quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Às quartas

ORFEU

Desço aos Infernos sem nenhuma esperança.
O que morreu no coração dos deuses
Nunca mais ressuscita.
Pode animá-lo o fogo da paixão;
Do outro lado da desilusão
O próprio morto já não acredita.

Eurídice não volta a ser na terra
O que foi algum dia.
O seu nome, que o sol alumia,
É o cansaço divino a dormitar.
Toda a corte do céu deixou de amar
Não só os poetas, mas a poesia.

Miguel Torga

O que toda a gente sabe

De repente, o país descobriu que precisamos de trabalhar mais horas. Ou melhor: o governo, o PSD, o CDS e as entidades patronais descobriram que trabalhamos poucas horas e que essa é uma das razões porque estamos em crise e porque não saímos dela. Por conseguinte, considera-se uma evidência e uma necessidade acabar com a tolerância de ponto no Carnaval, acabar com quatro feriados, acabar com as pontes entre fins-de-semana e feriados e, até há pouco tempo, considerava-se também uma evidência e uma necessidade ter de se trabalhar mais meia hora por dia (por artes relativamente mágicas, esta última evidência deixou de o ser e a necessidade também deixou de existir).
Este discurso tem, todavia, um problema: a realidade não o confirma; os factos desmentem-no. É verdade que para o governo, para o PSD, para o CDS e para as entidades patronais este problema da realidade desmentir o discurso não passa de uma irrelevância e não constitui o mínimo óbice ao desejo de impor aos portugueses mais horas de trabalho.
Ao governo, ao PSD, ao CDS e às entidade patronais pouco interessa que todos os números divulgados pelas entidade internacionais revelem que os trabalhadores portugueses são dos que mais trabalham na Europa. Segundo a OCDE, por cá, trabalha-se, em média, 32 horas por semana, enquanto, por exemplo, na Finlândia se trabalha 30 horas, na França, 28,24 horas, e na nossa amiga Alemanha a média semanal de horas de trabalho fica-se pelas modestíssimas 25,18 horas.

Toda a gente sabe isto, mas faz-se de conta que não se sabe. Toda a gente também sabe que o nosso problema não está no número de horas de trabalho, mas na produtividade que essas horas de trabalho originam. E se a produtividade em Portugal é baixa, e sem dúvida que o é, ela deve-se em primeiro lugar à incompetente gestão e organização das empresas. São os gestores e os patrões que temos os primeiros responsáveis pela nossa baixa produtividade. É quem organiza, orienta e controla o trabalho que o faz mal, com os consequentes fracos índices de produção. Mas, ao contrário do mundo do futebol — em que, quando a equipa não produz, se despede o treinador e se preservam os jogadores —, no mundo empresarial, despedem-se os trabalhadores e preservam-se os gestores. E acrescenta-se a isto a acusação de que os trabalhadores portugueses são ociosos, ou malandros, se utilizarmos a linguagem carroceira de muitos patrões.
Portugal está em crise, mas a causa primeira desta crise reside na incompetente elite empresarial que temos, a que se junta a incompetente elite política que tem governado e continua a governar o país e a elite financeira que é co-responsável pela dívida gigantesca contraída.
O problema não está nem nunca esteve nas horas de trabalho, e toda a gente sabe isso.

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terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Bonecos de palavra

Quino, Não Me Grite!, Pub. Dom Quixote

Nacos

«A "Old Farm", como era modestamente conhecida, constituía uma expressão tão encantadora da América que senti a falta do meu querido Blacqueville, com quem poderia ter dissecado o seu significado e voltado a reunir os vários elementos, e que, mesmo quando alegre e despreocupado, teria tido muito mais a oferecer do que o inglês com os seus sarcasmos.
Do indivíduo com quem ia encontrar-me sabia apenas o que Duponceau me havia contado. Mr. Philip Godefroy era de uma família sulista muito dividida quanto à sua própria origem, uma parte convicta de que esta era francesa, a parte oposta convencida de que provinham dos Godfrid suecos. Deste modo, pareciam-me bons representantes de todos os Americanos, na medida em que as suas relações com o passado tinham tão pouca consistência que quase podiam assumir uma forma qualquer e ser descritas como muito bem lhes aprouvesse.»
Peter Carey, Parrot e Olivier na América, Gradiva.

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segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Comentário de segunda: convívios impossíveis

Contou-me um amigo que, no fim-de-semana prolongado de Carnaval (a empresa onde trabalha foi uma das trezentas e vinte e cinco mil quatrocentas e vinte sete que não respeitou a ordem do governo sobre o fim da tolerância de ponto) decidiu partir para o campo e fazer uma greve geral a tudo o que fosse notícia. Nem jornais, nem televisão, nem rádio, nem internet, nem telemóvel. Nada. Apetrechou-se de livros e de música e partiu. E chegou. E instalou-se. E saboreou o que havia para saborear: lambuzou-se de leitura, de música, de lareira, de gastronomia, de natureza, de paisagem, de esplanada, de cabrinhas, de ovelhinhas, de convívio com homens e mulheres que não têm coelho, nem relvas, nem gaspar, nem portas, nem crato no apelido, e só têm a preocupação de fazer bem o seu trabalho e de ser amigos e hospitaleiros.
O meu amigo sentiu-se noutro país. Acreditou que estava noutro país. E desejou não ter de regressar à cidade. E de não ter de regressar às notícias do que dizem e fazem os coelho, os relvas, os gaspar, os portas, os crato e outros do mesmo género (os sousa, as rodrigues, os silva, os martins...)
Por momentos, o meu amigo pensou que era possível viver num Portugal liberto de gente com aqueles apelidos e nomes próprios nossos conhecidos.
Ontem encontrei-o. Já não pensa assim. Decidiu emigrar.

domingo, 26 de fevereiro de 2012

Rubén González & Buena Vista Social Clube

Pensamentos de domingo

«Os que acreditam que o dinheiro faz tudo provavelmente estão dispostos a fazer tudo pelo dinheiro.»
H. Beauchesne

«O dinheiro tem muitas vezes um preço demasiado alto.»
Ralph Emerson

«Descobri finalmente aquilo que distingue o homem dos outros animais: são os problemas de dinheiro.»
Jules Renard
In Paulo Neves da Silva, Dicionário de Citações, Âncora Editora.

sábado, 25 de fevereiro de 2012

Ao sábado: momento quase filosófico

Gohâ, o pateta, comprou um quilo de carne que deu à mulher. Quando voltou à noite, a mulher disse-lhe que o gato tinha roubado e comido o bocado de carne.
Gohã apanhou o gato, pô-lo no prato de uma balança e pesou-o. Viu que o gato pesava exactamente um quilo.
Então, pensativo e um pouco triste, Gohâ perguntou em voz alta (e esta pergunta ainda hoje não teve resposta):
— Se tu és o meu gato, onde está a carne? E se tu és carne, onde está o meu gato?
In Jean-Claude Carrière, Tertúlia de Mentirosos, Teorema

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Novas Oportunidades (5)

Duas notas, antes de tentar abordar, a partir da próxima semana, aspectos concretos da formação que é ministrada nos cursos EFA:
1. É curioso verificar a objectiva incoerência teórica existente no Ministério da Educação relativamente ao número máximo de alunos/formandos por turma/grupo de formação. 
Nos últimos anos tem-se assistido à defesa da tese de que o número de alunos por turma não é um factor relevante no nível de sucesso dos alunos. Deste modo, o discurso oficial afirma não existir problema algum em aumentar o limite de alunos por turma para 28 ou 30 (e mais, em alguns casos). 
Foram e são porta-vozes deste posição: Rodrigues, Alçada e Crato (também aqui existe comunhão de ideias). A fundamentação que apresentam é de uma fragilidade confrangedora, socorrendo-se, não poucas vezes, de comparações intelectualmente desonestas e desprezando irresponsavelmente o que a prática lectiva revela. 
Todavia, esta tese é esquecida logo que outras conveniências e outros interesses o exigem. No Guia de Operacionalização de Cursos de  Educação e Formação de Adultos é afirmado peremptoriamente o seguinte: «Independentemente do nível ou tipologia aplicáveis aos grupos de formação [turmas]estes não podem, em nenhum momento, ultrapassar os 25 formandos» (o sublinhado é meu). Isto é, uma turma constituída por adultos não pode, em nenhum momento, ultrapassar os 25 elementos, contudo, uma turma constituída por crianças ou adolescentes pode, em qualquer momento, ultrapassar os 30 elementos. 
Se nos mantivermos nos estritos limites que uma análise pedagógica/andragógica séria impõe, não se encontram argumentos sólidos que sustentem esta discrepância de critérios.

