quarta-feira, 31 de outubro de 2012

As bestas

Brincar com o sofrimento dos outros ou mostrar-se indiferente ou arrogante com a dor alheia deveria merecer o desdém proporcional à vileza desse comportamento, e isso deveria bastar. Todavia, não basta. A repulsa tem de ser manifestada. Por duas razões: porque o comportamento, apesar de infame, está a generalizar-se de forma aberta ou dissimulada; e porque a impunidade política e cívica não pode prosseguir.
Quem está a ser objecto de um processo de miserabilização e alvo de políticas que desprezam a dignidade humana não tem certamente vocação e menos ainda obrigação de aturar torpes «bitaites» de quem faz da fanfarronice a sua expressão narcísica. Na verdade, os portugueses já suportaram para além do imaginável não só a incompetência das elites políticas, mas também a incompetência das elites financeiras, que foram co-responsáveis e coniventes com os desvarios do governo anterior. Na realidade, nós não temos de suportar fanfarronadas de um banqueiro desequilibrado, que aproveita o púlpito, incompreensivelmente oferecido por alguns, para expelir dislates que a sua má formação produz. Sem nutrir o mínimo de respeito pelo «outro» — «outro» que pode ser uma criança filha de pais que não têm dinheiro para a alimentar — o aleivoso considera-se no direito de sarcasticamente perguntar e sarcasticamente responder: «O país não aguenta mais austeridade? Ai aguenta, aguenta.» 
Esta é a conduta representativa das qualidades das nossas elites: grosseiras e incompetentes, as bestas, não satisfeitas com o abismo para que conduziram o país, aproveitam a fragilização alheia para libertar traumas e recalcamentos que inconfessáveis frustrações originaram. As bestas estão à solta.

terça-feira, 30 de outubro de 2012

Bonecos de palavra

Bil Watterson, O Indispensável de Calvin & Hobbes, Gradiva.

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segunda-feira, 29 de outubro de 2012

A questão

Compreender a nossa elite política e a elite dos nossos comentadores é uma meta inatingível. 
Na quarta-feira passada, na Comissão de Finanças da Assembleia da República, Vítor Gaspar disse, em tom irónico, uma banalidade. De então para cá, o mundo dos comentadores ajoelhou-se, dobrou-se sobre si próprio e prestou veneração à vulgaridade. 
Gaspar disse que «existe um desvio entre aquilo que os portugueses querem que o Estado Social lhes forneça e os impostos que estão dispostos a pagar por esses serviços.» Apesar da questão estar intencionalmente mal formulada (porque, comparativamente com outros países, os portugueses pagam mais impostos e têm um Estado Social pior) e não trazer nada de novo, a nossa elite política e os nossos media, nos últimos dias, não fizeram outra coisa que não fosse reproduzir e comentar a trivialidade. Na verdade, a questão de se definir os limites do Estado e, em particular, os limites do Estado Social é antiga, não foi descoberta por nenhum Gaspar. 
O que de facto seria interessante era que Gaspar, ou qualquer outro constituinte das nossas elites,  explicasse, a quem paga os impostos, como é que existem países que, sem terem petróleo nem terem recursos naturais superiores aos nossos, conseguem ter um verdadeiro Estado Social e um nível de vida que não tem comparação com o português. Esta seria a verdadeira questão a aprofundar e não a questão mal-disposta e arrogante formulada pelo ministro das Finanças. Precisamente o ministro que deveria mostrar-se particularmente humilde perante os portugueses. Precisamente o ministro que tinha a obrigação de pedir indulgência aos contribuintes pela série de asneiras e de erros que cometeu, desde que assumiu funções.
Mas compreender a nossa elite política e a elite dos nossos comentadores é uma meta inatingível. O melhor mesmo é arredá-las do poder.

sábado, 27 de outubro de 2012

Nacos

Canto VIII

4
Shankra queria escutar a história de Bloom.
E Bloom disse, no que parecia um enigma: dias
divididos em dois, como se um tempo fosse
um terreno: na primeira parte do dia olha-se
para um ramo da floresta com espanto,
na segunda parte do dia o mesmo ramo
é um incómodo: onde o colocar?
Eis o que é estar vivo: são dois dias.

[...]

