sábado, 31 de março de 2012

Ao sábado: momento quase filosófico

«Na tradição islâmica, conta-se que um mestre, de nome Abdulalim, que vivia em Fez, recebeu um dia a visita de um homem inquieto e descontente. Não conseguia conservar a calma durante os exercícios de meditação e oração.
— Posso ensinar-te um método simples — disse-lhe Abdulalim. — Tapas os ouvido e pensas em rábanos.
O homem perguntou:
— Antes ou depois dos exercícios de meditação e oração?
— Durante os exercícios.»
In Jean-Claude Carrière, Tertúlia de Mentirosos, Teorema (adaptado).

sexta-feira, 30 de março de 2012

Novas Oportunidades (10)

O abismo entre o conteúdo da abundantíssima elaboração documental que suporta o labiríntico e incoerente edifício formativo da Iniciativa Novas Oportunidades e o que na realidade acontece e o que na realidade existe, a nível dos cursos EFA, é de tal modo desmesurado que não constitui um exagero afirmar que estamos perante dois mundos (o teórico e o prático) que não conseguem tocar-se.
Na verdade, do que eu conheço da realidade de algumas escolas e centros de formação, pouco ou nada do que se passa na operacionalização dos cursos EFA tem pontos de contacto com o que está definido e estipulado na parafernália de documentos que, supostamente, deveria fundamentar e orientar essa operacionalização.
E podia ser de outro modo? Não podia. Não é possível concretizar uma construção teórica que assenta em pressupostos que nunca foram escrutinados pela experiência, que assenta em contraditórios exercícios de fundamentação e que assenta numa absoluta ignorância e/ou desprezo pela realidade a que supostamente essa construção se deveria aplicar. O erro não está, como é obvio, no objectivo de formar e qualificar os portugueses adultos ou de validar as competências que muitos deles adquiriram de modo não formal e/ou informal ao longo da sua vida profissional e pessoal. O erro, o tremendo erro está no modo leviano como se pretendeu fazê-lo: através, por um lado, de uma monstruosidade teórica que se auto-alimenta e que vive de costas voltadas para o mundo; e, por outro lado, através de uma vergonhosa submissão ao pornográfico oportunismo político dos governos de Sócrates. Estes dois elementos conjugados destruíram a possibilidade de ser realizada uma formação e uma qualificação séria e credível, de que muitos milhares de portugueses necessitavam e vão continuar a necessitar.

As múltiplas elucubrações que os responsáveis técnicos pela Iniciativa Novas Oportunidades (INO) desenvolveram são um obstáculo intransponível para quem desejar formar adultos nos cursos EFA. Trago hoje mais um exemplo — a acrescentar ao que tenho referido nos demais textos dedicados à INO.
Na Unidade de Formação de Curta Duração 7, de Cultura, Língua e Comunicação existem quatro competências que os formandos deverão adquirir — recordo, mais uma vez, que muitos destes alunos, apesar de se encontrarem no nível secundário, revelam muitas dificuldades nas aprendizagens, algumas delas até ao nível do domínio básico da língua portuguesa. Apesar disso, os técnicos da INO acharam por bem definir a primeira competência deste modo:
«Intervir tendo em conta que os percursos individuais são afectados pela posse de diversos recursos, incluindo competências ao nível da cultura, da língua e da comunicação.»
Pressupondo que se consegue compreender com precisão o que significa esta competência, pode perguntar-se: como se sabe se o aluno a possui? Segundo os técnicos da INO há três critérios de evidência que atestam a aquisição desta competência num formando.  Transcrevo somente o primeiro critério: se o formando «Actuar tendo em conta que os percursos individuais são afectados por condições sociais e que as trajectórias se (re)constroem a partir da vivência de diversos contextos e da reconfiguração da posse de diferentes recursos» — e se, para além disto, ainda cumprir os outro dois critérios de evidência (que me escuso de citar para não cansar o leitor) — pode-se considerar que o formando possui a competência acima enunciada...