2. Na Iniciativa Novas Oportunidades (INO), procedeu-se à extinção dos alunos e dos professores. Na INO não há alunos e não há professores. Na INO há formandos e há formadores. O interessante é verificar que os pressupostos que estão na base desta distinção (aluno/formando e, por arrastamento,  professor/formador) são considerados pelos próprios que a utilizam como irrelevantes. São irrelevantes, mas não abdicam delas. É a ideologia a sobrepor-se ao conhecimento. 
Na verdade, as teorias do fundador da andragogia (das quais deriva a distinção entre aluno e formando), Malcolm Knowles, estão ultrapassadas e isso mesmo é reconhecido pelo próprio Ministério da Educação (cf. Helena Luísa Martins Quintas, Educação de Adultos — Vida no Currículo, Currículo na Vida, Agência Nacional para a Qualificação, 2008, pp. 52-53). A dicotomia entre adulto e criança, em situação de aprendizagem, desenvolvida por Knowles está muito longe de corresponder à realidade. Considerar que o adulto tem como traço padrão a capacidade de se auto-dirigir, responsabilizando-se pela sua aprendizagem, considerar que o adulto tem sempre uma motivação para aprender superior à da criança (por razões profissionais, pessoais ou de circunstâncias da vida) e que também tem sempre no seu processo de aprendizagem uma orientação pragmática constitui um conjunto de considerações que se aplica apenas a um número restrito de adultos. A sua generalização é claramente indevida. Por outro lado, a análise que Knowles faz das capacidades cognitivas e das características psicológicas da criança já pode ser considerada arcaica e de reduzida pertinência, em particular depois do que a realidade das novas tecnologias tem revelado sobre essas capacidades e características das crianças.
Contudo, foi este quadro de pressupostos que conduziu Knowles à defesa de metodologias de ensino para adultos e para crianças completamente divergentes (e, em alguns casos, opostas) e que o conduziu à distinção entre aluno e formando e que o conduziu à distinção entre professor e formador, cuja primeira função é a de ser um designer ou, se se preferir, um gestor de processos ou, ainda dito de outro modo, um facilitador de aprendizagens.
O Ministério da Educação sabe e assume a inconsistência desta teorização. Em Educação de Adultos — Vida no Currículo, Currículo na Vida, é dito, a este respeito: «muitos destes pressupostos de diferenciação podem ser rebatidos», e referem-se diversos estudos (Courtney et al. 1999, Johnson-Bailey e Cervero 1997, Betler 1999, Canário 1999) que exaustivamente contrariaram a teoria de Knowles. Igualmente, a conclusão que naquele texto é apresentada não deixa lugar a dúvidas: «Os processos de ensino para pessoas adultas não parecem, pois, dever ser diferentes de outros processos de ensino destinados a outros públicos noutras faixas etárias. O que deverá fazer a diferença é, como em qualquer outra situação educativa, a qualidade do ensino que é desenvolvido» (p. 53).
Não se compreende pois que, reconhecendo-se que este quadro conceptual está ultrapassado e, consequentemente, as diferenciações nele contidas, se persista na mesma nomenclatura e no que ela representa. Só inconfessadas razões ideológicas podem explicar esta incongruência.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Quinta da música - Giora Feidman

Trechos - Franco Cazzola

«É sabido  que, há já alguns anos, se tende a pôr em discussão a validade da oposição entre direita e esquerda e que no debate sobre a legitimidade da dicotomia estão presentes três posições:
"[...] a primeira é caracterizada pela procura de um critério absoluto de distinção; a segunda considera que, depois das mutações estruturais que caracterizam o mundo contemporâneo, direita e esquerda já não têm sentido; a terceira parte da hipótese, que está em curso, preconiza uma transformação estrutural da dicotomia, devido à qual deixaria de ser possível identificar precisos conteúdos de diferenciação, sendo agora direita e esquerda simplesmente conteúdos extremamente adaptáveis" [Santambrogio 1997, 45].
Por outras palavras, existem há algum tempo três pontos de vista, dois extremos (a distinção entre direita e esquerda é, por si só, sempre válida; no mundo contemporâneo a distinção já não serve) e um intermédio (a dicotomia talvez ainda possa significar alguma coisa, mas o novo significado está em vias de definição, tendo os velhos caracteres constitutivos ficado embaciados).
Negar a distinção, considerá-la obsoleta, própria de um tempo que passou, ir "para além dela" significa, entre outras coisas, dar vida a uma operação que não é neutra, não é destituída de valores nem de efeitos.
"Ao declarar esquerda e direita categorias superadas, obsoletas, ideológicas, oitocentistas, ingénuas, [o cepticismo conservador] avança sub-repticiamente a pretensão de que o mundo tal como é constitui ainda o melhor dos mundos possíveis e candidata-se de imediato a único interprete autorizado da instância realista, a único representante de uma racionalidade desencantada. Com uma vantagem psicológica evidente: que depois da indigestão de mitos o apelo do desencanto é irresistível e ninguém parece estar disposto a apostar um cêntimo na mesa da utopia (ou de qualquer projecto que possa passar por tal)" [Flores d'Arcais 1982, 53].»
Franco Cazzola, O Que Resta da Esquerda?, Cavalo de Ferro

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Às quartas

A MEU FAVOR

A meu favor
Tenho o verde secreto dos teus olhos
Algumas palavras de ódio algumas palavras de amor
O tapete que vai partir para o infinito
Esta noite ou uma noite qualquer

A meu favor
As paredes que insultam devagar
Certo refúgio acima do murmúrio
Que a vida corrente teime em vir
O barco escondido pela folhagem
O jardim onde a aventura recomeça

A meu favor tenho uma rua em transe
Um alto incêndio em nome de todos nós

Alexandre O'Neill

Da falta de credibilidade

1. Curiosamente, algumas das personalidades mediaticamente mais indignadas, pelo menos na aparência, que hoje em dia se fazem ouvir, contra as políticas de austeridade e contra a perda de direitos adquiridos são aquelas vozes que, precisamente, há cerca de três décadas iniciaram e/ou apoiaram políticas de austeridade, de enfraquecimento dos direitos de quem vivia somente do seu salário, de marginalização de quem defendia caminhos de aprofundamento da justiça e da solidariedade sociais e, ao mesmo tempo, fizeram renascer políticas de progressivo e irreversível fortalecimento dos interesses dos grandes detentores de capital.
Quem, em Portugal, iniciou essa viragem histórica foi Mário Soares, quando, exercendo as funções de primeiro-ministro, anunciou que era tempo de se meter o socialismo na gaveta. Mário Soares, com o apoio de muito socialistas, iniciou, de facto, o trilho político que veio a ser seguido ao longo dos últimos 30 anos e que atingiu, pelo menos até este momento, o ponto mais alto do seu desenvolvimento: perda brutal de direitos por parte de quem é assalariado e simétrico aumento dos direitos de quem é empregador ou de quem é financeiro. Ainda não ouvi Mário Soares fazer mea culpa, assim como a nenhum dos seus companheiros de partido. É verdade que, se o fizessem, seria demasiado tarde, todavia, essa assunção daria certamente maior credibilidade às afirmações que agora proferem e torná-las-ia, sem dúvida, mais úteis ao combate contra a gravíssima regressão histórica que o objectivo de mais justiça e de mais bem-estar sociais está a sofrer.

2. O principal problema de quase todos os políticos é mesmo o da falta de credibilidade, e junto com a  falta de credibilidade vem a falta de autoridade. Passo Coelho há muito tempo que já perdeu uma coisa e outra — julgo não me enganar se disser que o actual primeiro-ministro é visto, por grande parte dos portugueses, como um rapaz bem-parecido que, não sabendo muito bem como, chegou a chefe de Governo, sem ter feito a mais elementar preparação para o exercício dessa função —, mas, agora, depois do episódio carnavalesco da tentativa de terminar com a tolerância de ponta, a sua autoridade tornou-se, provavelmente, irrecuperável.
Na realidade, é confrangedor constatar que o país não liga nenhuma a quem o lidera, ainda que isso seja compreensível, pois quem o lidera também não faz a mais pequena ideia do que é liderar um país. Passos Coelho não compreende que não chega apresentar circunstancialmente um ar grave e sério ou procurar falar em tom de baixo-barítono, para ser respeitado. Passos Coelho não o compreende. Por isso, não compreende que, tendo apresentado o ar mais grave e sério de que foi capaz, mesmo assim, praticamente ninguém lhe tenha prestado atenção.
Passos Coelho não tem credibilidade nem autoridade. Passos Coelho apenas vai sendo (incompreensivelmente) tolerado...