10
Bloom não pára, pois, de falar e Shankra não
pára de ouvir. Os símbolos — prossegue Bloom —
ocupam dois terços do planeta, o outro terço é ocupado
pelo mar. Instrumento da intimidade é a
sombra: mas olhamos para a nossa e ficamos
indecisos se somos animais bípedes
ou animais que rastejam. Onde estamos com mais
quantidade de verdade — na mancha que
avança sobre a terra ou na conversa
vertical sobre contabilidade e dicionários?
Gonçalo M. Tavares, Uma Viagem à Índia, Caminho.

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sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Avaliação docente: dois despachos (1)

Relativamente à avaliação do desempenho docente, foram hoje publicados dois despachos. Um, Despacho n.º 13981/2012, regulamenta «o processo de constituição e funcionamento das bolsas de avaliadores externos, com vista à avaliação externa da dimensão científica e pedagógica»; o outro, Despacho Normativo n.º 24/2012, define os parâmetros nacionais dessa avaliação externa. Não tive oportunidade de ler estes despachos com o detalhe devido, todavia, há dois aspectos que realçam imediatamente e que merecem observação:
1. A avaliação do desempenho dos professores, nos domínios científico e pedagógico (que são os domínios fundamentais da docência), confirma-se que vai continuar a ser feita através da observação de duas aulas de 90 minutos. Isto é, avalia-se o desempenho científico e pedagógico de quatro anos em 180 minutos! Por razões de natureza diversa, que a experiência revela e que a literatura científica sobre esta matéria explica, não é possível avaliar com seriedade e fidelidade a qualidade científica e pedagógica de um professor através da observação de duas aulas. Apesar de não ser possível, é isto que vai continuar a ser feito.
2. A avaliação das dimensões científica e pedagógica do desempenho docente, pela enorme importância de que se reveste, deveria ter como primeira preocupação a vertente formativa dessa avaliação. Se se pretende avaliar para melhorar a qualidade da docência, é imperativo que a componente formativa da avaliação seja prioritária. Contudo, o modo como está desenhado este modelo não contempla essa possibilidade. O avaliador externo não terá condições para o fazer, atendendo ao reduzidíssimo tempo de contacto com o avaliado e ao reduzidíssimo conhecimento que do seu desempenho pode ter. O objectivo desta avaliação é somente, e pobremente, classificativo.
Vamos, assim, prosseguir no mundo das aparências: avalia-se para se classificar, sem rigor nem fidelidade, e avalia-se para se dizer ao público que se avalia.

Procurarei, na próxima semana, acrescentar mais algumas observações sobre estes dois recentes despachos.

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Poemas

UM CORPO DE VERÃO

Era um corpo de verão que ondeava
Entre mil murmúrios de águas e sementes
Na sua nudez ardia o fogo dos pomares
Abracei a vigorosa doçura dos seus membros
Bebi em alta sede a inocência ardente
Conheci a sombra que floresce a brisa e o alimento
No centro enamorado da pátria arborescente.

António Ramos Rosa

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

O exemplo da EMEL

Ficámos a saber que a avaliação do desempenho e o salário dos funcionários da EMEL — Empresa Municipal de Estacionamento de Lisboa — vão deixar de estar dependentes do número de multas passadas e de bloqueamentos realizados. A razão para esta decisão, apresentada pelo vereador da Mobilidade da Câmara Municipal de Lisboa, Nunes da Silva, explica-se pelos «resultados perversos» que aquele sistema de incentivo à produtividade trouxe consigo, como, por exemplo, a negligência, por parte daqueles funcionários, na prestação de informações aos automobilistas. As receitas da EMEL subiram significativamente, mas a qualidade do serviço prestado ao utente piorou proporcionalmente.
Para aqueles que tudo gerem a partir de uma folha de Excel, esta decisão, para além de ser absolutamente incompreensível (as receitas da empresa tinham aumentado...) é uma derrota pesada. Para quem pensa que a motivação dos trabalhadores se deve fazer de modo semelhante à motivação do burro pela cenoura, fica perplexo com o fim daquele sistema de incentivos. Para quem pensa que a qualidade se revela pela quantidade e para quem reduz a gestão à busca desenfreada do lucro, o desmoronar de tal sistema é uma péssima notícia.
Mas, desgraçadamente, o que se passava na EMEL é o que ainda se passa no país: desde o provinciano frenesim por tudo o que se parece com avaliação quantitativa — supostamente medidora milagrosa do mérito de todos e de cada um (muito venerada pelos governos de Sócrates) — até à actual adoração pela governação sustentada em modelos matemáticos — supostamente fazedores de milagres financeiros e económicos — tudo se mexe segundo o dogma da quantificação. Este dogma, fundado em bordões como «eficiência», «eficácia» e «competitividade», está a conduzir empresas e países para o abismo. 
O grave é que dentro dessas empresas e desses países estão seres humanos.

