e Águeda que bisbilhotava
mansa e perseverante na sonora
galeria, causava-me
calafrios ignotos...
(Creio até dever-lhe o meu costume
heroicamente louco de falar sozinho.)

     À hora de almoço, na penumbra
quieta da sala,
ia-me encantando um quebradiço
soar intermitente de loiça
e o timbre cariciante
da voz de minha prima.
         Águeda era
(luto, pupilas verdes e faces
rubicundas) um cesto policromo
de uvas e maçãs
no ébano de um armário antigo.

Ramón López Velarde

(Trad.: José Bento)

terça-feira, 28 de junho de 2011

Da (outrora) urgentíssima revogação à intemporal reformulação

Aos professores tem sido exigido tudo. 
Depois de terem sido obrigados a suportar durante quatro anos uma ministra incompetente, durante dois anos uma ministra irresponsável, durante seis anos um primeiro-ministro desnorteado, durante vários anos episódios parlamentares de promessas de suspensão do modelo de (pseudo) avaliação do desempenho, seguidos de episódios de suspensão da promessa de suspensão, e, posteriormente, de episódios de suspensão da suspensão da suspensão, que culminaram numa revogação sem promulgação, os professores foram hoje informados, en passant, pelo ministro da Educação, de que teriam de aguardar pela discussão do programa do Governo (a ocorrer daqui a dois dias), para poderem saber finalmente o que é que o Governo pretende fazer com o «processo kafkiano» (Passos Coelho dixit) em curso, nas escolas.
Isto é, os dezoito governadores civis tiveram de ser imediatamente exonerados, porque a situação deles não podia ser mais adiada, todavia, os 150 mil professores podem esperar, porque a situação em que se encontram (a suportar o tal «processo kafkiano») não obriga a pressa para ser resolvida.
Há três meses revogou-se à pressa, agora não há pressa em revogar.

Entretanto, no momento em que escrevia este post, era divulgado o Programa do Governo. Fui consultá-lo. Acerca do actual modelo de (pseudo) avaliação do desempenho, o Programa diz o seguinte: «Reformular o modelo de avaliação do desempenho dos docentes de forma a desburocratizar o processo, promovendo um regime exigente, rigoroso, autónomo e de responsabilidade, sem que estes princípios conduzam a cargas desmedidas de procedimentos burocráticos e administrativos, e ponderando os resultados de outros modelos de avaliação, nomeadamente os já obtidos no modelo de avaliação em vigor no ensino particular e cooperativo.» No Programa, nada mais é dito sobre esta matéria.
Temos, pois, que da urgentíssima revogação de há três meses passou-se agora para uma intemporal «reformulação». Não sabemos quando nem como essa reformulação vai ser realizada e não sabemos o que vai ser feito relativamente ao (vergonhoso) processo em curso. Isto é, o que é verdadeiramente importante saber continuamos sem saber. Ficamos apenas a conhecer um discurso redondo que, como todos os discursos redondos, pouco ou nada vale. Poder-se-ia dizer que o quando, o como e o que vai ser feito são coisas do domínio do pormenor, não cabendo, por isso, num programa de Governo. Poder-se-ia dizer, mas, na realidade, não se pode. Não se pode porque, naquilo em que quer ser pormenorizado, o programa do Governo é pormenorizado. Dois exemplos:
— «Desenvolver um sistema para o processo digital do aluno, para maior eficácia da gestão, nomeadamente nos processos de matrícula e de transferência de alunos»;
— «Criar condições para a implementação de bolsas de empréstimo de manuais escolares.»
Por conseguinte, o Governo considera que os processos de matrícula e de transferência dos alunos e os empréstimos de manuais escolares são assuntos dignos de pormenorização, mas aquilo que vai ser feito  relativamente ao processo em vigor é um assunto que pode ficar no domínio da omissão.

Na sexta-feira, no Parlamento, o Governo será certamente obrigado a assumir o que tem andado a fugir de assumir e, nessa altura, iremos perceber por que razão a urgência de exoneração dos governadores civis não foi acompanhada da urgência de revogação da trapaceira avaliação.

P.S. Para recordar:
(Data: 25 de Março de 2011)

Trechos - Tony Judt

«Mas se somos todos  'democratas', o que nos diferencia agora? O que defendemos? Sabemos o que não queremos: com a experiência amarga do século passado aprendemos que há coisas que os Estados de certeza não devem fazer. Sobrevivemos a uma época de doutrinas que propunham, com uma confiança alarmante, ditar como deviam agir os nossos governantes e recordar aos indivíduos — às vezes pela força — que os detentores de autoridade sabem o que é bom para eles. Não podemos voltar a isso.
Inversamente, e apesar das pretensas lições de 1989, sabemos que o Estado não é todo mau. A única coisa pior que governo a mais é governo a menos: nos Estados falhados, o povo sofre pelo menos tanta violência e injustiça quanto sob um governo autoritário, e a juntar a isso os comboios não chegam a horas. Além do mais, se pensarmos um pouco na questão, conseguimos perceber que o conto moral do século XX de 'socialismo contra liberdade' ou 'comunismo contra capitalismo' é enganador. O capitalismo não é um sistema político; é uma forma de vida económica, compatível na prática com ditaduras de direita (o Chile sob Pinochet), ditaduras de esquerda (a China contemporânea), monarquias sociais-democratas (a Suécia) e repúblicas plutocráticas (os Estados Unidos). Se as economias capitalistas prosperam mais em condições de liberdade talvez seja uma questão mais em aberto do que gostamos de pensar.»
Tony Judt, Um Tratado Sobre os Nossos Actuais Descontentamentos, pp. 141-142.

Bonecos de palavra.


Calvin & Hobbes, por Bill Watterson (trad.: Ana Falcão Bastos).

Para ampliar, clicar na imagem.

segunda-feira, 27 de junho de 2011

Estamos à espera

Formalmente, o Governo reuniu hoje pela primeira vez, e a sua primeira medida foi a de exonerar os governadores civis.
Qual vai ser a segunda medida? Quando vai ser a segunda medida? 
Não descortino, seja qual for o ponto de vista, por que razão é mais urgente para o país exonerar os governadores civis do que terminar com o processo kafkiano (assim denominado por Passos Coelho) da (pseudo) avaliação do desempenho docente, que incompetentemente continua a correr nas escolas. A farsa continua e agora a culpa já não é do aventureirismo ou da irresponsabilidade de Sócrates e de Alçada, agora a permissão do prosseguimento do processo passou a ser da responsabilidade de dois outros nomes: Coelho e Crato, e só desses.
Continuamos, pois, à espera, que o homem que diz ter uma só palavra a cumpra.

