terça-feira, 31 de dezembro de 2013

A propósito dos votos de «Bom Ano Novo»

Particularmente em tempos de crise, alguns rituais enfrentam certos problemas de sentido. É o caso do ritualizado voto de «Bom Ano Novo». No contexto da crise em que estamos metidos — cuja duração recolhe a desgraçada unanimidade de nos atirar a esperança da melhoria de vida só para meados dos próximos anos 20, se não houver uma ruptura com a política que tem sido seguida — formular o desejo de «Bom Ano Novo» só terá razão de ser se a formulação for acompanhada de um rasgado sorriso de ironia ou de uma enorme inconsciência. De outro modo não faz sentido. 
A não ser que os votos de «Bom Ano Novo» signifiquem votos de que em 2014 o governo de Passos Coelho caia, de que a Tróica saia e de que uma política centrada na defesa do Estado Social e no combate às desigualdades seja iniciada. Se assim for, a formulação de tais votos será certamente mais virtuosa, ainda que, mesmo deste modo, subsista um problema: os governos não caem com votos formulados à cadência das badaladas. Para o bem ou para o mal, os governos só caem se forem forçados a cair, e para que isso aconteça é necessário que cada um de nós, nos momentos decisivos, não se furte à sua parte de responsabilidade na oposição política, sindical e cívica à governação que temos tido.
Caso contrário, nem o governo cai nem o ano de 2014 será melhor do que este que agora termina.

domingo, 29 de dezembro de 2013

«O início do fim – uma nova era de recursos educativos ao dispor»

Artigo de César Israel Paulo, Presidente da ANVPC (Associação Nacional dos Professores Contratados), publicado no jornal Público (27/12/13):
«No dia 11 de dezembro, Nuno Crato referiu que, em breve, o ministério que tutela abrirá vagas de quadro para docentes, pois necessita de “sangue novo” nas escolas face ao elevado número de aposentações que se têm vindo a registar.
Estas declarações podem parecer inesperadas, uma vez que a política educativa que este Ministério da Educação e Ciência (MEC) colocou em marcha tem retirado ao sistema de ensino público uma parte significativa dos seus recursos, propagandeando uma sucessão de indicadores de “professores a mais” e um regime muito discutível de “redução de alunos”. No entanto, devo esclarecer os leitores que no passado mês de novembro foi amplamente difundido que o Estado português, depois de múltiplas queixas de docentes à Comissão Europeia (CE) demonstrando o limite de precariedade laboral a que o próprio Estado sujeita os professores contratados (mantendo-os com contratos sucessivos), foi intimado a resolver esta questão discriminatória (alegada violação da Diretiva 1999/70/CE) e que o deverá fazer até ao próximo mês de janeiro.
Nuno Crato tem agora uma bomba-relógio em mãos, quer pelo tempo curto que detém para solucionar o problema, quer pelas implicações políticas, e jurídicas, que um trabalho menos cuidado poderá vir a desencadear. Vejamos que durante anos a fio estes docentes precários se viram, por motivos vários, ultrapassados, ou afastados de serem integrados nos quadros, vendo, nos seus grupos de recrutamento, a existência de um número de vagas diminutas, ou inexistentes. Conhecemos casos de indivíduos a quem foi dificultada a realização da profissionalização em serviço, tendo sido ultrapassados por colegas advindos de cursos via ensino (autorizados a abrir sem que tenha sido previamente acautelada a entrada para o quadro destes profissionais que já lecionavam há vários anos). Estes são apenas exemplos soltos das muitas atrocidades que foram cometidas em momentos anteriores de abertura dos quadros, e que não poderão ser repetidas, não podendo a tutela, enquanto elemento regulador, alegar desconhecimento das mesmas e insistir em políticas discriminatórias, num Estado de direito e deveres.