sábado, 20 de outubro de 2012

Momento quase filosófico

Um mestre zen, chamado Xaku Soen, passeava todas as tardes pelas ruas de uma aldeia próxima. Ao ouvir as lamentações que vinham de uma casa, entrou discretamente. Viu que tinha morrido um homem. A sua família, os amigos, choravam-no.
Sentou-se e pranteou com os outros.
Um velho notou-o. Admirado de ver um mestre tão famoso chorar como qualquer ser humano, disse-lhe:
— Porque choras? Pensei que tu, ao menos, estivesses acima dessas coisas.
— É justamente por chorar que estou acima dessas coisas — respondeu o mestre.
In Jean-Claude Carrière, Tertúlia de Mentirosos, Teorema.

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

É difícil fazer pior

Nuno Crato gostaria de ver associado o seu mandato, enquanto ministro da Educação, às ideias de «Rigor» e de «Seriedade» — dois termos que Crato utiliza recorrentemente no seu discurso. Todavia, o rigor e a seriedade têm um problema: só são alcançáveis com muito trabalho, com muito conhecimento e com uma grande capacidade de não ceder ao senso comum, de não ceder à opção mais fácil e de não ceder a pressões inaceitáveis. 
Não podendo eu colocar em dúvida as capacidades de trabalho do ministro, já posso e devo colocar em dúvida o seu conhecimento da realidade do nosso sistema educativo e a sua capacidade de ceder ao senso comum, ao fácil e a pressões. Na verdade, só uma surpreendente ignorância e uma evidente incapacidade para impedir a interferência de critérios cegos de cortes financeiros na Educação é que explicam a monstruosidade realizada com a recente reforma curricular. Começando pelo fim, isto é, pela redefinição da carga horária a atribuir a cada disciplina dos diferentes currículos, e reduzindo a reforma apenas a isso, Crato fez da reforma curricular uma reforma de mercearia. As consequências deste acto irresponsável, que nem a um contabilista de vão de escada se poderiam perdoar, são múltiplas e graves. Muitas delas têm sido justa e profusamente denunciadas pelos professores, quer por iniciativas individuais quer por acções colectivas, por isso, vou limitar-me a recordar e a assinalar uma situação que deveria envergonhar qualquer ministro da Educação, mas mais ainda um ministro que se reclama do rigor e da seriedade.
Neste momento, o sistema educativo, por consequência da reforma curricular de Nuno Crato, permite o quase inenarrável cenário: uma mesma disciplina, com o mesmo programa, em certas escolas é leccionada quatro vezes por semana, em tempos de 45 minutos; em certas outras escolas é leccionada três vezes por semana, em tempos lectivos de 50 minutos; em outras certas escolas é leccionada três vezes por semana, em tempos lectivos de 45 minutos (alunos do ensino nocturno). Esta disciplina é obrigatória no ensino secundário regular e recorrente. Esta disciplina tem exame nacional no 11.º ano. Estes três cenários são reais e são legalmente permitidos.
Esta quase inenarrável situação tem a seguinte consequência: um aluno do primeiro cenário, no final do 1.º período, terá 2340 minutos de aulas; um aluno do segundo cenário terá 1950 minutos de aulas; e um aluno do terceiro cenário terá 1755 minutos de aulas. Quer isto dizer que num só período a diferença de aulas recebidas entre um aluno do primeiro e um aluno do terceiro cenários é de 13 aulas! No final do ano lectivo, a diferença ultrapassa as 30 aulas!
Repito, estes alunos têm de cumprir o mesmo programa curricular e, se forem a exame nacional, serão submetidos ao mesmo exame.
O nome da disciplina em causa é: Filosofia.
O nome do ministro que permite esta barbaridade é: Nuno Crato.