EVT - carta aberta ao ministro da Educação

Recebida por e-mail:

CONTRA A DESTRUIÇÃO DA EDUCAÇÃO VISUAL E TECNOLÓGICA

A grave crise económica e financeira que existe no plano nacional e internacional, tem servido de justificação para se avançar com as mais diversas reformas, nos mais diversos sectores de atividade.
Não se percebe porque é que a Educação Visual e Tecnológica (EVT), uma disciplina de sucesso, que se formou há mais de vinte anos, resultando da junção das disciplinas de Educação Visual e de Trabalhos Manuais, esteja prestes a ser destruída por razões meramente orçamentais, para dar lugar a qualquer coisa que, embora possa lembrar as suas origens, em nada se lhe vai assemelhar, por força da tremenda redução da carga horária, da redução da componente humana e da criação de uma terceira variante (TIC).
Não se percebe que uma disciplina como EVT, com uma forte componente prática, onde são desenvolvidas competências básicas, nomeadamente as que se relacionam com o “saber fazer”, se transforme assim, do dia para a noite, sem qualquer fundamento científico-pedagógico, em duas ou três variantes, com um só professor e uma exígua carga horária semanal. O trabalho manual – o espaço em que se treina “a mão“ dos futuros artistas, cirurgiões, engenheiros, carpinteiros, trolhas, etc. – a partir do próximo ano letivo estará seriamente desamparado. Mas EVT não se reduz à manualidade: o mesmo trabalho manual, associado à busca de soluções técnicas e estéticas é também um espaço privilegiado ao desenvolvimento cognitivo, ao reforço do “saber”. É por demais sabido pela história do desenvolvimento humano, que a mão e o cérebro andaram sempre ligados, e que não foi por mero acaso que evoluímos até ao homo sapiens actual. Porque é que EVT, a partir deste ponto de vista, não foi considerada uma disciplina fundamental?
EVT deveria ter sido vista como uma disciplina essencial, um espaço de confrontação entre o conhecimento científico e o conhecimento prático, um espaço para a experiência, o conhecimento técnico e a arte.
Parece que estamos condenados a perder nestas duas frentes da qualidade do ensino:
Os subprodutos anunciados que poderão advir da substituição da EVT (Educação Visual, Educação Tecnológica e Tecnologias da Informação e Comunicação), levarão à redução da supervisão das actividades lectivas, a uma séria limitação da intervenção pedagógica diferenciada e individualizada – ambas fundamentais ao nível etário dos alunos com que se trabalha – ficando também criadas condições para o aumento da indisciplina na sala de aula e o agravamento das condições de segurança individuais no manuseamento de ferramentas e demais equipamento escolar, ainda que drasticamente reduzido o seu tempo de manipulação. E por fim os cursos que as Escolas Superiores de Educação e os Institutos Politécnicos vinham ministrando nesta área, verão o seu percurso profissional interrompido, assim como muitos dos seus licenciados, actualmente em funções, ficarão reduzidos à ameaça do desemprego.
A bem da escola pública, enquanto profissionais responsáveis, não nos resta outra alternativa senão a denúncia pública desta situação e um veemente apelo às entidades competentes no sentido da suspensão destas medidas.
Vale de Cambra, 14 de Fevereiro de 2012
Professores de EVT dos dois agrupamentos verticais de escolas de Vale de Cambra

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Novas Oportunidades (4)

A superficialidade e a leviandade com que o discurso político trata a Iniciativa Novas Oportunidades (INO), seja para a criticar seja para a elogiar, retrata bem a qualidade dos políticos que temos. Ambas as partes limitam-se a repetir clichés que afrontam (mesmo quando elogiam) quem, como professor ou como aluno (na terminologia da INO: como formador ou como formando), trabalha e se confronta com uma realidade que pouco tem que ver com a enunciada pelo discurso político, invariavelmente mais preocupado com os efeitos mediáticos das afirmações que profere do que com a resolução séria dos problemas.
Como já referi em textos anteriores, as observações que aqui vou deixando sobre a INO não entram nessa bravata, são somente notas de quem por sensibilidade e dever profissional considera que deve contribuir, ainda que modestamente, para uma análise e um debate de uma iniciativa que, para o bem ou para o mal, já mexeu com a vida de cerca de um milhão de portugueses e que representou e representa um investimento avultado no domínio da Educação.
Relembrado o contexto destes apontamentos, continuarei a dar a minha opinião sobre esta matéria.

Um dos problemas graves de que a INO padece é a de na sua concepção ser dominante um pensamento que, reclamando-se conhecedor das motivações e das necessidades educativas e formativas dos adultos, se revela estruturado em noções pouco consistentes, do ponto de vista teórico e, acima de tudo, muito desadequadas da realidade sobre a qual pretende agir.
Vejamos. Vou transcrever algumas frases inscritas numa das páginas do Guia de Operacionalização de Cursos de Educação e Formação de Adultos — numa só página (p.15) encontramos o seguinte:
«[...] Os cursos EFA pautam-se pelos princípios da abertura e da flexibilidade, permitindo a adaptação curricular a diferentes perfis.» 
«[...] Esta oferta formativa [cursos EFA] traduz uma lógica de construção pessoal e local, no respeito pelo percurso de vida e/ou de escolaridade de cada formando.»
«O modo como a formação se desenvolve estará, necessariamente, determinado pelo princípio da adaptabilidade, independentemente da tipologia de percurso que se implemente: a definição do percurso curricular estará definida à partida mas não o processo de aprendizagem por parte do formando.»
«[...] O formando transporta consigo os seus quadros de referência pessoais, sociais e profissionais, as suas motivações e expectativas, que devem ser tidas em consideração na determinação do percurso formativo a realizar. Daqui decorre que o desenho curricular genérico acabará por se concretizar numa pluralidade de percursos formativos.»
«[...] Isto implica, necessariamente, que os formadores imprimam dinâmicas de trabalho baseadas em metodologias de diferenciação.»
«[...] Poderá dar origem a vários percursos dentro de um mesmo grupo de formação, dando corpo à diversidade característica de um modelo conceptual que pretende respeitar diferentes ritmos e intenções de aprendizagem, concretizados em combinatórias de competências a desenvolver (e até mesmo de componentes de formação) que serão diferenciadas de indivíduo para indivíduo.»
«[...] É fundamental que a equipa de profissionais de formação conheça o perfil dos formandos, de forma a encaminhar as aprendizagens através de instrumentos que se relacionem naturalmente com o quotidiano e a realidade dos mesmos.»

Abertura, flexibilidade, adaptação curricular, construção pessoal e local, respeito pelo percurso de vida, princípios de adaptabilidade, processo de aprendizagem não pré-definido, desenho curricular concretizado numa pluralidade de percursos formativos, dinâmicas de trabalho baseadas em metodologias de diferenciação, vários percursos dentro de um mesmo grupo de formação, respeito pelos diferentes ritmos e intenções de aprendizagem concretizados em combinatórias de competências a desenvolver, encaminhamento das aprendizagens através de instrumentos que se relacionam naturalmente com o quotidiano e a realidade dos formandos — impressiona como numa única página se conglomeram tantos conceitos e se desenvolve uma discursividade que, em roda livre, parece auto-alimentar-se.
Na página seguinte, faz-se a recarga da mesma discursividade:
«[...] Um curso EFA assenta numa atitude formativa que passa pela flexibilização das competências e estratégias para a sua aquisição, pela articulação entre as áreas de competência-chave da componente da formação de base, e entre estas e a formação tecnológica, estratégias essas que farão tanto mais sentido quanto melhor estiverem enquadradas nos contextos e percursos pessoais e socioculturais dos formandos.»
No parágrafo seguinte, continua-se:
«[...] As metodologias de formação desenvolvem-se numa lógica de “actividades integradoras”, que convocam competências e saberes de múltiplas dimensões, que se interseccionam e entreajudam para resolver problemas em conjunto.»
No mesmo fôlego acrescenta-se:
«Este modelo de acção implica uma atitude activa dos formandos, que devem ser impelidos a investigar, a reflectir e analisar, desenvolvendo aprendizagens que sejam significativas para si, dado que nenhuma aprendizagem é significativa por si, mas apenas quando o aprendente se empossa dela e a valoriza porque lhe reconhece aplicabilidade e significado no seu quadro de referências pessoais e sociais.»
Para, a propósito do conceito de competência, se concluir desta forma:
«Esta metodologia implica um trabalho colaborativo entre os elementos da equipa pedagógica, que só poderá construir actividades integradoras se planificar em conjunto, entendendo a competência como um todo complexo de “saberes” e “saberes-fazer” nos mais diversos domínios, inseparável da concretização de um plano de trabalho transversal entre as componentes da formação» (o sublinhado é meu).
Proceder à análise de cada uma destas frases daria origem, provavelmente, a dezenas de posts, mas podemos abreviar porque a derradeira citação ilustra o que de essencial é comum à maioria das frases citadas — refiro-me ao modo como o conceito de «competência» é tratado: «como um todo complexo de “saberes” e “saberes-fazer” nos mais diversos domínios, inseparável da concretização de um plano de trabalho transversal entre as componentes da formação.» Penso que devemos desconfiar sempre de alguém que, ao definir algo, começa essa definição por «é um todo complexo» — fica-se de imediato derrotado com o «todo» e com o «complexo». Todavia, penso que ainda mais desconfiados devemos ficar, se, nessa definição, se acrescenta que esse todo engloba tudo, que é isso que se diz, quando se afirma que é «um todo complexo de "saberes" e "saberes-fazer" nos mais diversos domínios». Neste entendimento, a «competência» é pois um conjunto («um todo») intrincado («complexo») de conhecimentos («saberes») e de técnicas, habilidades, destrezas («saberes-fazer») de uma globalidade («nos mais diversos domínios»). Depois desta definição de competência, parece-me ser inevitável perguntar: afinal o que é exactamente uma «competência»?