Caso venha a ser realizado um concurso de vinculação sem a aplicação da justiça necessária, com critérios uniformes, o MEC estará a colocar um ponto final a milhares de vidas dedicadas à docência, e em lugar de resolver um problema estará a agudizá-lo, dando forma a um “genocídio laboral”. Tal situação implicaria um volume ainda maior de denúncias à CE e aos tribunais, e o direito de oportunidade agora concedido a Portugal para solucionar a precariedade docente teria sido “demoniacamente” utilizado, lesando os mesmos de sempre – aqueles que, sendo necessidades permanentes do sistema de ensino público, nunca foram integrados no quadro, não tendo quaisquer responsabilidades nas alterações consecutivas levadas a cabo no sistema público de educação (ideológicas e curriculares), durante a vigência dos seus vários contratos, e que, de ano para ano, têm aumentado a precariedade laboral destes professores.
Nessa medida, uma futura vinculação deverá respeitar, entre outros, os três seguintes limites:
- ser restrita aos docentes que lecionaram no ensino público, ou ver-se-iam ultrapassados por indivíduos do ensino privado (curiosamente já enquadrados na regulamentação da diretiva referida);
- integrar todos os docentes com mais de um determinado número de anos de serviço (respeitando, paralelamente, a sua graduação profissional), cumprindo estritamente o definido na diretiva, e aplicando-a uniformemente a todos os grupos de recrutamento (sem quaisquer exceções ou diferenciações) e nunca com distribuições disformes, incompreensíveis, como as aplicadas no recente concurso de vinculação extraordinária. Caso tal situação não se aplique nestes moldes, teremos uma nova situação de desigualdade no acesso às funções públicas, sendo que a CE já entendeu que o subterfúgio de preterir uma área científica em prol de outra não poderá substanciar preterir profissionais precários com muitos anos de serviço, em prol de outros, muitas das vezes com menos tempo de funções;
- não existir qualquer alteração aos currículos nacionais ou ao regime de habilitações para os grupos de recrutamento vigentes, pois se tal viesse a ocorrer seria uma vez mais viciar o jogo, e tal tomada de decisão mostraria uma má-fé de tal ordem que nenhum enquadramento jurídico a conseguiria contornar, sendo bem paga nas instâncias internacionais e nacionais, tal como em momentos eleitorais posteriores.

É ainda importante realçar que o custo anual, resultante desta vinculação, poderá representar um valor insignificante relativamente ao da indemnização a liquidar pelo incumprimento da diretiva. Será, nessa medida, que algum cidadão compreenderia uma tomada de decisão pela continuidade da ação judicial internacional, e possível aplicação de tão pesada multa? Alguém compreenderia que um político responsável escolhesse a via do pagamento indemnizatório a entidades externas em lugar do fortalecimento dos recursos educativos do país?
É tempo de o MEC se reunir com as estruturas representativas dos professores contratados, entre elas a ANVPC, no sentido de estabelecer um modelo equitativo para a estabilização deste corpo docente. Veríamos, desta forma, a educação pública dotada de “sangue novo”, proporcionando, paralelamente, o aumento das respostas educativas e correspondente crescimento educacional e civilizacional de um país ainda repleto de desigualdades.
É tempo de este Governo demonstrar que acima de qualquer ideologia existem leis a cumprir, e essa observância deverá atingir também limites de inteligibilidade, criteriosidade e humanismo. É o momento certo para colocar um fim à precariedade docente, e por isso colocar em marcha o início do fim.»
César Israel Paulo

sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Nacos

«O Sr. Napumoceno dedicou saborosas páginas do seu testamento à sua estada naquela ilha e falou do privilégio que fora ter pessoalmente conhecido o distinto Sr. David Ben'Oliel, pessoa de trato fino e dono não só da maior casa comercial da ilha como também de quase todos os botes da vila. Disse do êxtase que lhe causara o luar na areia branca e da festa que fora um baile no Rabil onde o Sr. David era tratado como se fosse um rei. Mas do que ainda sentia uma melancólica saudade era de um violão perdido na praia de João Cristão numa noite de lua cheia e maré tão seca que ele e os seus ilustres anfitriões, Sr. David e D. Bibi, podiam passear sobre a areia dura da maré rasa sem molhar os pés. Aliás, por feliz coincidência, passava igualmente férias na Boa Vista uma irmã da D. Bibi normalmente residente na América do Norte. Vivendo na mesma casa, pois que o Sr. Napumoceno era hóspede dos Ben'Oliel, fora forçoso travarem relações de amizade e na verdade os dois sozinhos passearam as praias da ilha e tiveram longas horas de conversa a sós. Na época o Sr. Napumoceno andaria entre os 45 e os 50 anos e não poderia dizer que não ambicionasse casar, ter família, uma esposa, um lar. E ouvindo aquele violão distante, ele com os pés naquela areia de prata queimada, o mar docemente marulhando perto deles, sentiu que invejava aquele senhor que soubera fugir à confusão das terras distantes e abrigar-se naquela paz de que era rei e senhor, com cemitério familiar exclusivo e capela própria. Mas num momento do passeio e em que D. Jóia falava da América, da constante confusão e azáfama, nem tempo para coçar na cabeça uma pessoa tinha, uma ondinha aproximou-se ameaçando perigosamente os seus sapatos. Rindo alto e em gargalhadas argentinas e chamando à onda de ondinha atrevida, D. Jóia, para não molhar os sapatos, pulou para o Sr. Napumoceno passando-lhe os dois braços pelo pescoço. O Sr. Napumoceno confessaria depois ter aspirado aquele perfume suave e ao mesmo tempo forte para os seus sentidos e cambaleando menos pelo peso dela que por ela sentiu que uma palavra, que felizmente ela não ouviu, lhe escapava da boca. Porque D. Jóia, já entrada nos 40 mas conservando uma juvenil frescura, os seus seios opulentos como que em constante oferta de carícias, podia ser considerada uma senhora bem apetecível, e se fosse modernamente, assim como chamariam a sua atitude para com os pobres de solidariedade, chamariam à D. Jóia de um bom pedaço de fêmea. Mas deteve-o o respeito aos seus anfitriões e apenas no baile que lhe fizeram em despedida no Rabil se atreveu a dizer-lhe, mas lá pelo meio da noite e dançando uma morna, que tinha valido a pena conhecer Boa Vista.»
Germano Almeirda, O Testamento do Sr. Napumoceno da Silva Araújo, Editorial Caminho.

segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Impreparações, irresponsabilidades, arbitrariedades

Quando alguém se propõem governar um país, supõem-se que da parte do proponente tenha havido a preocupação e a responsabilidade de se preparar política e tecnicamente para essa missão. Isto é o que qualquer sensato cidadão pressupõem, isto é o que qualquer indivíduo medianamente consciente exige a si próprio e aos outros. Surpreendentemente a realidade tem vindo a desmentir o bom senso com uma impressionante teimosia. A última década foi mesmo particularmente cruel no modo como desfez qualquer ilusão a respeito da suposta preparação política e técnica de quem se candidata a governante.
Há dez anos tínhamos Durão Barroso como primeiro-ministro. Com sinais claros de recalcamentos não resolvidos decorrentes de opções políticas juvenis, governou em ziguezague, sem rumo nem coerência, com vários episódios de comportamento impulsivo e irresponsável: desde o caso do prometido choque fiscal (que terminou num aumento de impostos...) até ao bizarro papel de recepcionista de Busch, Aznar e Blair, na preparação da guerra do Iraque. A meio do mandato, fugiu para a Comissão Europeia, furtando-se às responsabilidades que tinha assumido perante o seu eleitorado e perante o país.
Há nove anos, tínhamos Santana Lopes como primeiro-ministro. Foi o político que melhor personificou a desconsciência política. Habituado a ambientes frívolos via o governo como um prolongamento desses ambientes. Foi exonerado ao fim de oito meses.
Há oito anos, tínhamos José Sócrates como primeiro-ministro. Sem preparação técnica nem cultura política, não precisou delas para vencer eleitoralmente a picaresca figura do seu antecessor. Assentou a sua acção no voluntarismo irresponsável e na acrítica adesão à designada terceira via «blairista». Obscecado, arrogante, psicologicamente desequilibrado, politicamente oportunista, viveu da imagem e para a imagem. Sem substância no pensamento nem competência na acção, conduziu o país à bancarrota.
Há dois anos e meio que temos Passos Coelho como primeiro-ministro. Chegou ao poder sem nenhuma experiência governativa e sem fazer a menor ideia do que é liderar um país. Prometeu tudo e tem feito precisamente o seu contrário. É confrangedora a sua impreparação política e técnica. Crente fanático em meia dúzia de ideias liberais mal compreendidas e pior fundamentadas, entrega-se, com o denodo de um talibã, ao exercício de satisfazer os seus dogmas e de levar o país à pobreza generalizada.
Nos últimos dez anos, tivemos, assim, quatro primeiros-ministros unidos pela irresponsabilidade de se candidatarem a um cargo para o qual manifestamente não estavam preparados.
Independentemente da proximidade ou do afastamento que se tenha em relação às famílias políticas de que eles são oriundos, é um facto que nenhum deles reunia as condições necessárias para ser primeiro-ministro.
É pois preocupante a irresponsabilidade dos próprios, que não viram necessidade de se prepararem para liderar um país, e a irresponsabilidade que, com estes exemplos, tende a generalizar-se. O sentido de serviço público e a responsabilidade que lhe está inerente desapareceram.