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Nuno Crato em desgoverno contínuo

O desgoverno no ministério da Educação é persistente e de incidência praticamente diária. No passado dia 1 de Outubro escrevi isto:
«O mais recente exemplo da anarquia que se vive neste ministério faz com que, neste momento, nas escolas com ensino nocturno haja professores a ter de abandonar as turmas que leccionavam à noite para irem leccionar os horários do ensino diurno pertencentes a professores que se encontram de atestado médico. Isto sucede porque Nuno Crato, apesar de ter dado indicações, por escrito, para serem abertas novas turmas dos cursos EFA, (desde que não fosse necessário contratar recursos humanos exteriores à escola) agora mandou encerrá-las. E de um dia para o outro a barafunda instalou-se nestas escolas. Mais uma vez, Crato revela não saber o que faz, e revela mais uma vez também que não tem respeito algum pelos alunos, que já haviam pago as suas matrículas, e pelos professores que já leccionavam as suas turmas.»
Consequentemente, os horários de muitos professores tiveram de ser reformulados, vários docentes abandonaram turmas que já estavam a leccionar, à noite, para passarem a leccionar turmas diurnas (turmas que aguardavam a colocação de professores, que iriam substituir colegas em situação de baixa médica) e muitos dos horários dos alunos tiveram que ser igualmente alterados. Tudo isto, repito, porque Nuno Crato tinha dado ordens para encerrar turmas dos cursos EFA, que inicialmente havia permitido abrir. Passados dezassete dias, isto é, ontem, nova ordem do ministério da Educação chega às escolas: as turmas que tinham sido impedidas de abrir podem abrir! 
Para além da esquizofrenia e do caos que se vive no ministério da Educação, que esta situação bem revela, isto significa que nova reformulação de horários de professores e de alunos vai voltar a ocorrer, com toda barafunda e instabilidade que daí advêm! 
Não há memória de alguma vez se ter presenciado tanta incompetência reunida num mesmo ministério.

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Poemas

PALMEIRAS

As árvores a copa orvalhada de sol
Rectas. Dou ao meu sol a seiva evaporada.
O sol repousa sobre o mármore das folhas
Como a água do mar no fundo adormecido.

O céu é de um só bloco a terra é vertical
E as sombras das árvores continuam as árvores.

Paul Éluard
(Trad.: Manuel Bandeira)

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

A propósito da legitimidade do governo e da discriminação dos funcionários públicos

1. Com o progressivo agudizar do desastre governativo, aumenta o número daqueles que defendem a necessidade de demissão do executivo. Perante esta crescente exigência, os defensores da continuação em funções do actual governo argumentam com a legitimidade que lhe advém dos resultados eleitorais obtidos há cerca de ano e meio. Isto seria verdade se o PSD e o CDS tivessem inscrito nos seus programas eleitorais as medidas que têm vindo a tomar desde que assumiram o poder. Mas a verdade dos factos é outra: o governo PSD/CDS está a realizar uma política objectivamente contrária aos compromissos que assumiu com os portugueses. É tempo de se terminar com a falta de honestidade e com a irresponsabilidade na política. Na verdade, este governo não tem legitimidade para continuar em funções. O mandato que recebeu foi-lhe dado para desenvolver uma política totalmente divergente com a que está a levar à prática. Ao optar por não cumprir os compromissos que assumiu, este governo perdeu a legitimidade.

2. O principal (pseudo) argumento do governo para continuar a discriminar negativamente os funcionários públicos (que — para além de suportarem todos os sacrifícios que os restantes trabalhadores sofrem — tiveram e continuarão a ter um corte nos vencimentos entre 5 e 10%, e que, no ano passado, ficaram sem dois subsídios e no próximo ano ficarão sem um subsídio) era que, na função pública, não havia despedimentos. Todavia, os milhares de professores contratados que foram para o desemprego e a anunciada desvinculação de 50% de todos os contratados ao serviço do Estado, em 2013, mostram precisamente o inverso: o Estado é a organização que mais desemprego gera e que mais instabilidade e insegurança provoca.

domingo, 14 de outubro de 2012

Jim Hall & Friends

13 de Outubro: arte e resistência


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Ontem, na Praça de Espanha, em Lisboa, como em várias outras cidades dos país, ouviram-se muitas canções, músicas e palavras cantadas, escritas e ditas durante a ditadura. Muitos de nós pensávamos que não seria necessário voltar a viver o sentido original com que muitas delas foram criadas. Estranhamente, trinta e oito anos depois de Abril, todos sentimos a brutal actualidade daquelas cantigas e daqueles poemas. E sentimos a força que a palavra «Resistência» trás consigo. E sentimos que vamos ter pela frente uma luta dura que terá de ser levada até ao fim, porque há limites que nenhum conceito de dignidade admite que sejam ultrapassados.