Dei como exemplo o modo como esta discursividade trata o conceito de «competência» — que nos obriga, no final, a voltar a perguntar: «o que é competência?» — apenas para observar que, genericamente, na INO, grande parte dos conceitos são tratados deste modo, quer na fundamentação teórica quer, depois, no próprio domínio concreto dos conteúdos das designadas UFCD - Unidades de Formação de Curta Duração.
Ora, tudo isto levanta enormes problemas. De alguns deles procurarei dar conta em textos seguintes — e, deste modo, ir respondendo à segunda e à terceira perguntas formuladas no post Novas Oportunidades (2).

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Quinta da música - Francis Poulenc

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Trechos - Franco Cazzola

Esquerda e direita

«A proposta de Lukes é que a esquerda possa ser definida pelo seu empenho no "projecto de rectificação". Este pode ser expresso de muitas maneiras, com a linguagem pacífica do direito e da justiça, ou com a linguagem belicosa do conflito de classe. Pode escrever a história do alargamento da cidadania e da democracia, ou a da luta contra a exploração e a opressão. Pode concretizar-se de variadas formas organizativas. Em todos os casos, parte da constatação que existem desigualdades injustificadas que a direita considera sagradas e invioláveis, naturais ou inevitáveis (e que ao fazê-lo as torna invisíveis), e que devem ser nomeadas e postas em evidência, para que possam ser reduzidas ou abolidas.
A constatação tem claras implicações:
"Primeiro, que existe um modelo de justiça ou um hipotético ideal em relação ao qual as desvantagens e desigualdades existentes são consideradas injustificadas ou merecedoras de rectificação, uma implícita ou explícita teoria da justiça ou uma visão da igualdade. Segundo, a ideia de que tais desvantagens ou desigualdades são sistemática e estruturalmente causadas por características do sistema social, político e económico: isto é, não são casuais, nem idiossincráticas, nem biologicamente determinadas, nem sequer a considerar como consequência não intencionais de processos incontroláveis. terceiro, que as suas causas são verificáveis através da investigação científica e sistemática. Por último, que possam ser corrigidas e por vezes eliminadas mediante uma intervenção humana resultante de uma vontade política." [Lukes 1997, 309-310]
Por outro lado, foi afirmado que "ser de esquerda significa sentir-se ligado a todos aqueles que lutam pela sua libertação" [Gorz 1993, 123], que a esquerda é favorável à acção pública para "corrigir os resultados do mercado em defesa dos mais fracos", que exprime "a atitude para a mudança em relação aos defensores do status quo na economia, no ordenamento das instituições, na vida da sociedade" [Bosetti 1993, 15].»
Franco Cazzola, O Que Resta da Esquerda, Cavalo de Ferro.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Às quartas

NA BIBLIOTECA DA ESCOLA DEPOIS DA GUERRA

Ao entrar sinto a cara a arder:
montes de livros, migalhas de cultura e de beleza
juncam o chão como espigas calcadas
após a passagem de um brutal furacão.

A poeira da guerra veio pousar nos lábios
dos homens de génio. Vozes incorruptíveis
a troar por cima do espaço e do tempo.
Mas incapazes de esmagar as botas do fantasma.

Apanho o livro pouco espesso furado
por uma bala. A chaga é horrível.
Todas as folhas estão manchadas de sangue.

Abro. Leio. Não posso reter as lágrimas
quando o título vem dançar diante dos meus olhos:
«Os sonetos sangrentos de Hviezdoslav.»

Julius Lenko
(Trad.: Ernesto Sampaio)

Gestão: novamente mais do mesmo

A proposta de «Alteração ao Regime de Autonomia, Administração e Gestão dos Estabelecimentos Públicos da Educação Pré-escolar e dos Ensinos Básico e Secundário» apresentada pelo Ministério da Educação é, desgraçadamente, mais um exemplo da pobreza política que nos governa. Na verdade, a política educativa do actual governo resume-se, no essencial, a dar continuidade ao que de medíocre foi feito por Sócrates e Rodrigues.
A proposta apresentada por Crato mantém, na íntegra, com ligeiros remendos, o modelo de gestão das escolas imposto por Rodrigues. Só concebendo o exercício da política como uma repugnante encenação se compreende que, após tão exacerbadas críticas feitas por Coelho e Crato à política educativa do governo anterior, se mantenham agora intactos os pilares dessa mesma política. Estes governantes, como os anteriores, não merecem o respeito de quem os elegeu, porque eles próprios não respeitam a sua palavra e não cumprem os compromissos que publicamente assumem. Assim se denigre o exercício da Política, se denigre o conceito de República e se denigre a ética inerente à ideia de Democracia.
Este governo mantém intactos todos os absurdos do modelo de gestão de Rodrigues, à excepção de um: termina a norma estúpida que amontoava os grupos disciplinares em quatro departamentos — agora passam a ser as escolas a decidir em quantos departamentos devem os grupos disciplinares ser organizados. Este constitui o único caso de lucidez do ministro da Educação. No resto, dá continuidade ou piora o que de mau já existia. Três exemplos.
1. A proposta mantém intocável o órgão mais mal pensado, e que pior funciona, na história da gestão escolar, depois do 25 de Abril: o Conselho Geral. Com que fundamento? Não se sabe. Crato não só mantém este órgão intocável, como lhe acrescenta mais uma competência: a de «intervir, nos termos definidos em diploma próprio, no processo de avaliação do desempenho do diretor». Isto é: o representante do grupo colombófilo da freguesia (que, em muitos casos, foi parar ao Conselho Geral por indicação partidária, e que ou falta ou adormece nas reuniões) vai intervir na avaliação do director da escola; os professores membros do conselho geral vão intervir na avaliação do director que, por sua vez, avalia esses professores; os funcionários membros do conselho geral vão intervir na avaliação do director que, por sua vez, avalia esses funcionários. Sobre os múltiplos aspectos profundamente negativos de que este órgão padece, já tive oportunidade de deixar nota aqui, aquiaqui e aqui. É incompreensível que se consiga piorar o que já era mau.
2. A proposta mantém intacta a forma de escolha do director, isto é, mantém intacto um outro absurdo: a simultaneidade de dois processos que se contradizem e anulam, o concursal e o eleitoral (v. aqui).
Não sendo suficiente este absurdo, propõe-se um outro: introduz-se, no n.º 4, do Art.º 21.º, uma alínea cujo espírito é contraditório com o conteúdo de um novo n.º 5, do mesmo Artigo. 
Vejamos: na alínea, consagra-se que o Conselho Geral pode admitir qualquer candidato a concurso/eleição, desde que considere, por voto secreto, o seu currículo relevante; no n.º 5, afirma-se que só se admitem candidaturas de quem não seja detentor de habilitação específica para o cargo de director, no caso de não existirem candidatos com a referida habilitação específica ou existam mas de forma «insuficiente». O absurdo compõe-se de três partes:
i) Por um lado, admite-se que qualquer um pode ser candidato, desde que o Conselho Geral ache quem tem currículo relevante;
ii) Por outro lado, afirma-se que só podem ser candidatos os que têm habilitação específica para o cargo. Os outros (e nos outros estão incluídos aqueles que já foram directores, subdirectores, adjuntos de directores, presidentes ou vice-presidentes de conselhos executivos e membros de conselhos directivos) só poderão concorrer no caso de «inexistência» ou de «insuficiência» dos candidatos com habilitação específica;
iii) Finalmente, «inexistência» de candidatos sabemos o que é; suponho, todavia, que seja mais difícil alguém saber o que é «insuficiência» de candidatos. O que conviria saber, atendendo a que os putativos candidatos que não possuam habilitação específica, só poderão ser candidatos efectivos no caso de existência da referida «insuficiência»...
3. A proposta mantém (semi-)intacta a nomeação dos coordenadores de departamento. A forma de nomear passa a ter uma nuance: em lugar de o director nomear um coordenador por departamento, passa a nomear três, para que os colegas escolham um deles. O princípio da nomeação mantém-se, mas agora imbuído de um perfume democrático.