Uma fita boa: «Essential Killing - Matar para Viver», de Jerzy Skolimowski

Anotações

PM, com comitiva reduzida, foi acolhido de braços abertos [pelo Conselho Europeu]
Governo quer acelerar saída do PGR
Educação: Expectativas altas para um ministro em estado de graça
Expresso (25/6/11)
. Passos Coelho disse, no final da reunião do Conselho Europeu, que aquele conclave não podia ter corrido melhor a Portugal. É provável, mas, como tudo na vida, depende do ponto de vista. E, nestes assuntos, como em muitos outros, é conveniente recordar esta coisa simples que é a existência de pontos de vista. Caso contrário, distraidamente, podemos aceitar como absoluto aquilo que afinal não passa de relativo.
Ora, do meu ponto de vista, e segundo as notícias que nos chegaram, há duas coisas, pelo menos, que não correram bem.
A primeira: «Portugal está muito reconhecido aos nossos parceiros europeus pela ajuda que nos deram.» Esta frase foi dita, publicamente, por Passos Coelho a Durão Barroso, e, terá sido repetida, privadamente, ao Conselho Europeu. 
Ora, no domínio dos negócios, não vejo que haja lugar a reconhecimentos. Se eu e um banco celebramos um contrato de empréstimo, em que o banco se compromete a emprestar-me determinada quantia em dinheiro e eu me comprometo a devolver-lhe essa quantia, acrescida de uma outra, relativa ao juro que o banco me cobra; eu não tenho de sentir-me reconhecido ao banco, por me emprestar o dinheiro, nem o banco a mim, por eu lhe devolver mais dinheiro do que aquele que me emprestou.
Aquilo que se passou entre Portugal e a troika foi um contrato de empréstimo, foi um negócio, não foi uma  ajuda (v. post «Um novo conceito de ajuda»). Aliás, foi um negócio com condições que nem existem nos contratos com os bancos: no contrato com a troika, o primeiro outorgante (a troika) impôs ao segundo outorgante (Portugal) não apenas um juro elevado, mas também severas regras de comportamento que ele, segundo outorgante (isto é, Portugal, isto é, nós...), tem de cumprir — regras que, é pertinente recordar, podem conduzir o segundo outorgante ao definhamento, ou à paralisia, ou à morte económica.
Adicionalmente, é também pertinente recordar que o juro que nos foi exigido pelo nossos parceiros europeus, aos quais o nosso primeiro-ministro considera devermos estar reconhecidos, é muito superior ao juro que nos foi cobrado pelo FMI.
Os factos mostram, por conseguinte, que não existindo nenhuma razão para anúncios públicos de reconhecimento, esse dito reconhecimento significa, objectivamente, subserviência. O que, enquanto cidadão português, não aceito.
A segunda coisa que, do meu ponto de vista, também não correu bem, foi a tentativa de ostensivo distanciamento de Passos Coelho relativamente à Grécia. Para além de ser indecoroso, enquanto parceiro da mesma União de que a Grécia faz parte, é politicamente desastroso. É desastroso porque parte de dois pressupostos que são dois equívocos:
i) os problemas das dívidas soberanas são problemas que são da exclusiva responsabilidade dos países em crise;
ii) os problemas das dívidas soberanas resolvem-se individualmente.
Todos os economistas estrangeiros (e alguns portugueses) mais credenciados mostram, à saciedade, estes dois erros, mas os responsáveis políticos europeus, incluindo Passos Coelho, não têm coragem de os assumir. O problema é que esta incompetência política tem um preço que é e será pago por milhões de europeus, em dinheiro e em miséria.
Deste modo, Passos Coelho, colocando-se do lado dos equívocos, não só não resolve o problema, como contribui para o seu agravamento. 
Conclusão: do meu ponto de vista, ao contrário do que afirma o nosso primeiro-ministro, o Conselho Europeu não correu bem a Portugal. Nem a Portugal nem à Europa.
. Governo quer acelerar a saída do PGR? Absolutamente de acordo.
. Há expectativas altas relativamente ao novo ministro da Educação? Não sei se são altas ou se são baixas, e confesso que, no ponto em que estamos (depois de seis anos de calamidade educativa e de muita falta de seriedade por parte de alguns que se afirmaram como oposição...), as expectativas dizem-me muito pouco. Estou bastante mais interessado em actos, de preferência, actos que cumpram (rapidamente) promessas feitas e actos que não sejam senso comum aparentemente ilustrado e meio desvairado.

Bonecos de palavra.


Calvin & Hobbes, por Bill Watterson (trad.: Ana Falcão Bastos).

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domingo, 26 de junho de 2011

Pensamentos de domingo

«Quando uma pessoa que conheceste na escola consegue um cargo importante no governo fica-se satisfeito por ele — mas um pouco apreensivo pelo futuro do país.»
Billy Vaughan

«Outra vantagem em ser-se pobre: o médico cura-te mais depressa.»
Frank Hubbard

«Deus não morreu. Está vivo, mas a trabalhar num projecto muito menos ambicioso.»
Grafiti, Londres, 1975
In José Manuel Veiga, Manual para Cínicos.

Ahmad Jamal

sábado, 25 de junho de 2011

Examinemos o Crato — A opinião de Miguel Reis

O colega Miguel Reis enviou-me este texto por e-mail, que agora publico. 
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Examinemos o Crato