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sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Exames nacionais - apontamentos (17)

Nos textos anteriores, procurei apresentar as principais razões pelas quais divirjo da ideia que preconiza que os exames nacionais devem ter um peso determinante na aprovação do aluno e que devem ser generalizados a todas as disciplinas, no final de cada ciclo de estudos. Tendo presente as finalidades que actualmente são atribuídas aos exames nacionais, e outras que no futuro próximo se prevêem vir a ser atribuídas, torna-se claro que estas provas não conseguem/não podem cumprir essas finalidades de modo credível e fiável. Seria certamente útil assumir esta realidade e não fazer dos exames nacionais superlativos instrumentos de avaliação, porque na realidade não o são. Têm demasiadas limitações e deficiências para poderem ser assim considerados. Vender a ilusão de rigor avaliativo, a pais e a alunos, apenas para satisfação ideológica de alguns políticos, de alguns opinadores e de alguns professores não é aceitável.

A ideia oposta à da proliferação dos exames é a ideia que preconiza a abolição completa dos exames.
Todavia, a abolição dos exames necessita de um contexto que permita e aconselhe essa abolição. É condição de possibilidade dessa abolição a existência de uma cultura de trabalho, de disciplina e de exigência assimilada por todos os intervenientes no processo educativos: pais, alunos e professores. Esta cultura não se decreta, não se impõe, tem de ser desenvolvida ao longo de décadas. Há países onde esta cultura existe e onde os exames foram suprimidos ou apenas são realizados em número reduzido. Não tenho nenhuma dúvida de que este é o caminho a seguir.
É estranho, contudo, que muitos dos que defendem a abolição dos exames não enfatizem aquilo que é primordial enfatizar, para que o fim dos exames seja possível, e que é, justamente, os valores do trabalho, do rigor, da disciplina e da exigência. O discurso que defende estes valores tem sido inexplicavelmente monopólio dos que apresentam os exames como instrumento fundamental de concretização desses valores. Esta associação (entre exames e exigência) é aceite por muitos como natural e a própria sociedade interiorizou-a. Porém, como as objectivas limitações e deficiências dos exames revelam abundantemente, estas provas podem ser tudo, mas nunca um instrumento de rigor e de exigência.
A abolição dos exames implica, portanto, um política educativa que releve a relação biunívoca entre direitos e deveres, que valorize o trabalho e que combata o facilitismo, presente na mente de muitos alunos. Que seja exigente com os professores, mas que primeiramente lhes dê condições de trabalho, de dignidade e de autoridade. Mas tem de ser um política educativa que desde logo não tenha receio de ser exigente com os pais. Estes são os primeiros e os principais responsáveis pela educação dos filhos e essa responsabilidade não pode ser passada a ninguém nem a nenhuma instituição. Evidentemente que um Estado exigente com os pais tem de ter uma política social compatível com essa exigência e tem ele próprio de ser um exemplo de exigência consigo mesmo.
Desgraçadamente, o nosso país tem vivido de políticas educativas contraditórias, onde se amontoam conceitos incongruentes e práticas inconsequentes. Alternamos entre facilitismos provincianos e exigências só de aparência, entre concepções burocráticas de ensino e o «deixar andar», entre aventureirismo e arrogâncias e senso comum pouco ilustrado. Balançamos entre o desejo de equiparar o aluno ao professor e a vontade de implementar o autoritarismo. Não temos rumo, apesar de nos anunciarem sempre que ele existe. Em matéria educativa (como, lamentavelmente, em várias outras matérias) somos vítimas objectivas do diletantismo político.