O restante é mais do mesmo e é uma evidente e confrangedora falta de conhecimentos da realidade e de capacidade de conceber e de construir uma escola melhor.

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terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Bonecos (sem palavra)



Quino, Não Me Grite!, Pub. Dom Quixote.

Nacos

«Era Novembro no Connecticut e o esplendor selvagem do Outono tinha-se desvanecido. Os doces áceres estavam nus. Só algumas macieiras se mantinham verdes. Um céu nublado conferia uma encantadora lisura cinzenta a um lago.
Aproximando-me pela estrada rosa e macia que serpenteava tão suavemente através da relva, era como se finalmente tivesse encontrado aquilo que Nova Iorque e Filadélfia tinham recusado mostrar, esse centro secreto da nova nação, essa parte que correspondia às suas mais altas possibilidades. As colunas dóricas da mansão pareciam beneficiar do facto de serem tão claramente concebidas, a afirmação de uma aspiração, ao mesmo tempo nobre e democrática. E não deixei de me sentir divertido, no meio de tudo isso, por reflectir que haviam sido uns lindos tornozelos a atrair-me, um colo generoso a levar-me a percorrer aquela estrada, a fazer-me avançar a toda a pressa em direcção ao pomar, a dar a volta ao lago, até à erva longa e ondulante através da qual uma jovem corria e saltava, com um belo movimento atlético, como se fosse não apenas a arquitectura, mas o próprio corpo a corresponder ao antigo ideal grego. Ela, na realidade. Ela própria.»
Peter Carey, Parrot e Olivier na América, Gradiva.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Comentário de segunda: a continuidade

Ao fim de sete meses de governo PSD/CDS não se consegue descortinar o que há de substancialmente diferente em relação ao governo do PS:
1. Quer Passos Coelho quer Sócrates mentiram aos portugueses — e ambos fizeram-no com uma desfaçatez difícil de imaginar. Não cumpriram o que prometeram e agiram ao contrário do que anunciaram.
2. Sócrates inaugurou a saga dos PEC que significou o início e o desenvolvimento das políticas de austeridade e de empobrecimento do país, em particular das designadas classes média e baixa e muito especificamente dos profissionais do Estado. Com a recusa do PEC 4, por parte do Parlamento, o governo socialista caiu. Passos Coelho tomou o poder e não apenas concretizou o que constava do PEC 4 como duplicou ou triplicou a dureza das medidas de austeridade, mantendo como alvo privilegiado as mesmas classes sociais e profissionais.
3. Na maior parte das áreas da governação, Passos Coelho limita-se a retocar ou a aprofundar o que o seu antecessor deixou de mal feito. De essencial nada muda. A Educação é um particular exemplo: a avaliação do desempenho dos professores foi retocada, para ficar na mesma; a Iniciativa Novas Oportunidades (tão abertamente criticada) continua intocável no seu conteúdo e na sua forma; a revisão curricular proposta é uma amostra de revisão e feita às avessas; a recém surgida proposta de novo regime de autonomia, gestão e administração das escolas, retoca um ponto ou outro para deixar tudo na mesma (ou pior).
4. A única grande ruptura anunciada foi a ausência de tolerância de ponto na próxima terça-feira de Carnaval. Perante tão «profundo» corte com o passado, o país sorriu e continua a sorrir. Em particular as autarquias do PSD e as empresas públicas e as escolas e as universidades e os governos regionais e por aí fora...
5. Ao fim de sete meses de governo PSD/CDS fica-nos na memória o aconselhamento para os jovens emigrarem, a sugestão para os professores emigrarem, os ditos e os desditos sobre o não aumento dos impostos, os ditos e os desditos sobre a manutenção dos subsídios de Natal e de Férias, os ditos e os desditos sobre a TSU, os ditos e os desditos perante Merkel e Junker, o dito sobre a pieguice e agora o dito sobre a não tolerância carnavalesca. E pronto.

domingo, 12 de fevereiro de 2012

Dave Brubeck Quartet

Pensamentos de domingo

«Quando não se tem ideias, as palavras são inúteis e até nocivas.»
A. Ganivet

«É sem dúvida mais fácil enganar uma multidão do que um só homem.»
Heródoto

«Pedir demasiado é a maneira mais segura de receber ainda menos do que é possível.»
Bertrand Russel
In Paulo Neves da Silva, Dicionário de Citações, Âncora Editora

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Texto justificativo da Petição
(Tradução para português realizada pelo blogue Aventar)