O novo Ministro da Educação (e da Ciência e do Ensino Superior) despreza a escola progressista e as “pedagogias modernas”. Diz que um dos principais problemas da escola portuguesa é a falta de exames. O seu discurso fácil deve ser examinado.
Nuno Crato desconfia dos métodos pedagógicos não directivos e prefere a escola da transmissão de conhecimentos[1]. Eriça-se contra o “eduquês” e deleita-se com os modelos de ensino chinês e japonês[2]. Lembra que primeiro é preciso saber os nomes das capitais e as linhas de caminho de ferro[3] e só depois pensar. Sublinha que a política educativa deve servir para seleccionar e não para incluir[4]. Diz ainda que em Portugal não há exames[5] e que isso é uma pena porque a fazer exames aprende-se mais do que a estudar de forma calma e descontraída[6]. Mais: rejeita a “pedagogia romântica e construtivista” até porque “Rousseau não era um homem das luzes”[7]. Diz que nunca ouviu falar da escola de Summerhill[8], talvez porque prefira a autoridade explícita à “motivação e disciplina interior”[9]. Para Crato “desaprende-se com as ciências da educação”[10] e até nem era mal pensado “implodir o Ministério”[11].
O cardápio de disparates é longo. Mas tudo é dito do alto da cátedra, qual D. Quixote a combater inimigos imaginários. A culpa da falência da escola é a sua contaminação pelos métodos activos, pelas pedagogias não directivas, pelo “aprender a aprender”, pelo ensino “centrado no aluno”, ou pela “aprendizagem por competências”. Ignora Crato que as únicas escolas ou grupos de professores que aprofundaram estes métodos – como a Escola da Ponte[12] ou o Movimento Escola Moderna[13] – obtêm excelentes resultados ao nível da preparação dos alunos. Ignora Crato que na maior parte das salas de aula deste país prevalece ainda o ensino centrado no discurso do professor. Ou talvez não ignore. Talvez pretenda apenas agitar um fantasma que poucas vezes saiu dos sótãos para assim legitimar um regresso ao passado e à matriz conservadora. Mas se queremos uma escola de massas ela não pode ser livresca e directiva, pois assim rapidamente deixará de ser para todos. O projecto de Crato é por isso elitista. 
Compreende-se o equívoco. O livro que popularizou Crato e as suas ideias chama-se “O Eduquês em Discurso Directo: Uma Crítica da Pedagogia Romântica e Construtivista". Ora, se Crato se levasse a sério assumiria que a Pedagogia Romântica e Construtivista nunca passou, salvo honrosas excepções, disso mesmo, de discurso directo. “Eduquês” foi a palavra utilizada pela primeira vez por Marçal Grilo para criticar o discurso hermético dos documentos do Ministério da Educação, uma reacção contra o ininteligível. Em boa verdade é até uma crítica justa. A pedagogia, em vez de passar para as salas de aula, passava apenas para os papéis com uma linguagem muitas vezes anti-pedagógica porque nada queria dizer. Naturalmente, um discurso que não tem nenhuma relação com a prática só pode aparecer aos olhos dos professores como um balão cheio de ar, uma bula incompreensível. Por isso este “eduquês”, sem porta por onde entrar nas salas de aula, transformou-se num “burocratês”, numa parafernália de reuniões, de planos de recuperação, de projectos educativos e projectos curriculares de turma, que raramente têm algum significado para o trabalho de alunos e professores, dada a gritante falta de meios humanos e materiais. Com um corpo docente precarizado, e salas a abarrotar, sem equipas multidisciplinares e apoios educativos que dispensem as explicações privadas, seria difícil esperar a “massificação” da tão necessária “pedagogia moderna”. 
O equívoco ajuda a explicar a popularidade de Crato no seio dos professores. É um discurso que agrada tanto aos adeptos da escola antiga como aos que estão fartos do autoritarismo burocrático que tem passado pelo Ministério. Rodrigues e Alçada deixaram-lhe o terreno fértil. Quiseram fazer do sucesso escolar um desejo estatístico, culparam os professores pelos fracos resultados sem lhes dar os meios. Facilitaram a vida ao discurso anti-“facilitismo”. Colaram o sensato objectivo do fim dos chumbos a uma espécie de atribuição de diplomas à ignorância. Souberam queimar uma ideia e abriram caminho aos espinhos de Crato. 
O pior é que o pensamento do Ministro Independente cola às mil maravilhas com o programa neoliberal da troika e do governo: despedimentos em massa de professores, cortes orçamentais draconianos em cada escola, turmas maiores, menos apoios educativos. Talvez nesta altura os docentes que se deixaram encantar pelo discurso da sereia compreendam o desenho por inteiro. Afinal, a escola autoritária e livresca sempre é mais barata do que a tal escola moderna. É uma escola mais fácil porque será mais elitista. 
Ser exigente não é pedir mais exames, porque eliminar, seriar e avaliar é muito fácil. A dificuldade, a exigência, o combate contra o facilitismo, é a construção de uma escola democrática, de qualidade, de massas, e que dá tudo por tudo para que cada aluno/a cresça, aprenda, saiba, seja, critique, pense. Para este trabalho tão trabalhoso já sabemos que não podemos contar com o esforço e o mérito de Nuno Crato. Nesse exame chumbará por falta de comparência.
Miguel Reis


[1] “A nossa escola deveria assegurar a transmissão de conhecimentos e, às vezes, o que se passa é que, com pretextos muito grandiosos, de criar cidadãos críticos, jovens cientistas, escritores activos, eleitores activos, com esses slogans grandiosos, esquece-se aquilo que é fundamental na escola, que é transmitir conhecimentos básicos.”
[2] “Olhamos para a China ou para o Japão e eles não têm estes problemas. Têm um ensino muito tradicional, por vezes até demasiado no meu entender, mas que funciona (…) Vou-lhe contar uma história que se passou comigo nos EUA, onde vivi muitos anos. Quando fui para lá, como estudante estrangeiro de doutoramento, tive um mês de lavagem ao cérebro por pedagogos modernos. Uma das coisas de que eles queriam convencer-nos era: enquanto nos países de onde nós vínhamos o mestre sabia e o aluno aprendia, ali não, ali todos aprendiam. Recordo um aluno chinês, a olhar para um desses lavadores de cérebros, completamente boquiaberto, e apreensivo, perguntando se ali não eram as pessoas que sabiam que ensinavam as outras...”
[4] “A Ministra disse que a política da educação é para inserção, não é para selecção. Concorda? Não. Se queremos todos os carros a andar à mesma velocidade, só temos uma maneira de o fazer: é fazer com que o BMW ande à velocidade do fiat 600, não conseguimos pôr o fiat 600 à velocidade do BMW”
[8] Idem. Para conhecer esta escola consulte o seu site: http://pt.wikipedia.org/wiki/Summerhill_School
[9] “A ideia também de que tudo vem da motivação, de que toda a disciplina deve ser interior, de que a avaliação não é necessária porque o que interessa é o gosto pelo saber, etc.” http://dererummundi.blogspot.com/2009/01/entrevista-de-nuno-crato-ao-notcias.html
[11] "Acho que o Ministério da Educação deveria quase que ser implodido, devia desaparecer, devia-se criar uma coisa muito mais simples, que não tivesse a Educação como pertença mas tivesse a Educação como missão, uma missão reguladora muito genérica e que sobretudo promovesse a avaliação do que se está a passar." http://www.agencia.ecclesia.pt/cgi-bin/noticia.pl?id=84407
[13] http://www.movimentoescolamoderna.pt/


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Comentário:
Este texto de Miguel Reis é crítico e certeiro relativamente a alguns elementos do discurso de Nuno Crato, nomeadamente, afirmações que revelam uma significativa ignorância sobre aspectos elementares do sistema educativo, dos processos de ensino-aprendizagem, da avaliação, etc. — a que eu próprio também já fiz algumas referências no post «Notas breves e introdutórias acerca do novo ministro da Educação»; contudo, é acrítico relativamente às designadas pedagogias «modernas» — das quais o «eduquês/burocratês» emanado do M.E. é filho directo ou indirecto, e que, do meu ponto de vista, tanto mal tem feito à Educação em Portugal. 
Mas, acima de tudo, é um bom (pre)texto para debate, e agradeço ao Miguel Reis a iniciativa de mo ter enviado.