Neste contexto de caos conceptual e orgânico, e de inexistência de uma cultura de responsabilidade e de responsabilização, não é possível falar em abolição de exames. Ainda que por péssimas razões, os exames nacionais trazem associados a si a ideia de que é necessário trabalhar mais e de modo mais organizado — é lamentável que assim seja, é lamentável que se tenha chegado a um ponto tal de degradação educativa que os exames sejam utilizados como «motivação» para que se trabalhe mais e melhor...
Não sendo possível, neste momento, proceder à abolição dos exames, são, na minha opinião, necessárias quatro prerrogativas para que eles sejam minimamente aceitáveis:
Primeira, usar de muita parcimónia no discurso sobre os exames. Ter humildade e reconhecer que estamos perante um instrumento de avaliação de fraca fidelidade/fiabilidade e com vastíssimos inconvenientes. Acabar, por conseguinte, com as palavras inflamadas e irresponsáveis acerca de uma alegada superlativa importância dos exames. Assumir que os exames são um «mal menor» e que, a prazo, devemos caminhar para a sua abolição ou para uma situação em que se tornem residuais no sistema educativo;
Segunda, realizar exames de modo selectivo — não de forma generalizada a todas as disciplinas e em todos os ciclos de ensino e nunca com peso determinante na aprovação do aluno.
Terceira, realizar provas centradas exclusivamente no tipo de aprendizagens que podem ser avaliadas com maior fidelidade, e não a todo o tipo de aprendizagens, como agora incompreensivelmente é feito.
Quarta, os exames podem/devem ser realizados a diferentes disciplinas alternada e aleatoriamente.

Concluo aqui alguns apontamentos que fui coligindo sobre a realização de exames nacionais.

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Nacos

Canto VII

71
O mundo que nasce é de imediato atacável, e assim está bem.
Bloom, contou Anish a Shankra, não gosta  que os factos
de uma semana rimem entre si. Agrada-lhe a surpresa,
tanto mais quando ela surge no último instante.
Às 23 horas e cinquenta minutos
o dia ainda tem 10 minutos para explodir
indiscretamente. Nada é firme antes de terminar.
E depois de terminar, tudo morreu. A firmeza
e a imortalidade não existem porque são o mesmo
e nenhuma existe.

72
E Bloom é homem de bom ouvido, disse ainda Anish
a Shankra. Com facilidade distingue a música obesa
da outra, da simples, da que aparece num ponto
e vai directamente para o destino, sem adjectivos
sonoros. Quem ouve boa música merece
— diria um optimista —
nascer noutra vida como flor — mas Bloom nunca falaria assim.
No azul deveremos enterrar a nossa estaca.
É assim que ele pensa. Não é ingénuo:
sabe que as belas cores querem dos nossos
olhos a estúpida e parada admiração.
Prefere a sujidade que ainda pode ser limpa.
Gonçalo M. Tavares, Uma Viagem à Índia, Caminho.

13 de Outubro


quarta-feira, 10 de outubro de 2012

Um imenso Portugal dos Pequeninos

Sem ir muito lá atrás: primeiro foi o corte na TSU — uma medida repleta de virtualidades e de promissores resultados, em que alegremente se esvaziava o bolso dos assalariados e se enchia o bolso dos proprietários das empresas; depois foi o anunciado «enorme» aumento de impostos — uma medida inevitável para garantirmos o cumprimento dos compromissos assumidos com a troika; a seguir foi o anunciado brutal aumento do IMI — uma receita essencial para ajudar a baixar o défice; ontem foi o anunciado despedimento de cerca de 40 mil contratados ao serviço do Estado — porque é preciso reduzir despesas.
O que há de comum a todas estas notícias é a sua origem: o governo de Portugal. O que igualmente há de comum a todas estas notícias é que, depois de formalmente anunciadas, são, dias depois, anuladas ou alteradas ou... «mitigadas».
Governar o país transformou-se numa brincadeira de diz e desdiz, de faz e não faz. O país transformou-se num imenso Portugal dos Pequeninos, onde tudo é possível, onde ninguém é responsável por coisa alguma, onde todos se permitem adiantar palpites, onde todos podem fazer a sua traquinice.
É uma medonha e assustadora irresponsabilidade que neste momento nos governa. Santana Lopes foi demitido por muitíssimo menos.