Mas, curiosamente, é quem nunca se preparou nem sujeitou a nenhuma avaliação de conhecimentos nem de capacidades, para o exercício das altas funções que desempenharam ou desempenham, quem mais fala e quem, com arbitrariedade, impõe (pseudo) provas de avaliação a profissionais cujo desempenho é anualmente sujeito a avaliação e cuja certificação académica resultou de múltiplas provas de avaliação.
Curiosamente, é quem, de forma reiterada, revela objectiva incompetência para governar sem violar a Lei — veja-se o escandaloso número de decretos-leis «chumbados» por inconstitucionalidade — quem mais enche o discurso com termos como: rigor, competência e exigência.
Curiosamente, é quem mais desrespeitoso é para com um órgão de soberania, como é o caso do Tribunal Constitucional, com comportamentos e atitudes que configuram grosseria e desconsideração institucionais, quem se insurge contra comportamentos rebeldes da parte de quem está a ser vítima de humilhação e de prepotência, como é o caso dos professores contratados.

De impreparação em impreparação, de irresponsabilidade em irresponsabilidade vai-se traçando o caminho da degradação, da arbitrariedade e da prepotência. É cada vez mais necessário um levantamento cívico.

quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

Crato: a necessidade da demissão

O que esta manhã aconteceu em dezenas de escolas, durante a realização da (pseudo) prova dirigida aos professores contratados, deveria ser razão mais do que suficiente para que o responsável pela pasta da Educação se demitisse de imediato. 
Se Nuno Crato não se demitir, ficaremos com a certeza de que para além da objectiva impreparação técnica e política para o exercício do cargo também existe uma objectiva falta de consciência sobre as responsabilidades éticas e cívicas das suas funções. 
Os acontecimentos ocorridos são de tal forma graves que não existe outra saída decente que não seja o abandono do posto de ministro. Para além da adesão à greve ter sido esmagadora, mesmo nas escolas onde a (pseudo) prova se realizou — o que deixa Nuno Crato votado a um isolamento insuportável —, a não realização da mesma em múltiplos estabelecimentos de ensino, por falta de condições, e as centenas de casos de assumida e consciente recusa da sua prestação constituem factos incontornáveis que retiram a autoridade política ao ministro da Educação. Desde que tomou posse, a sua descredibilização tem sido regular e progressiva e agora chegou a um ponto de não retorno. 
Ter a capacidade para reconhecer isto será um acto de clarividência, provavelmente o único do seu mandato. Não ter essa capacidade conduzirá a um agravamento da situação de guerra aberta entre o governo e os professores. Teimar na realização da (pseudo) prova, marcando nova data, irá provocar novos e mais graves conflitos, pois não havendo uma única razão séria que sustente a existência desta prova, aos professores só resta o caminho da defesa da sua dignidade profissional.

segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Um imperativo ético

Parece óbvio que fazer greve à vigilância da (pseudo) prova de avaliação dos professores contratados não é apenas um direito, é acima de tudo um imperativo de ética profissional. Não colaborar com mais esta indecorosa farsa avaliativa é um dever que a consciência profissional determina.



domingo, 15 de dezembro de 2013

A prova que não deve e não pode realizar-se

A seriedade e a dignidade profissionais não podem aceitar que se realize uma (pseudo) prova que nada tem a ver com avaliação de conhecimentos nem de capacidades dos professores contratados. 
Fruto da demência política de Rodrigues e do fanatismo ideológico de Crato, esta (pseudo) prova constitui um manifesto acto de abuso de poder, porque nada tem que o fundamente.
Se o Ministério da Educação considera que o Ensino Superior que forma os professores é um ensino fraudulento, deve começar por demonstrá-lo e, se conseguir fazê-lo, deve então retirar às instituições do ensino superior responsáveis pela fraude a respectiva acreditação institucional.
Se o Ministério da Educação considera que o seu modelo de avaliação do desempenho docente, ao qual anualmente são submetidos os professores contratados, é um modelo fraudulento, deve começar por extinguir o modelo que ele próprio criou. 
O que o Ministério da Educação não pode é fazer dos professores contratados as cobaias e as vítimas da sua cobardia política e da sua inépcia em relação ao que alegadamente pretende contestar — a qualidade dos cursos do ensino superior — e da sua incongruência relativamente ao modelo de avaliação do desempenho docente por si imposto.
No total, estes professores já foram submetidos a dezenas de avaliações académicas e profissionais que certificam a sua competência para o exercício das funções que desempenham. Quem ainda não se submeteu a nenhuma prova que certifique os conhecimentos e as competências necessárias às funções que actualmente desempenha foi Nuno Crato, ministro da Educação.
Este governo tem de saber e este ministro tem de aprender que não pode brincar e muito menos achincalhar a classe profissional dos docentes. A irresponsabilidade do governo e do ministro não podem ser pagas pelos professores. Esta prova não deve e não pode mesmo realizar-se.

Trechos — Joseph Stiglitz (3)

«Os mercados, por si só, mesmo quando eficientes e estáveis, costumam conduzir a níveis altos de desigualdade, a resultados que são amplamente vistos como injustos. Pesquisas recentes sobre economia e psicologia mostraram a importância que os indivíduos dão à justiça. Mais do que tudo, a perceção de que o sistema político-económico foi injusto é o que motiva as manifestações em todo o mundo. Na Tunísia, no Egipto e noutras partes do Médio Oriente, a questão não era meramente a dificuldade em encontrar trabalho, mas sim que os empregos disponíveis eram ocupados por quem tinha ligações políticas.
Nos Estados Unidos e na Europa, as coisas pareciam mais justas, mas só de um ponto de vista superficial. Os que se formavam nas melhores escolas com as melhores notas tinham melhores hipóteses de arranjar um bom emprego. Mas o sistema estava viciado porque os pais endinheirados enviavam os filhos para os melhores infantários e para as melhores escolas primárias e secundárias, e esses estudantes tinham muito mais hipóteses de entrar nas universidades das elites.
[...] 
A crise financeira desencadeou uma nova perceção de que o nosso sistema económico não era só ineficiente e instável, como também era fundamentalmente injusto. [...] O que aconteceu no meio da crise revelou que não era o contributo para a sociedade o que determinava a remuneração de alguém, mas sim outra coisa: os banqueiros recebiam prémios enormes, ainda que o seu contributo para a sociedade — e mesmo para as empresas — tivesse sido negativo. A riqueza dada às elites e aos banqueiros parecia surgir da sua capacidade e da sua vontade de tirarem vantagem de outros.»
Joseph E. Stiglitz, O Preço da Desigualdade, Bertand Editora.

quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Contra a prova absurda



Acerca da crise e da corrupção (14)

«Os sistemas autárquicos locais estão tomados pelos negócios, em particular os do urbanismo, e afastam todos os que possam pôr em causa a ordem desde há muito estabelecida: conluio, conúbio entre promotores imobiliários, chefes partidários locais e autarcas. [...]
Os pelouros do urbanismo das Câmaras municipais passaram a ser, muitas vezes, locais de troca de favores entre autarcas, dirigentes partidários e promotores imobiliários. Nesses espaços, todas as práticas acontecem, desde a valorização ilegítima de terrenos ao tráfico de influências generalizado — todas, excepto as que conduziriam à estruturação apropriada do território e à promoção de qualidade de vida para os cidadãos. [...]
Em quase todas as autarquias, quase metade [dos recursos] vai para pagar salários, ou seja, para alimentar uma máquina de pessoal gigantesca. Máquina desproporcionada face ao serviços prestados porque, muitas vezes, foi sendo engordada com a entrada em catadupa de "boys" partidários, cuja contratação não resulta da necessidade de suprir a falta de pessoal qualificado para as missões das autarquias, mas sim garantir "tachos".
Esta situação agravou-se ainda mais nos últimos tempos devido à proliferação das empresas municipais, cujo regime de funcionamento facilitou estas práticas. Na última década, as empresas municipais foram nascendo como cogumelos em todo o país.. Na grande parte dos casos, têm servido apenas para distribuir empregos a "boys" dos partidos e a favorecer negociatas. A maioria dessas empresas não tem nem nunca teve razão de existir: não atingem um volume de negócio mínimo, não pagam regularmente a fornecedores, não geram emprego. [...] A sua sobrevivência é apenas garantida por subsídios e indemnizações compensatórias atribuídas pelas autarquias. Em grande parte dos casos, não têm sequer um proveito social claro e apenas servem para absorver o dinheiro dos nossos impostos. Haverá, com certeza, algumas excepções e empresas municipais com razão de existir e um funcionamento regular. Essas devem ser preservadas se apresentarem uma utilidade social evidente, uma actividade empresarial salutar que crie trabalho e bem-estar social. As restantes deveriam encerrar portas rapidamente.»
Paulo Morais, Da Corrupção à Crise — Que Fazer?, Gradiva.

Um bom exemplo


«José António Pinto deixou esta tarde [terça-feira, 10/12/13] na Assembleia da República a medalha de ouro comemorativa do 50º aniversário da declaração Universal dos Direitos Humanos, que lhe tinha sido entregue como reconhecimento pelo seu trabalho no Porto. O assistente social da Junta de Freguesia de Campanhã afirmou que trocava a medalha por outro modelo de desenvolvimento económico» (RTP Notícias). 
Para ouvir aqui e ver aqui.

terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Poemas

AMÁTIA

Timbórica, morfia, ó persefessa,
meláina, andrófona, repitimbídia,
ó basilissa, ó scótia, masturlídia,
amata cíprea, calipígea, tressa

de jardinatas nigras, pasifessa,
luni-rosácea lambidando erídia,
erínea, erítia, erótia, erânia, egídia,
eurínoma, ambológera, donlessa.

Áres, Hefáistos, Adonísio, tutos
alipigmaios, atilícios, futos
da lívia damitada, organissanta,

agonimais se esforem morituros,
necrotentavos de escancárias duros,
tantisqua abradimembra a teia canta.

Jorge de Sena

domingo, 8 de dezembro de 2013

A prova que faltava?