Ao sábado: momento quase filosófico

O problema dos problemas

Um diálogo oriundo da tradição judaica — com um estranho tom zen.

Um estudante dirige-se a um velho rabino e diz-lhe:
— Reflecti muito e tomei uma decisão. Decidi morrer.
— Não é uma solução — diz o rabino.
O jovem vai-se embora e volta uma semana depois, dizendo:
— Tinhas razão. Reflecti muito e decidi viver.
— Não é solução — diz o rabino.
— Mas disseste-me que morrer não era solução! Agora dizes-me que viver não é solução. Então qual é a solução?
— Porque pensas tu que há uma solução? — disse-lhe o rabino.
In Jean-Claude Carrière, Tertúlia de Mentirosos

A ler

«Burocracia e democracia»

sexta-feira, 24 de junho de 2011

Erros a não repetir - 9. E algumas sugestões para o futuro

Tópico 4 - Excesso de dimensões.

O conteúdo do futuro modelo de avaliação depende muito daquilo que se pretender atingir com ele. Se o que verdadeiramente se pretende é um sistema de avaliação sério e reconhecidamente útil, e não uma gigantesca farsa e um repugnante faz-de-conta que se avalia e que se é avaliado, o Ministério da Educação terá de: saber ler a história, a cultura e a realidade docente que temos; ser sensato nos propósitos; saber que, seja o que for que venha a fazer, tem de o fazer em diálogo com as escolas e com os professores.
As reformas não se fazem ignorando a história e a realidade que se pretende reformar. Não se fazem reformas importando acrítica e artificialmente modelos. É preciso conhecer e respeitar a realidade, para ser possível melhorá-la.
Igualmente, quem faz reformas deve ter a sensatez, como princípio moderador da acção. O aventureirismo e a irresponsabilidade não poderão repetir-se. A arrogância e a grosseria também não. É, por isso, um imperativo a prática do diálogo, não como cumprimento de uma formalidade, mas como exercício de uma convicção.
Finalmente, é preciso não repetir erros técnicos e de concepção. Resumo alguns dos erros que tenho vindo a salientar nos posts anteriores.
Do meu ponto de vista, o novo modelo de avaliação:
i) Não pode impor um paradigma de professor. Porque ele não existe, e porque nem sequer é desejável que exista.
ii)  Não pode enunciar como objectivo premiar o mérito. Porque tecnicamente não o consegue fazer de modo sério, fiável e credível, e porque eticamente tem a consequência de degradar a cultura do dever e da responsabilidade.
iii) Não pode desenvolver uma cultura de competitividade entre professores e escolas, nem deve desenvolver uma cultura de pressão dos resultados. Estas culturas nada têm de pedagógico, pelo contrário: têm perversidades óbvias, atentam contra a deontologia docente e não aduzem nenhuma vantagem para qualquer dos intervenientes no processo educativo (alunos e professores).
iv) Não pode ser uma parafernália de dimensões, de domínios, de indicadores e de descritores. É um sofisma afirmar-se que a avaliação se faz através da síntese de um amontado de itens.

Do meu ponto de vista, o modelo de avaliação do desempenho docente deve ter a preocupação de ser simples nos processos e comedido nos objectivos, de modo a que seja reconhecido como exequível e credível. Desta forma, defendo que o novo sistema avaliativo deverá:
1. Visar exclusivamente a melhoria do desempenho dos professores a nível do processo de ensino-aprendizagem.
Deste modo, as quatro dimensões do actual modelo — «Vertente profissional, social e ética»;  «Desenvolvimento do ensino e da aprendizagem»; «Participação na escola e relação com a comunidade educativa»; «Desenvolvimento e formação profissional ao longo da vida» — devem ser reduzidas a uma, aquela que é nuclear e fundamental: «Desenvolvimento do ensino e da aprendizagem».
A dimensão «Vertente profissional, social e ética», para além de estar repleta de indicadores e descritores  grotescos, é reconhecida, pelo próprio modelo, como sendo transversal às outras três dimensões, como tal, a sua existência é inútil.
A dimensão «Participação na escola e relação com a comunidade educativa» (para além de ser uma dimensão que, na realidade, são duas...) não deve constituir uma dimensão da avaliação individual de cada professor. A relação com a comunidade educativa é uma relação da organização-escola com a comunidade. Compete à escola, enquanto organização, o desenvolvimento dessa relação para a qual mobilizará os professores que forem necessários. Não deve ser, por razões óbvias, um objectivo individual. Trata-se de uma política de escola e não de um aglomerado de actos individuais.
Por outro lado, a designada «participação na escola» não é um fim em si mesmo. A participação na escola desenvolve-se sempre em contexto: decorrentemente de exigências do processo de ensino-aprendizagem; decorrentemente do trabalho do grupo disciplinar; decorrentemente do trabalho de director de turma, etc. etc.
A dimensão «Desenvolvimento e formação profissional ao longo da vida» é uma necessidade que o processo de ensino-aprendizagem exige. Da mesma forma que se considera um requisito da docência saber planificar uma aula, também deve ser considerado um requisito realizar formação contínua.

Centrar a avaliação do desempenho exclusivamente no «Desenvolvimento do ensino e da aprendizagem» não só liberta o processo avaliativo de adjacências e de minudências, como o simplifica e focaliza no que é verdadeiramente essencial. E se, na verdade, aquilo que queremos é uma escola melhor, é por aí que temos de começar, é aí que temos de concentrar os nossos esforços.  Posteriormente, se a experiência e a realidade nos revelarem que é possível e desejável alargar o processo avaliativo a outras dimensões, nessa altura, saberemos decidir o que fazer e como fazer. Mas, entretanto, a nossa escola já terá dado um salto qualitativo, porque teremos melhor ensino e melhores aprendizagens. E tê-los-emos sem a balbúrdia e sem a esquizofrenia que tivemos até aqui.