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terça-feira, 9 de outubro de 2012

Bonecos de palavra

Quino, Quanta Bondade!, Teorema.

Um e-mail esclarecedor

A propósito do post «Da falta de competência e de respeito», recebi um elucidativo e-mail do qual transcrevo um excerto:
«Desde que entrou em vigor a reorganização curricular, que transformou as aulas de 50' em 45', cada escola passou a distribuir o conjunto de horas atribuídas às áreas disciplinares (incluíam e incluem várias disciplinas em cada área) de forma diferente, com a agravante de não ter havido alteração dos respetivos programas. 
No caso, por exemplo, de Inglês do 2º ciclo, continua a ter de se "encaixar" um programa feito para 200' semanais (desde 1996) em cargas horárias de 135'. Aliás, penso que tal acontece(u) em quase todas as disciplinas dos 2º e 3º ciclos do ensino básico. 
[...] Em disciplinas que implicam sequências de conteúdos em espiral, caso das línguas estrangeiras, a impossibilidade de se contemplar nas planificações anuais os conteúdos obrigatórios estipulados nos programas (ainda em vigor) origina uma bol(s)a de conteúdos a serem dados no/s ano/s de escolaridade seguinte/s que vai aumentando de forma assustadora! Presentemente, com a junção dos agrupamentos em mega-agrupamentos, esta constatação chega, factual e finalmente, ao conhecimento do ensino secundário que, só agora, "percebe" a/s razão/ões pela/s qual/is os conteúdos dos anos anteriores não são lecionados na sua totalidade. 
Com a atual reorganização curricular, o problema mantém-se e, em algumas escolas, está agora a surgir, pois foi-lhes reduzida a carga horária semanal a língua estrangeira! Se forem implementados exames a mais disciplinas sem se alterarem os programas, vai ser interessante ver o que vai acontecer! 
Claro que há sempre a quem atribuir as culpas: ao corpo docente, como não podia deixar de ser!»
AC

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Um caso de estudo

Como é humanamente possível reunir tanta incapacidade para governar um país como o nosso, que tem uma área geográfica pequena, que é pouco populoso e cuja gente tem uma evidente tendência para a pacatez?
Como é humanamente possível governar tão mal um país que não tem conflitos internos, que se dá bem com tudo o que é estrangeiro, que tem um clima invejado por muitos, que se situa no centro do mundo ocidental, que está a um pé de África, que tem uma língua falada em todos os cantos do planeta e que já há muitos anos não se mete em guerras com ninguém?
Como é humanamente possível termos elites tão incompetentes, cujo resultado da sua acção é a contínua degradação do país, desde há décadas?
A história da humanidade, um dia, há-de estudar o nosso caso...

domingo, 7 de outubro de 2012

Debate das políticas educativas

Decorreu ontem, no Centro Cultural e de Congressos das Caldas da Rainha, o Encontro denominado «A  Blogosfera e a Discussão das Políticas Educativas em Portugal». Esta iniciativa foi organizada pelos blogues Ad Duo, A Educação do Meu Umbigo, Blog de Arlindo, Correntes, Educar a Educação, Professores Lusos.
Foi um dia marcado por intervenções de elevada qualidade de vários dos convidados, moderadores e participantes. A quantidade da informação fornecida e a qualidade das análises, das propostas e das reflexões apresentadas ultrapassaram as melhores expectativas. Os temas tratados foram: modelos de gestão; vinculação dos professores contratados; gestão das expectativas dos docentes; burocracia e desinformação; autonomia/centralismo.
Seria bom que muitos daqueles que têm obrigação institucional de conhecer e de resolver os problemas da Educação no nosso país estivessem tão bem preparados para o fazer como vários dos professores presentes neste encontro.

1.º Painel - Modelos de Gestão
 Mário Carneiro, Paulo Prudêncio (moderador), Ricardo Silva.

 2.º Painel - Vinculação: Ordinária ou Extraordinária?
 Helena Mendes, Arlindo Ferreira (moderador), César Paulo, Jorge Costa.

3.º Painel - Gestão de expectativas e Da burocracia à desinformação na Educação
 Ricardo Montes (moderador), Nuno Coelho, Luís Braga, Nuno Rolo (moderador).

4.º Painel - Autonomia/Centralismo
Rui Correia, Paulo Guinote (moderador), José Alberto Rodrigues.

