quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Um país sem(-)abrigo

A recente condenação a uma multa de 250 euros de um sem-abrigo, por ter tentado roubar um polvo e um champô (no valor de €25,66), num supermercado Pingo Doce, é o enésimo episódio que revela o desnorte em que o nosso país anda envolvido. A corrida ao disparate é quotidiana. A busca da figura mais tonta é contínua. Os concorrentes são múltiplos e empenhados. O verdadeiro reality show não passa nas televisões, passa todos os dias na realidade portuguesa.
Nesta história, não se sabe quem é que tem menos juízo: se o Pingo Doce, se o Ministério Público, se o juiz, se o legislador — o sem-abrigo não é certamente. Parece-me até que, no meio deste ridículo, o mais lúcido é capaz de ser o sem-abrigo, que nunca pôs os pés no tribunal e que continua incontactável, pois, espantosamente, não tem um abrigo para onde possa ser enviada a correspondência oficial a intimá-lo. E, ao que se sabe, enquanto não se conseguia contactar o feroz criminoso, no tribunal, discutia-se empenhadamente se a tentativa de roubo se destinava a «consumo imediato» ou não. Após muito debate e muita análise pericial, o senhor juiz chegou a conclusão de que não senhor, de que não ficou provado que a tentativa de furto se destinava a «satisfazer necessidades imediatas». Por isso, o sem-abrigo levou com uma multa agravada. Se fosse para «satisfazer necessidades imediatas» a pena seria mais leve. Segundo ouvi na rádio, o obstáculo que inviabilizou a tentativa de furto ser classificada como destinada a «satisfazer necessidades imediatas» foi a presença do champô entre o material furtado. Compreende-se a dúvida do juiz: como é que se podia ter a certeza de que o sem-abrigo tinha intenções, mal saísse do supermercado, de ir imediatamente lavar a cabeça? Ninguém pode ter essa certeza. Ora, na dúvida, há que lhe aplicar uma multa quase dez vezes superior ao valor do material furtado.
Chegados aqui, só se pode perguntar: que se deve fazer a esta gente? E não me refiro ao sem-abrigo.

P.S. — Pena é que não entreguem a este juiz a incumbência de julgar os Isaltinos, os Oliveira e Costa e os demais do mesmo género. Não se sabe é se o critério se manteria...