Na próxima semana, tentarei desenvolver os outros dois aspectos — complementares do anterior — que o novo modelo de avaliação, na minha opinião, deverá respeitar:
2. Ter como base o trabalho colaborativo entre docentes do mesmo grupo disciplinar.
3. Investir na cultura do dever, da responsabilidade e da profissionalidade.

Nota: Relembro, a propósito, a pertinência da (re)leitura de um excelente documento, para reflexão e debate, produzido pela APEDE intitulado “Para Uma Alternativa: Uma Outra Escola, Uma Outra Carreira Docente, Uma Outra Avaliação”. Este documento pode ser encontrado no blogue da APEDE, na coluna da direita, no item «Documentos».

O legado

Estado gasta 425 mil euros a mais em carros e frota já vai com 29 mil viaturas (ionline)
Há 1683 veículos do Estado que são usados para fins pessoais.

Comissão de protecção de dados. Presidente recebeu 59 mil euros a mais (ionline)
O Presidente da Comissão Nacional de Protecção de Dados (CNPD) Luís Silveira recebeu, por acumulação indevida de pensões, mais de 59 mil euros entre Abril de 2006 e Dezembro de 2010. O mesmo aconteceu com dois vogais da mesma comissão, Ana Cristina Roque dos Santos, que entre Janeiro de 2006 e Dezembro de 2010, recebeu a mais um montante de 86 mil euros e o vogal Luís Paiva de Andrade, que recebeu mais 38 mil euros do que devia, referentes ao período de Janeiro de 2009 a Dezembro de 2010.

Ministério da Educação usou lei obsoleta para poupar milhões (ionline)
Anterior tutela recorreu a uma lei revogada há dois anos para acabar com compensação financeira dos professores que terminam os contratos.

Exército aumentou despesa em 8,4 milhões com regra ilegal (Sítio do Jornal de Negócios)
A Inspecção-Geral de Finanças acusa o Exército de ter aplicado uma regra que "carece de suporte legal" no reposicionamento de militares.

Em 42 hospitais auditados pela Inspecção-Geral das Actividades de Saúde, apenas 18 aplicam planos de prevenção de riscos de corrupção.

Vale a pena ler


quinta-feira, 23 de junho de 2011

Trechos - Tony Judt

«Numa época em que os jovens são encorajados a explorar ao máximo o seu próprio interesse e promoção, as bases para o altruísmo ou até a boa conduta vão-se toldando. Tirando o regresso à autoridade religiosa — que às vezes corrói, ela também, as instituições seculares — o que poderá dotar uma geração mais nova de um objectivo na vida para além da sua vantagem pessoal a curto prazo? O falecido Albert Hirschman falava da 'experiência libertadora' de uma vida orientada para a acção em favor do público: "o maior bem da acção pública é a sua capacidade de satisfazer necessidades vagamente sentidas de um propósito e sentido mais vastos nas vidas dos homens e mulheres" [...].
Se não respeitarmos os bens públicos; se permitirmos ou encorajarmos a privatização do espaço, recursos e serviços públicos; se apoiarmos entusiasticamente a propensão de uma geração mais nova para cuidar exclusivamente das suas próprias necessidades: então não nos devemos surpreender com a diluição progressiva do empenho cívico nas decisões públicas.»
Tony Judt, Um Tratado Sobre os Nossos Actuais Descontentamentos, pp. 130-131.

A herdança

Ministério da Justiça não sabe o que paga nem a quem paga (Sítio do Público)
O Ministério da Justiça não dispõe de “informação actualizada sobre os trabalhadores a quem processa as remunerações e suplementos e sobre a sua assiduidade” e não realiza “um controlo prévio das folhas de vencimento e comparações frequentes entre os valores pagos e as retenções na fonte”. Quem o diz é a Inspecção-Geral de Finanças (IGF) no seu relatório de actividades de 2010, com base na auditoria às despesas com o pessoal de um organismo da Justiça que não identifica.

De acordo com o Banco de Portugal cerca de 20 mil famílias entraram em incumprimento no primeiro trimestre deste ano. Os devedores particulares com crédito vencido aumentaram de 13,8% em Dezembro para 14,2% em Março, reflexo da actual conjuntura económica e da entrada em vigor de novas medidas de austeridade.

Os estagiários ao abrigo do Programa de Estágios Profissionais na Administração Central vão ser despedidos sem direito a receber subsídios. O objectivo dos contratos assinados entre os recém-licenciados e o estado – com a duração de 1 ano e nos quais os estagiários não tinham direito a férias – era empregar estagiários até aos 35 anos num serviço da Administração Central.
Os estagiários recebiam um salário de 900 euros mensais mas acabaram por ser dispensados sem subsídio de desemprego nem carta de recomendação.

Portugal atrás da Grécia no poder de compra (Sítio do Diário Económico)
O poder de compra dos portugueses está longe da média europeia. Em 2010, o PIB per capita em paridades de poder de compra era de apenas 81% da média da União Europeia, avançam dados preliminares do Eurostat, publicados ontem.

Quinta da Música - Jean-Philippe Rameau

quarta-feira, 22 de junho de 2011

O primeiro exame

Se ainda houver alguma réstia de seriedade na política, o processo de (pseudo) avaliação do desempenho docente, em vigor, terá poucos dias de vida. Isto, repito, se ainda existir alguma réstia de seriedade na política.  
Na verdade, não há uma única razão para que agora não se dê cumprimento cabal à intenção não concluída de revogação da ADD, votada pelo PSD, CDS, PCP, BE e PEV, há menos de três meses, no Parlamento. Se essa revogação não se concretizar a curtíssimo prazo, Passos Coelho e o novo ministro da Educação começarão do pior modo os seus mandatos.
Espero que aquilo que era verdade há dois meses não tenha passado a ser mentira hoje. Espero que aquilo a que adequadamente foi denominado de processo kafkiano não tenha passado a ser uma qualquer coisa de tolerável. Espero que as afirmações de leão de Nuno Crato não passem a ser afirmações de sendeiro de ministro. Espero não termos de concluir que a votação ocorrida no Parlamento afinal não passou de uma gigantesca e repugnante encenação. Seria mau de mais. Seria sórdido.
Está pois a aproximar-se o verdadeiro exame inicial de Passos Coelho e de Nuno Crato. E para quem tanto aprecia, como é o caso do novo ministro, as provas de exame, espero que não reprove, logo na primeira.