E vai-se consumindo o tempo, gastando a energia, desperdiçando a concentração, perdendo a paciência com a estupidez institucionalizada, com os modismos irresponsáveis e com as incompetências instaladas  no Ministério da Educação. É isto que tem sucedido aos professores nos últimos oito anos. Desde há uns oito longos anos que fanatismos irresponsáveis tomaram conta do Ministério da Educação e apostaram em desviar a atenção dos docentes da sua verdadeira função: ensinar.
No decurso destes anos, os fanáticos políticos e técnicos do Ministério da Educação, em lugar de se preocuparem com a qualidade dos programas disciplinares, com a qualidade da formação contínua, a nível científico e a nível pedagógico (por esta ordem), com a responsabilização e a valorização da função docente; preferiram inundar os professores com procedimentos e tarefas burocráticas, preferiram fomentar a divisão e a instabilidade profissionais, preferiram impor, da forma mais incompetente que se pode imaginar, uma (pseudo) avaliação do desempenho, que constituiu e constitui uma farsa única,  preferiram, acrítica e grosseiramente, importar das empresas um modelo de gestão que ideologicamente corresponde a um regresso a paradigmas arcaicos de liderança e que psicologicamente derivará de desequilíbrios e de carências de figuras tutelares, preferiram transformar as salas de aula em armazéns de alunos; preferiram..., etc., etc.

Surgiu agora a prova que faltava sobre a demência política dos actuais e anteriores responsáveis pelo nossa Educação. Pensado por L. Rodrigues, do governo de Sócrates, e executado por Nuno Crato, do governo de Passos Coelho, o exame, a que se pretende submeter os professores contratados, tem algumas virtudes: mostra os laços que efectivamente unem Rodrigues a Crato, e Sócrates a Coelho — por muito que isso aparentemente desagrade a alguns socratistas; mostra a forma escurril como Crato faz política e a FNE faz sindicalismo; e confirma a enorme desorientação de que há muito padece o ministro da Educação.
Aceitar o critério da experiência para isentar os professores de fazer a prova é um critério justo — no mínimo, porque essa experiência, segundo as regras do sistema em que estamos, já foi validada por um modelo de avaliação do desempenho docente, que Crato não se cansa de considerar como possuindo rigor e fiabilidade. Mas se a experiência profissional destes professores já foi avaliada rigorosa e fiavelmente como boa, muito boa ou até excelente, com que  justificação se faz tábua rasa dessa avaliação e se pretende submetê-los a uma avaliação suplementar? E com que fundamento se pretende isentar uns e obrigar outros? A experiência é um bom critério para ser aplicada a uns e não é um bom critério para ser aplicada a outros? Que razões científicas ou pedagógicas permitem diferenciar um professor com 4 anos de experiência profissional de um outro que tem apenas mais um ano ou mais uns meses dessa experiência (em alguns casos, apenas mais dias)? Como não existem razões científicas nem pedagógicas para essa diferenciação, nem aqui nem em lado algum, o critério para isentar uns e obrigar outros à realização da prova é o critério da arbitrariedade: são 5 anos, porque sim (precisamente o mesmo critério que L. Rodrigues utilizou para definir que só contavam os 7 últimos anos da carreira para se ascender a professor titular: porque sim). Poderiam ter sido 3, 4,  6 ou também 7 anos, mas foram 5, porque, naquele dia, a Crato o 5 afigurou-se-lhe empático.
A desorientação e o fanatismo de Crato levam-no, assim, a ter de confirmar a incompetência do seu próprio modelo de avaliação do desempenho docente e a confirmar que não tem rumo, que não sabe o que pretende e que em momentos de atrapalhação não hesita em usar a arbitrariedade.
Era esta a prova que faltava para Crato ser demitido?

quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Para clicar


Trechos - Joseph Stiglitz (2)