No Verão de 1940 Mussolini, apercebendo-se da presença de soldados alemães nos campos petrolíferos da Roménia (um aliado da Alemanha), considerou isso um sinal perigoso da expansão da influência alemã nos Balcãs e decidiu invadir a Grécia. Em Outubro de 1940, a Grécia foi arrastada para a Segunda Guerra Mundial pela invasão do seu território. Para salvar Mussolini de uma humilhante derrota, Hitler invadiu a Grécia em Abril de 1941.
A Grécia foi saqueada e devastada pelos alemães como nenhum outro país durante a ocupação alemã. O Ministro Alemão da Economia, Walter Funk, assumiu que a Grécia sofreu as atribulações da guerra como nenhum outro país da Europa.
À sua chegada, os alemães começaram a saquear o país. Apropriaram-se de tudo o que necessitavam para a sua estadia na Grécia e despachavam para a Alemanha tudo aquilo a que conseguiam deitar a mão: alimentos, produtos industriais, equipamento industrial, mobiliário, objectos artísticos provenientes de colecções valiosas, pinturas, tesouros arqueológicos, relógios, jóias, e até os puxadores das portas de algumas casas. A produção completa das minas gregas de pirites, minério de ferro, crómio, níquel, manganésio, magnesite, bauxite e ouro foi enviada para a Alemanha. James Schafer, um executivo do petróleo americano que trabalhava na Grécia, resumiu a situação: “Os alemães estão a saquear tanto quanto conseguem, tanto abertamente como forçando os gregos a vender em troca de marcos de papel sem valor, emitidos localmente” (Mazower p.24). Mussolini queixou-se ao seu ministro dos negócios estrangeiros, o conde Ciano: “Os alemães roubaram até os cordões dos sapatos aos gregos ” (Ciano p.387).
O saque completo do país, a hiperinflação gerada pela impressão descontrolada de Marcos de Ocupação pelos comandantes locais alemães e o consequente colapso económico do país provocaram uma fome devastadora. Para além de alimentar os 200000 a 400 000 soldados de ocupação do Eixo estacionadas na Grécia, o país foi forçado a fornecer os que estavam envolvidas nas operações militares no Norte de África. Frutos, vegetais, gado, cigarros, água e até frigoríficos foram enviados do porto grego do Pireu para portos líbios (Iliadakis p. 75). A Cruz Vermelha Internacional e outras fontes estimaram que entre 1941 e 1943 pelo menos 300 000 gregos morreram de fome (Blytas p. 344, Doxiadis p.37, Mazower p.23).
A Alemanha e Itália impuseram à Grécia somas exorbitantes como despesas de ocupação para cobrir não apenas os custos de ocupação mas também para suportar os esforços de guerra alemães no Norte de África. Como percentagem do produto nacional bruto, estas somas foram muito superiores aos custos de ocupação suportados pela França (apenas um quinto dos que foram pagos pela Grécia), Holanda, Bélgica, ou Noruega. Ghigi, o plenipotenciário italiano na Grécia, disse em 1942, “A Grécia está completamente exaurida” (Mazower p. 67). Num acto de abuso de poder, as autoridades de ocupação forçaram o governo de Tsolakoglou a pagar indemnizações aos cidadãos alemães, italianos e albaneses que residiam na Grécia ocupada por prejuízos, presumivelmente ocorridos durante as operações militares. Os cidadãos italianos e albaneses receberam somas equivalentes a 783 080 dólares e 64 626 dólares, respectivamente! (Iliadakis p. 96). A Grécia, que foi destruída pelo Eixo, foi forçada a pagar a cidadãos dos seus inimigos por alegados danos que não foram provados.
Para além das despesas de ocupação, a Alemanha obteve à força um empréstimo da Grécia (empréstimo de ocupação) de 3500 milhões de dólares. O próprio Hitler conferiu carácter legal (inter-governamental) a este empréstimo e deu ordens para começar o processo de pagamento. Depois do fim da guerra, na reunião de Paris em 1946, foram atribuídos à Grécia 7100 milhões de dólares (dos 14000 pedidos) como reparações de guerra.
A Itália pagou à Grécia a sua quota-parte do empréstimo de ocupação, e tanto a Itália como a Bulgária pagaram as reparações de guerra à Grécia. A Alemanha pagou as reparações de guerra à Polónia, em 1956, sob pressão dos EUA e do Reino Unido; pagou também reparações de guerra à Jugoslávia em 1971 (para aplacar Tito e evitar que ele aderisse ao Bloco Soviético). A Grécia exigiu o pagamento da Alemanha em 1945, 1946, 1947, 1964, 1965, 1966, 1974, 1987, e em 1995 (após a reunificação da Alemanha). Antes da unificação da Alemanha, utilizando o acordo de Londres de 27 de Fevereiro de 1953, a Alemanha Ocidental evitou o pagamento das obrigações decorrentes do empréstimo de ocupação e das reparações de guerra, usando o argumento que nenhum “tratado de paz final” tinha sido assinado. Em 1964, o chanceler alemão Erhard prometeu o pagamento do empréstimo após a reunificação da Alemanha, que ocorreu em 1990. A revista alemã Der Spiegel escreveu, em 23 de Julho de 1990, que o acordo “Dois-Mais-Quatro” (assinado entre as duas Alemanhas e as quatro potências mundiais EUA, URSS, Reino Unido e França), ao preparar o caminho para a unificação alemã, fazia desaparecer o pesadelo dos pedidos de reparações que poderiam ser exigidos por todos os que tivessem sido prejudicados pela Alemanha, caso tivesse sido assinado um “tratado de paz”.
Esta afirmação do “Der Spiegel” não tem nenhuma base legal, mas é um reconhecimento dos estratagemas usados pela Alemanha para recusar um acordo com a Grécia (ver também o “The Guardian” de 21 de Junho de 2011). A mesma revista, em 21 de Junho de 2011, cita um historiador económico, Dr. Albrecht Ritschl, que aconselha a Alemanha a tomar uma atitude mais moderada na crise europeia de 2008-2011, uma vez que poderia enfrentar renovadas e justificadas exigências de reparações.
Os indicadores do valor actual das dívidas alemãs à Grécia são os seguintes: com base na taxa média de juros das Obrigações do Tesouro dos EUA desde 1944, que é cerca de 6%, estima-se que o valor actual do empréstimo de ocupação seja de 163,8 mil milhões dólares e o valor da reparação de guerra seja de 332 mil milhões de dólares.
O economista francês e consultor do governo, Jacques Delpla, declarou, em 2 de Julho de 2011, que a Alemanha deve à Grécia 575 mil milhões de euros devido a obrigações decorrentes da Segunda Guerra Mundial (Les Echos, sábado, 2 de julho, 2011).
Os alemães não levaram apenas “os cordões dos sapatos” aos gregos. Durante a Segunda Guerra, a Grécia perdeu 13% da sua população como resultado directo da guerra (Doxiadis p 38, Illiadakis p 137). Em resultado da resistência à invasão do país, quase 20.000 combatentes gregos foram mortos, mais de 100 mil foram feridos ou sofreram queimaduras com o gelo e cerca de 4.000 civis pereceram em ataques aéreos. Mas estes números são irrisórios quando comparados com a perda de vidas humanas durante a ocupação.
De acordo com estimativas moderadas, as mortes decorrentes directamente da guerra ascendem a cerca de 578 mil (Sbarounis p. 384). Estas mortes foram o resultado da fome persistente, causada pelo saque e pelas políticas económicas do Eixo e pelas atrocidades cometidas tanto como represálias, como por resposta à resistência ou como meio para aterrorizar a população grega. Os números acima não incluem as mortes que ocorreram após o fim da guerra devido a doenças como a tuberculose (400.000 casos) e a malária, desnutrição persistente, ferimentos e más condições de vida, todas elas resultado directo das condições de guerra. Assim, na Segunda Guerra Mundial a Grécia perdeu tantas vidas, sobretudo homens desarmados, mulheres e crianças, como os EUA e o Reino Unido juntos.
A maioria das atrocidades cometidas pelos alemães na Grécia teve origem diretamente em duas ordens vindas das mais altas esferas do Terceiro Reich. Uma primeira, decidida pelo próprio Hitler, ordenava que se se suspeitasse que uma residência tinha sido usada pela resistência devia ser incendiada juntamente com os habitantes. A segunda ordem, assinada pelo marechal Wilhelm Keitel, especificava que, por cada alemão morto, um mínimo de 100 reféns seriam executados e por cada alemão ferido, 50 gregos morreriam (Payne 458ff, pp 189-190 e Goldhagen pp 367-369, Blytas pp 418-419).
As primeiras execuções em massa tiveram lugar em Creta, antes de esta ser tomada pelos alemães. Em 1945, sob os auspícios das Nações Unidas, um comité liderado por Nikos Kazantzakis enumerou a destruição de mais de 106 povoações de Creta e o massacre dos seus habitantes (ver sobre o massacre de Kontomari [inglês]). Durante a ocupação, os alemães assassinaram a população de 89 aldeias e vilas gregas (ver sobre o massacre de Distomo [inglês]), enquanto mais de 1.700 povoações foram total ou parcialmente queimadas e muitos dos seus habitantes também foram executados (ver Holocausto Grego[inglês]). Às vítimas gregas do reino de terror alemão devem ser acrescentados 61.000 judeus gregos que, juntamente com 10.000 cristãos, foram deportados para campos de concentração de onde a maioria nunca voltou (Blytas p.429 and p. 446).
Outro aspecto da ocupação grega foi o saque sistemático dos muitos museus gregos, tanto sob as ordens das autoridades de ocupação, como em resultado da iniciativa de oficiais que ocupavam posições de comando. Os nomes do general von List, comandante do 12º Exército, do General Kohler, do comando de Larissa, e do general Ringel, dos comandos de Iarakleio e de Cnossos, são associados ao desaparecimento de importantes tesouros arqueológicos. List foi responsável por aceitar como presente a escultura de uma cabeça esplêndida do século IV a.C., enquanto que Ringel enviou para a Áustria várias caixas de antiguidades da histórica Vila Adriana, assim como caixas contendo pequenos objectos do Museu de Cnossos. “Roubos sancionados oficialmente” foram registados nos museus de Keramikos, Chaeronea, Museu de S. Jorge em Tessalónica, Gortynos, Irakleio, Pireu, Skaramangas, Faistos, Kastelli Kissamou, Larissa, Corinto, Tanagra, Megara, Tebas e muitos outros (Blytas p. 427). O que é especialmente trágico é que, em muitos destes saques, conhecidos arqueólogos alemães forneceram orientação especializada aos perpetradores. E embora muitas destas antiguidades tenham sido devolvidas à Grécia em 1950, a maior parte das peças de museu roubadas nunca foram encontradas.
Em Creta e noutros sítios, os comandantes alemães locais ordenaram a escavação e o saque de muitos sítios arqueológicos. Estas escavações foram levadas a cabo por arqueólogos alemães, enquanto os arqueólogos gregos, curadores e inspectores de museus foram proibidos de interferir, normalmente sob a forma de ameaças que não podiam ignorar.
Solicitamos que o governo alemão honre as suas obrigações há muito atrasadas para com a Grécia, através do pagamento do empréstimo de ocupação que obteve à força e pelo pagamento das reparações de guerra proporcionais aos danos materiais, atrocidades e pilhagens feitas pela máquina de guerra alemã.


sábado, 11 de fevereiro de 2012

Ao sábado: momento quase filosófico

«Uma história turca conta que Nasreddin Hodjâ, tendo perdido o seu burro, mandou proclamar por toda a cidade que daria o animal a quem lho trouxesse, ainda por cima com a albarda e cabeçada.
E como alguém se admirasse de ele prometer assim dar o seu burro a quem lho trouxesse, não vendo o que tinha ele a ganhar com a promessa, Nasreddin respondeu:
— Achas então insignificante a alegria de encontrar uma coisa perdida?»
In Jean-Claude Carrière, Tertúlia de Mentirosos, Teorema (adaptado).