Trechos - Tony Judt

«Ao contrário de uma presunção generalizada que se reintroduziu insidiosamente na gíria política [...], pouca gente recebe subsídios com prazer: roupa, calçado, comida, subsídio de habitação ou material escolar. É, muito simplesmente, humilhante. Restaurar o orgulho e a auto-estima dos derrotados da sociedade era um programa central nas reformas sociais que marcaram o progresso do século XX. Hoje, mais uma vez, voltámos-lhes as costas.  
Embora a admiração acrítica pelo modelo anglo-saxónico de "livre iniciativa", "sector privado", "eficácia", "lucro" e "crescimento" se tenha generalizado nos últimos anos, o próprio modelo só foi aplicado com todo o seu rigor autocongratulatório na Irlanda, no Reino Unido e nos EUA. Da Irlanda pouco há a dizer. O chamado "milagre económico" do "valente tigrezinho celta" consistia num regime desregulado de impostos baixos que previsivelmente atraiu investimento privado e capitais voláteis. O inevitável défice da receita pública era compensado com subsídios da injuriadíssima União Europeia, maioritariamente financiada pelas economias supostamente ineptas da "velha Europa", a alemã, francesa e holandesa. Quando a festa de Wall Street se desfez em caos, a bolha irlandesa rebentou junto. Tão cedo não voltará a encher.»
Tony Judt, Um Tratado Sobre os Nossos Actuais Descontentamentos, pp. 40-41.

Às quartas

ECCE HOMO

Sim! Eu sei que me resume:
Insaciado como o lume,
Eu brilho e ardo-me inteiro.
Luz se torna quanto eu faço,
Cinza tudo após que eu passo —
O Fogo sou verdadeiro!

Friedrich Nietzsche
(Trad.: Jorge de Sena)

terça-feira, 21 de junho de 2011

Para além da bancarrota, a herança de Sócrates, que vai sendo descoberta

Os gastos públicos ilegais quase triplicaram em 2010 face a 2009. Tribunal de Contas recusa vistos a contratos de 131 milhões de euros.

O Produto Interno Bruto expresso (PIB) em paridades do poder de compra, em Portugal, estava em 2010 quase 20 por cento abaixo da média dos países da União Europeia, revelou hoje o organismo oficial de estatísticas da União Europeia (Eurostat).

«Actividade económica desacelerou em Abril» (Jornal de Negócios online)
O indicador de actividade económica em Portugal, disponível até Abril, diminuiu ligeiramente, retomando o perfil decrescente observado desde Setembro, refere o último boletim estatístico do INE.

«Administração Interna gasta mais com pessoal» (Diário Económico online)
O Ministério da Administração Interna aumentou os gastos com pessoal. Apesar do corte nos salários decretado para todos os funcionários públicos com vencimentos acima de 1.500 euros, de Janeiro a Maio deste ano a pasta que tutela a polícia e outras forças de segurança gastou mais 1% do que no mesmo período do ano passado.

«Subsídios de desemprego de Junho estão em atraso»  (Diário Económico online)
Ao contrário do que é habitual nesta altura do mês, há desempregados que não receberam ainda a prestação.

Maria de Lurdes Rodrigues, ex-ministra da Educação do primeiro governo de José Sócrates, o advogado e professor universitário João Pedroso, a ex-chefe de gabinete de Maria de Lurdes Rodrigues, Maria José Matos Morgado e João da Silva Batista, ex-secretário-geral do ministério, foram acusados pelo Ministério Público da prática, em co-autoria, do crime de prevaricaçãocometido por titular de cargo político.

Trechos - Tony Judt

«Como se lembrarão os leitores de George Orwell, os indigentes da Inglaterra da Depressão só podiam candidatar-se à assistência aos pobres quando as autoridades determinassem — através de uma inquirição intrusiva — que eles haviam esgotado os seus próprios recursos. Um teste semelhante era aplicado aos desempregados na América dos anos 30. Malcolm X, nas sua memórias, recorda os funcionários que "verificaram" a sua família: "O cheque mensal da Segurança Social era o livre-trânsito deles.  Portavam-se como se lhes pertencêssemos. Por muito que a minha mãe quisesse, não podia mandá-los embora... Não conseguíamos perceber porque é que, estando o Estado disposto a dar-nos pacotes de carne, sacos de batatas e fruta e latas de tudo o que havia, a nossa mãe detestava tão obviamente aceitar. Mais tarde percebi o esforço desesperado que a minha mãe fazia para preservar o seu orgulho, e o nosso. O orgulho era só o que nos restava para preservar, pois em 1934 começámos mesmo a sofrer".»
Tony Judt, Um Tratado Sobre os Nossos Actuais Descontentamentos, p. 40.

Bonecos de palavra.

Calvin & Hobbes, por Bill Watterson (trad.: Ana Falcão Bastos).
Para ampliar, clicar na imagem.

segunda-feira, 20 de junho de 2011

Trechos - Tony Judt

«Hoje voltámos às atitudes dos nosso primeiros antepassados vitorianos. Mais uma vez, só acreditamos em incentivos, "esforço" e "recompensa" — juntamente com castigos pela desadequação. Segundo as explicações de Bill Clinton e Margaret Thatcher, seria tolice disponibilizar universalmente a segurança social a todos os necessitados. Se os trabalhadores não estiverem desesperados, porque hão-de trabalhar? Se o estado pagar para que as pessoas fiquem ociosas, que incentivo elas terão para procurar emprego remunerado? Regredimos ao mundo duro e frio da racionalidade económica do Iluminismo, expresso pela primeira vez, e melhor, em 1732 n' A Fábula das Abelhas, o ensaio de Bernard Mandeville sobre economia política. Na opinião de Mandeville, os trabalhadores "nada têm que os faça mexer além das suas carências, que é prudente aliviar, mas loucura remediar". Tony Blair não o diria melhor.»
Tony Judt, Um Tratado Sobre os Nossos Actuais Descontentamentos, p. 39.