«Três temas ressoaram com força pelo mundo: que os mercados não funcionavam como deviam, porque não eram, obviamente, nem eficientes nem estáveis; que o sistema político corrigira as falhas do mercado; e que o sistema político e o sistema económico eram fundamentalmente injustos. [...] Os três temas estão intimamente relacionados: a desigualdade é causa e consequência do falhanço do sistema político e contribui para a instabilidade do nosso sistema económico, que por sua vez contribui para uma maior desigualdade.
O falhanço dos mercados 
Os mercados não têm claramente funcionado como os seus defensores clamam. É suposto que os mercados sejam estáveis, mas a crise financeira global mostrou que podem ser bastante instáveis, com consequências devastadoras. Os banqueiros apostaram que, sem ajuda governamental, tanto os bancos como toda a economia cairiam. Mas se olharmos de perto para o sistema, apercebemo-nos de que nada disso aconteceu por acaso; os banqueiros tinham incentivos para se comportarem assim. 
Supostamente, a virtude do mercado é a sua eficiência. Mas é óbvio que o mercado não é eficiente. A mais básica lei económica — necessária para que a economia seja eficiente — é a da procura ser igual à oferta. Mas vivemos num mundo onde existem enormes necessidades não atendidas — investimentos para tirar os pobres da pobreza, para promover o desenvolvimento de países africanos menos desenvolvidos, entre outros países do mundo, para melhorar a economia global de modo a enfrentar os desafios do aquecimento global. Ao mesmo tempo, temos vastos recursos subutilizados — trabalhadores e maquinaria que estão parados ou não produzem de acordo com o seu potencial. O desemprego — a incapacidade do mercado de criar emprego para tantos cidadãos — é o maior falhanço do mercado, a maior fonte de ineficiência, e uma grande causa de desigualdade.»
Joseph E. Stiglitz, O Preço da Desigualdade, Bertrand Editora.

segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Enquanto o formos permitindo...

Vivemos uma época medonha. Estilhaçam-se referenciais políticos, éticos e sociais com uma facilidade inimaginável. Implanta-se a lei da savana e os predadores atiram-se às presas com uma voracidade que já há muito não se via. Encobre-se a selvajaria dominante com um manto discursivo assente numa (pseudo) moralidade repleta de hipocrisia e de mentiras. Mantém-se intocável um sistema económico injusto, que garante a uma minoria a manutenção de privilégios escandalosos, enquanto milhares de homens e mulheres são atirados para o desemprego e milhares de crianças, idosos e doentes são arrastados para a miséria. É este quadro, fanaticamente mantido e fortalecido pelo governo, que sustenta a proliferação de múltiplas situações como a que foi noticiada na semana passada: apesar da alegada «profundíssima crise» que vivemos — à luz da qual é justificada a política de destruição maciça dos direitos de quem trabalha — as maiores fortunas nacionais continuam em acelerado desenvolvimento. Só em 2012, os 25 mais ricos de Portugal valorizaram as fortunas em 16%, e Américo Amorim, apenas à sua conta, conseguiu elevar para o dobro a sua riqueza. 
Para além de indigna, esta realidade é insuportável. Na verdade, de nenhum ponto de vista uma situação destas pode ser considerada aceitável, e só uma sociedade doente poderá ver isto com indiferença. É o nosso caso. Estamos anémicos, ou anestesiados, ou embrutecidos, ou outra coisa qualquer, o certo é que não estamos bem. Os limites da decência social já foram ultrapassados há muito e, contudo, nós mantemo-nos incrivelmente ineptos na oposição à barbárie.
E a barbárie prossegue e aprofunda-se em todas os domínios. O que se está a passar na empresa Estaleiros Navais de Viana do Castelo reveste-se de uma tão elevada gravidade que deveria exigir uma rigorosa investigação, quer parlamentar quer da Procuradoria-Geral da República. Entretanto, o governo vai despedir todos os trabalhadores da empresa, mais de seiscentos, e mostra-se satisfeito com o desfecho a que chegou.
Num outro domínio, o a Educação, uma outra forma de barbárie está prestes a ser levada a cabo: o governo, sem uma única justificação séria, pretende realizar exames a professores contratados, professores que (e estamos a falar de muitos milhares) há muito anos já deveriam estar no quadro, se a lei fosse cumprida. Sem respeito nem escrúpulo, nem a voz do Provedor de Justiça, o governo atende.
O fanatismo que alimenta estes governantes ensurdece-os e cega-os. Enquanto nós o formos permitindo...