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Novas Oportunidades (3)

No texto da semana passada, procurando fazer o enquadramento da Iniciativa Novas Oportunidades, enunciei três questões que, na minha opinião, merecem algumas notas reflexivas. São essas notas que passo a expor, conforme o prometido.
A propósito do que é declarado no Guia de Operacionalização de Cursos de Educação e Formação de Adultos («Deve ser feita a valorização e validação das aprendizagens adquiridas em diversos contextos, numa perspectiva de aprendizagem ao longo da vida» de modo a que «qualquer aprendizagem realizada em contexto formal ou informal, possa ser validada e capitalizável, no respeito pela condução que cada formando faz do seu percurso pessoal de educação e formação»), a primeira questão que formulei foi:
 — Que valorização deve ser dada às «aprendizagens adquiridas em diferentes contextos»?
Referi, em seguida, que o problema da valorização destas aprendizagens tem ligado a si o problema do valor que a sociedade atribui ou deve atribuir ao saber e ao saber-fazer

O paradigma que enforma toda a Iniciativa Novas Oportunidades faz uma declarada profissão de fé no saber-fazer. O Guia de Operacionalização de Cursos de Educação e Formação de Adultos afirma esta ideia com muita clareza: «As competências a desenvolver devem ser sempre entendidas como competências em e para a acção, trabalhadas com vista ao saber em uso» (o sublinhado é meu). Esta concepção é repetida e está subjacente ao longo de dezenas de páginas do referido guia. 
O desígnio do desenvolvimento das competências para a acção não vigora apenas no domínio da formação de adultos. Existe, há vários anos, um movimento ascendente que tem conseguido direccionar o ensino nesse sentido. A utilidade do ensino tem sido, desde há uns anos, o nó górdio da Educação para alguns teóricos — alguns deles seduzidos pelos apelos oriundos do mundo empresarial, outros, por (de)formação, rendidos à quantificação e à tecnologização da vida e da realidade. Um neopragmatismo pedagógico tem-se imposto e condicionado a Educação. Assente na presumida evidência de que o sentido de tudo se constrói e afere pela eficácia da acção, este neopragmatismo não vislumbra sequer a necessidade de se proceder a uma avaliação dos resultados que, nos últimos anos, uma Educação organizada e desenvolvida a partir destes pressupostos tem produzido.  Não se pensa nem se escrutina as consequências da quantificação e da tecnologização do ensino. Não se pensa nem se escrutina a ideia que defende que a utilidade do que se ensina é o critério de verdade, no domínio da Educação.
O saber-fazer substituiu o saber, a partir da crença naïf de que o saber-fazer se sustenta a si próprio, tem sentido por si próprio, desvalorizando-se o facto de que, deste modo, se está a sobrepor a técnica ao conhecimento e ao pensamento, ou, se se preferir, desvalorizando-se o facto de que a redução ao saber-fazer significa a menorização do saber.
Ora a Iniciativa Novas Oportunidades padece deste erro que, na minha opinião, se torna ainda mais grave quando aplicado na educação e formação de adultos. Ao contrário do que é dado como óbvio, na educação e formação de adultos (indivíduos que não tiveram, por diferentes razões, acesso à educação formal, na altura própria) menos sentido faz o afunilamento da educação e da formação no saber-fazer ou, nas palavras do guia, no saber em uso. Por duas razões, que julgo decisivas:

a) Porque é precisamente o saber-fazer aquilo que a experiência de vida e profissional mais facultou aos adultos. Adultos com 30, 40, 50 ou mais anos de idade e, vários deles, com significativa experiência em uma ou várias profissões, foram adquirindo, pela via empírica, um relevante saber-fazer. Consequentemente, não é do saber-fazer que estes adultos estão mais carenciados, estão, sim, precisados, e muito, do saber. O saber que, directa ou indirectamente, lhes possibilitará iluminar, esclarecer, enriquecer o próprio saber-fazer.

b) Porque é precisamente na idade adulta que, muitas vezes, nos encontramos nas melhores condições para apreender com mais fecundidade certos saberes — é a própria maturidade etária e a experiência de vida que o possibilitam e, em muitas situações, que o desejam com relevante intensidade. E não é apenas com mais fecundidade, é também, em muitos casos, com mais facilidade, se compararmos com os processos de aprendizagem dos jovens com 15 ou 16 anos de idade. Os estudos psicológicos mostram-no e a prática docente confirma-o.

Não há pois razões para se passar um atestado de menoridade intelectual aos adultos e, muito menos, prestar-lhes um deficiente serviço educativo e formativo, porque centrado ou limitado ao saber em uso.

As outras duas questões que formulei no texto anterior, começarei a abordar a partir da próxima semana.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Quinta da música - Rachmaninov

  

Trechos

«A cultura mundializada pelo Ocidente é uma nova forma de totalitarismo económico, cuja devastação aqui ou ali em nome do desenvolvimento testemunham, cuja destruição do mundo cria violência. Totalitarismo caracterizado, como era o totalitarismo estatal do império soviético, pela instauração de um modelo único, o da sociedade por acções, de um julgamento único, o do preço do mercado, de uma medida universal, a do rendimento para o accionista (ROE - return on equity). E totalitarismo que acaba de obter um resultado simétrico, vinte anos depois do que provocou a queda do muro de Berlim; a crise que atravessamos é a primeira manifestação de explosão inevitável de um modelo único de financiamento, as próximas virão, sem dúvida, dos novos convertidos à cultura do Ocidente financeiro, da China, por exemplo, e suscitarão, mais cedo ou mais tarde, a afirmação violenta da primazia da sociedade sobre o mercado, sobre a economia e sobre aqueles que são os invisíveis mestres. Quem é que não sabe que a Goldman Sachs é, hoje, a primeira potência mundial?»
Hervé Juvin
Gilles Lipovetsky, O Ocidente Mundializado, Edições 70.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Às quartas

OBSESSÃO

Se nada existe
A não ser a morte
Quem ilumina
As suas noites?

   Alguém escuta
   Um grão de silêncio.

Se tudo é música
Neste paraíso
Para onde foram
Os meus amigos?

   A morte é fresca
   No coração do mundo.

Casimiro de Brito

Sem noção nem maturidade

Passos Coelho não tem a noção do que pediu aos portugueses. 
Passos Coelho incitou os portugueses a serem exigentes e a não serem piegas. Se os portugueses levarem a sério a exortação de Passo Coelho, isto é, se passarem a ser exigentes e deixarem de ser (supostamente) piegas, Passos Coelho deixará de ser primeiro-ministro a breve trecho. Passos Coelho parece ainda não ter percebido que é precisamente por os portugueses não serem exigentes que ele pode praticar a política que pratica e pode enganar os portugueses como engana.
Um povo exigente nunca teria elegido Passos Coelho para primeiro-ministro e muito menos permitiria que  ele se mantivesse no Governo, depois de tanta promessa não cumprida, depois de tanto atropelo à verdade, depois de tanta subserviência ao domínio alemão, depois de tanta falta de preparação técnica e política para o exercício do cargo.
Na verdade, Passos Coelho deve agradecer aos deuses o facto de os portugueses não cultivarem a exigência. E ao não cultivarem a exigência acabam por ter de ouvir acusações levianas e ofensivas da sua dignidade, precisamente por parte daquele que deveria sentir a mais alta obrigação de os respeitar. Apelidar de piegas um povo que, pela incompetência de quem o tem governado, está a passar por um brutal empobrecimento, confirma que Passos Coelho não tem maturidade para ocupar o cargo que ocupa.

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Bonecos de palavra

Quino, Não Me Grite!, Pub. Dom Quixote.