Anotações

Primeiro-minstro indigitado promete não invocar a herança de Sócrates
Público (17/6/11)

Passos teve quatro recusas.. e 'anulou' um convite

Para onde foi o dinheiro? [Perguntam os gregos]

Copiar num teste dá direito a ter 10 [Diz a directora do Centro de Estudos Judiciários]
Expresso (18/6/11)

Passos Coelho afirmou que, a partir de agora, não falará mais do governo anterior. Duvido que o possa fazer: a herança que o governo deposto deixa, e que se conhecerá daqui a algum tempo em toda a sua verdadeira extensão, é tão medonha que será impossível não falar dela. Mas é uma opção de Passos Coelho. Todavia, se ele não falar, haverá quem fale. Pela minha insignificante parte, eu falarei.
Não apagarei da memória a longa noite socratina. Não farei silêncio sobre o que aconteceu nos últimos seis anos. Fazê-lo seria minimizar os crimes políticos que nesse período foram cometidos e absolver os seus autores. As eleições não podem ser o único momento e a única forma de julgamento político.
Para além disso e para que o passado não se repita, temos de recordá-lo e escrutiná-lo continuamente. Para que a irresponsabilidade passada não seja ilibada nem desenvolvida no futuro, temos, no presente, de a convocar sempre que necessário. Para que gente sem qualificação política nem técnica não volte a sentir-se tentada a governar Portugal, temos a obrigação cívica de recorrentemente lembrar as consequências da governação socialista, levada a cabo entre 2005 e 2011. Para que a política não volte a degradar-se até ao nível a que actualmente chegou, teremos sempre de apontar como exemplo a não seguir, seja qual for a circunstância: José Sócrates e quem o rodeou e apoiou. 
Na História, as nódoas não podem ser apagadas.

Os nossos jornais, mesmo os chamados de referência, são cada vez mais um pântano de interesses e de jogos de influência. O actual modo de fazer jornalismo pouco ou nada tem que ver com rigor e  seriedade, outrora tidos como princípios básicos da função de informar. 
O que se passou com a cobertura jornalística do anúncio do novo governo é mais um exemplo disso. Grande parte, senão mesmo a totalidade, dos órgãos de comunicação social quase deu mais importância a quem supostamente terá recusado integrar o Governo do que a quem aceitou integrá-lo. Escreveram-se páginas inteiras e consumiram-se largos minutos televisivos a narrar quem, quando e porquê declinou o convite para ministro. Progressivamente, o nosso jornalismo generalista vai ficando reduzido à fofoca. Chegámos a um ponto em que os próprios jornais Público Expresso, outrora excelentes jornais, agora valem quase exclusivamente pelas suas  revistas culturais (Ípsilon e Actual, respectivamente).

Para onde foi o dinheiro? Perguntam os gregos. E perguntamos nós. Perguntamos à troika que tem governado Portugal (PS, PSD e CDS): para onde foi o dinheiro? Para onde foram os muitos, muitos mil milhões que nos últimos trinta e tal anos chegaram a Portugal, vindos da União Europeia? Para além da construção de auto-estradas, de rotundas e de estádios, para além da organização de exposições e de futeboladas, o dinheiro foi investido em que sector produtivo? Foi na agricultura? Foi nas pescas? Foi na indústria? Onde foi? Perguntamos a Cavaco Silva, a António Guterres, a Durão Barroso, a Santana Lopes, a José Sócrates: para onde foi o dinheiro?

Em Portugal, na escola dos magistrados, copiar dá direito a passagem automática.
Está na altura deste país fechar para obras.

domingo, 19 de junho de 2011

Pensamentos de domingo

«É preciso administrar o desprezo com extrema parcimónia, pois o número de necessitados é muito grande.»
François Chateaubriand

«No dever jamais há outra dificuldade além de cumpri-lo.»
Henri Amiel

«Deus perdoar-me-á: é o seu ofício.»
Heinriche Heine
In Paulo Neves da Silva, Dicionário de Citações.

Andy Sheppard

sábado, 18 de junho de 2011

Ao sábado: momento quase filosófico

O problema da ordem das palavras

Uma história japonesa mostra dois monges que viviam no mesmo mosteiro e ambos gostavam de fumar.
Esta inclinação, a que sucumbiam frequentemente, acarretava-lhes reprovação e censuras.
Foram um dia chamados à presença do mestre, um após outro, separadamente. O primeiro disse ao mestre:
— Posso meditar enquanto fumo?
O mestre rebentou de cólera, respondeu não e mandou rudemente o discípulo embora.
Um pouco mais tarde, este monge encontrou o outro a fumar calmamente.
Espantado, perguntou-lhe:
— Não estiveste com o mestre?
— Sim, estive.
— E ele não te proibiu de fumar?
— Não.
— Mas como é possível? Que lhe perguntaste?
— Perguntei-lhe: posso fumar enquanto medito?
In Jean-Claude Carrière, Tertúlia de Mentirosos

Notas breves e introdutórias acerca do novo ministro da Educação

Notas breves e muito introdutórias acerca do que conheço do pensamento de Nuno Crato, novo ministro da Educação.
As fontes de que parto são: 
— O Eduquês em Discurso Directo, Gradiva, Lisboa, 2006.
— Vídeo da comunicação apresentada no Ciclo de Conferências «Fórum Portugal de Verdade», organizado pelo PSD (2009).
— Entrevistas a diferentes órgãos de comunicação social.

O que tenho registado de positivo no discurso de Nuno Crato:
. Crítica ao denominado «Eduquês».
. Crítica ao dirigismo pedagógico do Ministério da Educação.
. Crítica à política de facilitismo.
. Defesa de uma grande autonomia das escolas e dos professores e consequente responsabilização.
. Defesa de uma sólida preparação científica dos professores.
. Valorização dos conhecimentos/conteúdos e menor enfatização dos processos.
. Defesa do rigor, da disciplina e do esforço.

O que tenho registado de negativo no discurso de Nuno Crato:
. A idolatria pelas provas de exame nacionais.
. A vinculação da avaliação dos professores aos resultados dos exames nacionais dos alunos.

Apesar dos elementos positivos serem, para já, em número superior aos negativos, há alguns aspectos manifestamente preocupantes:
i) Nuno Crato tem revelado falta de consistência e de rigor em algumas das críticas que dirige.  Selecciona correctamente os alvos da crítica, mas a fundamentação que desenvolve é por vezes pobre (em alguns casos, raia o senso comum básico).

ii) A idolatria que Nuno Crato tem pelas provas de exame nacionais parece mostrar ingenuidade e pouco conhecimento acerca das limitações técnicas dessas provas, ou, em alternativa, parece mostrar uma concepção muito redutora do processo de ensino-aprendizagem e da função educativa da escola — concepção que o leva a acreditar que os exames são os mais importantes instrumentos de avaliação. Defendo (tenho-o dito neste blogue) que os exames nacionais são um instrumento de avaliação necessário, mas apenas como forma de aferir algumas performances do sistema educativo e como mecanismo que pode possibilitar alguma correcção das discrepâncias avaliativas que, a nível nacional, inevitavelmente ocorrem — ainda que os próprios exames sejam também transportadores de discrepâncias.
Seja como for, os exames nacionais nunca poderão ser tidos nem apresentados como a panaceia que resolve todos os problemas. As provas de exame nacionais estão muito longe, mas muito longe mesmo de poderem ser assim consideradas.

iii) A vinculação da avaliação dos professores aos resultados dos exames nacionais dos alunos é um enorme dislate. É um dislate, porque tecnicamente é impraticável criar um sistema de avaliação de professores universal dependente dos resultados alcançados pelos alunos; é um dislate, porque é atribuir aos exames uma capacidade avaliativa que os exames não têm nem nunca terão; e é um dislate porque significa ter uma concepção muito primária da função que deve ser atribuída à avaliação do desempenho dos professores.

sexta-feira, 17 de junho de 2011

Erros a não repetir - 8

Tópico 3 - Avaliação, mérito e competitividade (continuação, ainda...)