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

5 de Outubro

1910, a implantação da República. 102 anos depois, a «Coisa Pública» é cada vez menos Pública. 

Dia Mundial do Professor

Ser professor num país cujos últimos governos apostaram e apostam em maltratar a Educação.

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Resultados fantásticos seguidos de um aumento de impostos fantástico

Ouvir o ministro das Finanças é um exercício pouco agradável. A forma e o conteúdo dos discursos que profere são quase sempre rebarbativos. Todavia, o que é mesmo grave é que já ninguém acredita em Vítor Gaspar. Pausadamente, este governante foi perdendo a credibilidade que lhe foi atribuída. Todas as certezas que afirmava, pausadamente, acabaram por não se confirmar. Todas as evidências que revelava, pausadamente, tornaram-se obscuridades ou falsidades. Pausadamente, o ministro das Finanças tem-se conduzido e tem-nos conduzido para o desastre.
Do que hoje pude ouvir da conferência de imprensa dada por Vítor Gaspar, retive o seguinte: os primeiros vinte minutos foram consumidos a informar-nos de que, com a política seguida pelo governo, temos alcançado resultados fantásticos — alguns deles atingidos muito antes do tempo previsto; os segundos vinte minutos foram consumidos a informar-nos de que, em 2013, vamos ter um fantástico aumento de impostos!
O que agora me preocupa, para além do brutal aumento de impostos, é que um homem verdadeiramente inteligente sente-se impedido de fazer dos outros insuficientes mentais...

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Sobreviver a Rodrigues, Alçada e Crato

Sobreviver a Rodrigues, Alçada e Crato é uma tarefa quase impossível. A Educação, nos últimos oito anos, foi, e continua a ser, objecto da conjugação do pior que seria possível conjugar. 
Ainda hoje é um mistério a razão que conduziu Rodrigues à pasta da Educação. Sem experiência política, sem currículo na área, sem perfil pessoal, o que esteve na base do convite que lhe foi dirigido? A razão não é conhecida, mas as consequências do seu exercício no cargo são desgraçadamente bem conhecidas.
Rodrigues conjugou incompetência, aventureirismo e irresponsabilidade. O rancor, de origem oculta, que sentia pelos professores, mais a profunda ignorância sobre a realidade educativa, mais a desequilibrada personalidade, mais o amontoado de pressupostos ideológicos primários que lhe preenchiam a mente resultaram em quatro anos de destruição do que ainda de positivo restava nas nossas escolas. Rodrigues foi quem pior tratou a Educação, desde o 25 de Abril.
Alçada partilhou com Rodrigues a impreparação para as funções e trouxe como novidade o patusco de querer substituir as ideias políticas por sorrisos. Politicamente foi um epifenómeno que infelizmente a nossa história não poderá esquecer, porque ela quis ser a continuidade de um desastre educativo.
Crato, antes de assumir as funções de ministro, vivia do brilho mediático. E como é costume nestas situações, quando as luzes do estrelato se apagam e nos confrontamos com a realidade que a luz do dia nos revela, normalmente não gostamos do que se vê. A impressionante desorientação que actualmente reina no ministério da Educação não surpreende, é o resultado normal de um pensamento educativo composto por meia dúzia de ideias de um senso comum não muito ilustrado.
O mais recente exemplo da anarquia que se vive neste ministério faz com que, neste momento, nas escolas com ensino nocturno haja professores a ter de abandonar as turmas que leccionavam à noite para irem leccionar os horários do ensino diurno pertencentes a professores que se encontram de atestado médico. Isto sucede porque Nuno Crato, apesar de ter dado indicações, por escrito, para serem abertas novas turmas dos cursos EFA, (desde que não fosse necessário contratar recursos humanos exteriores à escola) agora mandou encerrá-las. E de um dia para o outro a barafunda instalou-se nestas escolas. Mais uma vez, Crato revela não saber o que faz, e revela mais uma vez também que não tem respeito algum pelos alunos, que já haviam pago as suas matrículas, e pelos professores que já leccionavam as suas turmas. Mas isto é somente mais um exemplo.
O que na realidade importa é mesmo saber como é que, no nosso país, a Educação vai conseguir sobreviver a Rodrigues, a Alçada e a Crato.