Nacos

«Quanto a mim, fiquei com o camarote de luxo, não devido às suas dimensões, que não eram assim tão consideráveis, mas às grandes janelas que se estendiam ao longo da popa quadrada.
Ali, nesse compartimento construído para a contemplação do que a América tem de sublime, estava colocada a inevitável máquina, esse pavoroso monumento à inquietação democrática — uma cadeira de baloiço.
Oh, Blacqueville, quem me dera que estivesses aqui para veres estes Americanos! São as pessoas mais turbulentas, mais agitadas, mais insatisfeitas, muito piores que os Italianos ou os Gregos. É óbvio que não existe nada menos propício à meditação do que a democracia. Nunca encontrarás, como na aristocracia, uma classe que se instale no seu próprio conforto e outra que não mexa uma palha porque não tem esperança de alguma vez vir a melhorar o seu estatuto. Na América, toda a gente se encontra num estado de agitação: uns para atingirem o poder, outros para se apoderarem da riqueza, e quando não podem deslocar-se baloiçam.»
Peter Carey, Parrot e Olivier na América, Gradiva.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

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Comentário de segunda: uma fronteira ténue

«Quem põe um povo perante um dilema entre a ajuda financeira e a dignidade nacional, ignora as lições históricas fundamentais». Foi assim que Lucas Papademos, primeiro-ministro grego, respondeu à intenção alemã de retirar ao governo e ao parlamento gregos a soberania sobre o seu próprio Orçamento de Estado, entregando-a a um qualquer comissário da UE, durante o período de vigência da nova ajuda externa, neste momento em negociação.
A resposta grega é exemplar, assim como a pretensão do governo alemão. 
A amnésia ou a ignorância da história; a ausência de respeito por outra nação, pela sua cultura, pela sua dignidade; e a boçalidade política dos actuais governantes alemães revelam como eles constituem, neste momento, a principal causa de instabilidade e de perigo para a paz na Europa. Os alemães estiveram na origem de duas guerras mundiais e voltam, agora, pela sua acção, a lançar as sementes do que poderá constituir o fim de mais de cinquenta anos de paz no Velho Continente. Os alemães têm, para com o mundo, uma dívida impagável: milhões de mortos, sofrimento e destruição. Todavia, a memória dos dirigentes alemães parece ser fraca e a capacidade de aprender reduzida. 
Os gregos cometeram certamente muitos erros na sua governação, mas qual é o país que não os cometeu, agora ou antes? E que Cultura, que Nação, que Povo se pode julgar mandante de outra Cultura, de outra Nação, de outro Povo? 
Lucas Papademos, na resposta à estupidez alemã, terá também lembrado que a fronteira entre a civilização e a barbárie é muito frágil e ténue. E, na verdade, se na vida há coisas precárias, essa fronteira é uma delas. O que é incompreensível e perigoso é andar tanto dito europeu entretido a tratar do seu umbigo sem ver para onde se dirige o caminho que pisa. A história já mostrou demasiadas vezes que, na direcção da barbárie, chega-se a um ponto em que já não há bilhetes de volta, só há bilhetes de ida.
Mas nós, os autodenominados civilizados, temos uma certa apetência para brincar com o fogo...

domingo, 5 de fevereiro de 2012

Keith Jarret

Pensamentos de domingo

«Contra a estupidez os próprios deuses lutam em vão.»
Friedrich Schiller

«Para se ter alguma autoridade sobre os homens, é preciso distinguir-se deles. É por isso que os magistrados e os padres têm gorros quadrados.»
Voltaire

«Nudista pobre é aquele que não tem o que despir.»
Sofocleto
In Paulo Neves da Silva, Dicionário de Citações, Âncora Editora

sábado, 4 de fevereiro de 2012

Ao sábado: momento quase filosófico


Uma história sufi.
Um homem precipita-se, afogueado, para casa de um dervixe, empurra a porta e exclama:
— Depressa! Depressa! É preciso fazer qualquer coisa! Um macaco acaba de apanhar uma faca!
— Não te inquietes — diz-lhe o dervixe. — desde que não seja um homem...
In, Jean-Claude Carrière, Tertúlia de Mentirosos, Teorema.


sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Novas Oportunidades (2)

1. Na introdução do designado Guia de Operacionalização de Cursos de Educação e Formação de Adultos, editado pela Agência Nacional para a Qualificação (1.ª edição, Maio de 2009), afirma-se que os pressupostos conceptuais dos Referenciais de Competências-Chave, que serviram de base para a organização dos referenciais da formação do Catálogo Nacional de Qualificação, «impulsionaram a criação de uma oferta formativa que tem sabido valorizar e promover uma cidadania activa, de inclusão social e profissional, (re)criando dinâmicas de intervenção nas comunidades regionais e locais que têm contribuído para a concepção de uma metodologia de trabalho diferente e única no panorama da formação, quer escolar quer profissional» (o sublinhado é meu).
Uma afirmação deste teor teria certamente relevância se tivesse sido escrita por uma equipa de avaliação externa independente, a quem tivessem sido proporcionadas condições de acompanhamento, no terreno, da implementação e do desenvolvimento dos cursos de educação e formação de adultos (cursos EFA). Mas, na verdade, esta afirmação não resulta de um trabalho sério de avaliação externa. Esta afirmação é somente um auto-elogio. 
Avaliação externa, de que eu tenha conhecimento, só tivemos aquela que se debruçou sobre a satisfação dos alunos (formandos, na terminologia oficial das Novas Oportunidades), cuja fiabilidade é, na minha opinião, francamente questionável, atendendo ao especialíssimo contexto desta formação (quer quanto à rápida obtenção de resultados que naturalmente satisfez muitos dos interessados, quer quanto à gigantesca máquina de propaganda política que a envolveu e que teve a participação directa e constante dos mais altos responsáveis do Governo de então, em regulares e mediáticas cerimónias de entrega de prémios, em inflamados discursos públicos, etc. etc.). Uma avaliação independente realizada de modo sóbrio, sem espalhafato mediático, dirigida à qualidade da formação ministrada e à qualidade da formação efectivamente adquirida, realizada nas escolas e centros de formação durante um prolongado período de tempo nunca foi realizada. 
Por isso, o auto-elogio vale o que vale. Pessoalmente, tenho as mais sérias reservas sobre a factualidade da afirmação. Do meu conhecimento pessoal e do conhecimento partilhado por muitos colegas, não obtive quaisquer dados que se possam considerar próximos do cenário descrito pelo auto-elogio. Mas os meus dados também valem o que valem. O que se exige mesmo é uma avaliação independente e séria sobre o trabalho realizado e os resultados obtidos. Essa avaliação já devia ter sido feita e não se compreende que não o tenha sido.

2. Do ponto de vista conceptual, os cursos EFA, assim como os processos de RVCC, partem de um arquétipo que se pode definir deste modo: «Valorização e validação das aprendizagens adquiridas em diversos contextos, numa perspectiva de aprendizagem ao longo da vida» de modo a que «qualquer aprendizagem realizada em contexto formal ou informal, possa ser validada e capitalizável, no respeito pela condução que cada formando faz do seu percurso pessoal de educação e formação.» (in Guia de Operacionalização de Cursos EFA). Eu estou de acordo com este pressuposto. Contudo, o problema não está no princípio da valorização e da validação dessas aprendizagens, o problema está nos três pontos seguintes: 

i) Que valorização deve ser dada às aprendizagens adquiridas em diversos contextos?
O problema da valorização destas aprendizagens tem ligado a si o problema do valor que a sociedade atribui ou deve atribuir ao saber e ao saber-fazer (e, já agora, um outro problema anterior a este, que é o da natureza da relação entre um e outro). 

ii) Quais são os critérios adequados para a validação dessas aprendizagens?
Este é um problema técnico — particularmente pertinente nos cursos EFA e directamente relacionado com o ponto seguinte.

iii) Conforme estão estruturados, os cursos EFA visam e/ou possibilitam, de facto, uma validação séria e fiável?
Na verdade, uma coisa são os processos de RVCC (Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências), outra são os cursos EFA. Conceptualmente, os segundos podem ser um complemento dos primeiros ou podem ser uma via autónoma. A questão está em saber se, num caso e no outro, os cursos EFA cumprem ou podem cumprir a sua função.

É sobre estes três aspectos que procurarei deixar algumas observações, no texto da próxima semana.

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Quinta da música - Marin Marais

Trechos - Hervé Juvin

«Não há democracia sem circunscrição de uma sociedade humana que se fornece de leis num espaço, fechado por uma fronteira, e que distingue os seus dos outros. É a própria condição da autonomia, debater e adoptar as suas leis, sem que uma instância exterior lhe imponha a sua vontade. E não há certamente democracia sem controlo das trocas, quer dos homens quer dos capitais, dos bens e dos serviços como das representações, que asseguram a primazia da sociedade sobre a economia, ao medir o lugar que é dado ao negociante e ao banqueiro, as duas ameaças permanentes à segurança individual e à unidade social, e sobretudo tornam possível a unidade interna pelas mutualizações escolhidas. Encarar assim a democracia, é compreender a que ponto nós vivemos, desde há uma geração ou menos, sob uma nova heteronomia, a dos mercados financeiros, em que ninguém pode dizer que são a expressão de escolhas livres e informadas de cada um dos actores da economia, a que ponto as nossas sociedades sacrificaram a sua autonomia à ilusão do progresso pelo crescimento infinito, sob a égide do novo regime de verdade caracterizado pelo preço de mercado, pelo contrato, pela concorrência e conformidade.»
Hervé Juvin
Gilles Lipovetsky, Hervé Juvin, O Ocidente Mundializado, Edições 70.