1. Ao contrário do que recorrentemente se afirma e se pretende fazer crer, de modo a justificar a monstruosidade (pseudo) avaliativa em vigor, o verdadeiro mérito docente é, em regra, reconhecido.
Os professores que são realmente bons professores vêem o seu mérito reconhecido. Em primeiro lugar, esse mérito é reconhecido pelos alunos, que é o mais importante reconhecimento de todos os reconhecimentos possíveis. Em segundo lugar, é reconhecido pelos colegas do grupo disciplinar a que esses professores pertencem. Em terceiro lugar, mais tarde ou mais cedo, acaba por ser reconhecido por quem tem a função de dirigir a escola. Em quarto lugar, é reconhecido por muitos dos restantes colegas. Em quinto lugar, é reconhecido por muitos funcionários. Em sexto lugar, é reconhecido por muitos pais e encarregados de educação.
É, pois, falso afirmar que, sem a actual monstruosidade (pseudo) avaliativa, os professores são todos iguais e que são todos tratados da mesma forma. É, pois, falso afirmar que os bons e os maus professores são vistos de modo idêntico, pela comunidade educativa. E ambos, o bom e o mau professor, sentem e sabem isto muito bem.
Claro que não me refiro a reconhecimento de bomba e fanfarra, ou a reconhecimento medalhado. Esse também pode ocorrer, mas normalmente, a ocorrer, é no final de uma carreira, ou em momento excepcional que espontaneamente (isto é, sem obrigação formal) se pretenda assinalar. Não me refiro a reconhecimento com data marcada (de dois em dois anos), não me refiro a reconhecimento que resulta de uma luta de décimas dirimida em quadrículas de Excel, não me refiro a reconhecimento que resulta de uma absoluta impreparação de quem avalia, não me refiro a este género de «reconhecimento».
Refiro-me ao reconhecimento informal que a comunidade educativa presta a quem dele é merecedor. Refiro-me ao reconhecimento que resulta do desenvolvimento de um trabalho sério, realizado sem atropelos, sem competições e sem encenações. É este reconhecimento que, do ponto de vista da substância das coisas, é importante e é fundamental. É este reconhecimento que constitui a melhor recompensa que um professor pode receber.

2. Estou, pois, a falar de mérito real, não estou a falar de «mérito» folclórico. Estou a falar do mérito que resulta do cumprimento do dever pelo dever e não do cumprimento do dever para momentaneamente dar nas vistas ou para ter o seu momento de aparente brilharete.
Não falo, pois, do «mérito» que resulta de duas aulas encenadas e da realização desenfreada de múltiplas actividades, em que a última tem de ser mais vistosa do que a anterior e mais vistosa do que a do colega do lado e mais vistosa do que todas as actividades de todos os colegas da escola...
Também não falo do «mérito» que resulta de diversas e múltiplas tentativas de convencimento dos avaliadores, por via do queixume, da intriga, da lágrima, do sorriso, e disto, e daquilo e daqueloutro.
Finalmente, não falo do «mérito» que faz com que a escola deixe de ser um espaço de Educação e passa a ser um espaço «circense» onde se compete, onde se concorre, onde se passeiam vãs glórias, onde se acumulam frustrações e injustiças — frustrações e injustiças muito mais graves e profundas do que as frustrações e as injustiças que ocorriam anteriormente a esta febre de aparência avaliativa.

3. Por vezes, chego a pensar se este «circo» avaliativo, para além de ser fruto de inconfessáveis e cegos interesses contabilísticos de cabeças formatas em Excel, não é alimentado também por aquelas e aqueles que, nunca tendo sido objecto de reconhecimento real, viram na actividade «circense» uma saída para a obtenção de «méritos» que, de outro modo, não alcançariam.
É que, paradoxalmente, este (pseudo) mérito, apurado através de uma parafernália de domínios, de indicadores, de descritores, de quantificações que vão às décimas, de evidências, de quadrículas e de tudo o mais que se possa imaginar é muito mais fácil de falsificar do que o mérito reconhecido por via informal. Este não é falseável, este não é encenável. O outro é.
Todos temos conhecimento de inúmeros relatos de aulas totalmente encenadas, em que o professor avaliado antecipadamente combina com os alunos o que eles devem responder, em que momento e de que modo o devem fazer. Todos temos conhecimento de como se copiam/vendem/plagiam relatórios de auto-avaliação. Todos temos conhecimento da absoluta impreparação da esmagadora maioria dos avaliadores. Todos temos conhecimento da batota a que este sistema pseudo avaliativo dá azo, porque o próprio sistema é uma batota.

4. E, substantivamente, ninguém sai a ganhar com isto, pelo contrário: perdem os alunos, que se vêem envolvidos num imbróglio de simulações, e porque passam a partilhar o centro do processo educativo com preocupações de outra natureza; perdem os professores, que se vêem envolvidos em processos maquiavélicos de pseudo avaliações; e perde a Educação, porque os seus principais actores são desviados das suas verdadeiras funções, respectivamente, aprender e ensinar.
É pois necessário desvincular, no próximo modelo, a avaliação do reconhecimento do mérito. É um erro que não deve ser repetido (mas, desgraçadamente, será um erro que, com muita probabilidade, se repetirá — duvido que haja coragem política para colocar um ponto final nesse faz-de-conta).
A avaliação só pode ter um objectivo: contribuir  para melhorar o desempenho docente. É isto que a avaliação do desempenho pode fazer com credibilidade, é isto que deve fazer, é isto que é útil e necessário fazer.
Tudo o resto que se pretenda associar à avaliação constituirá uma excrescência que acabará por minar o modelo, seja ele qual for.