Segunda competência:
«Agir em contextos profissionais, com recurso aos saberes em cultura, língua e comunicação.»
Dos três critérios de evidência que, segundo os técnicos da INO, servirão para atestar da aquisição desta competência, transcrevo apenas dois, sem fazer comentários:
«— Actuar em contextos profissionais identificando o que são procedimentos científicos e diferentes métodos de produção de conhecimento sobre temáticas relacionadas com a cultura;
— Actuar no mundo global, compreendendo como os diferentes suportes e meios de comunicação fizeram evoluir as inserções profissionais e os modos de trabalhar e produzir riqueza.»

Terceira competência:
«Formular opiniões críticas mobilizando saberes vários e competências culturais, linguísticas e comunicacionais»
Para esta competência, transcrevo, novamente sem comentários, dois critérios de evidência, definidos pelos especialistas da INO:
«— Actuar perante debates públicos reconhecendo a multiplicidade de instituições, agentes e interesses em presença;
—Actuar nas sociedades contemporâneas reconhecendo o papel central dos sistemas de comunicação nas formas de intervenção e construção da opinião pública mundial.»

Quarta e última competência:
«Identificar os principais factores que influenciam a mudança social, reconhecendo nessa mudança o papel da cultura, da língua e da comunicação»
Para esta competência, não resisto a transcrever a totalidade dos designados critérios de evidência (três):
«— Actuar reconhecendo que a evolução das sociedades resulta de processos de mudança social e identificando os principais factores que a influenciam;
— Actuar nas sociedades contemporâneas, tendo em conta que a língua é um elemento constituinte do universo em que vivemos e compreendendo o seu papel na expressão da evolução do pensamento e das mentalidades bem como da evolução científica e tecnológica;
 — Actuar nas sociedades contemporâneas, identificando as teorias fundamentais dos sistemas de comunicação (um para um, um para muitos, muitos para muitos, e em rede) e tendo consciência do carácter instrumental dos media e da eficácia do seu poder.»

Certamente que é difícil compreender como se consegue brincar com três coisas em simultâneo: com os formandos, com os formadores e com o conceito de «evidência». Nada disto é adequado ao nível dos formandos a que se dirige, nada disto serve para orientar os formadores, pela extravagância de que se reveste, e nada disto constitui uma evidência. E já não falo naquilo que é certamente uma minudência para os especialistas da INO: a diferença entre «actuar» e «dizer que actua» (em contexto de sala de aula: ninguém «actua em contextos profissionais...»; ninguém «actua nas sociedades contemporâneas...»; o mais que pode fazer é «dizer que actua»...)

Para concluir este texto, que já vai longo, uma breve referência a três conteúdos, dos dezanove, que fazem parte desta Unidade de Formação de Curta Duração, de Cultura, Língua e Comunicação:

. Arte privada e Arte pública:
- Consequências na gestão do urbanismo e do património.
- Manifestações artísticas diferenciadas: intervenção e apropriação.
- Instituições, Museus e Arquivos.

. A influência dos factores culturais, políticos e físicos nos processos de mudança social ao longo da história:
- Evolução dos princípios estéticos da Arte e sua relação com o real.
- A Cultura artística e seu impacto nas sociedades.

. Efeitos da globalização das políticas financeiras e seus impactos na gestão da promoção da Cultura, nos seus diferentes aspectos e dimensões.

Esta breve amostra de competências, critérios de evidência e conteúdos permite esboçar uma ideia sobre uma das causas que está na origem da gigantesca encenação que é a Iniciativa Novas Oportunidades.

quinta-feira, 29 de março de 2012

Quinta da música - Mozart

Trechos - Franco Cazzola

«Douglas Hibbs [1977, 1471] propôs uma escala do interesse proclamado por parte dos diversos partidos (socialistas e/ou trabalhistas, de centro, conservadores) sobre alguns temas. Volto a propô-la aqui (tabela 2.1) para depois a integrar noutras temáticas que, na base da literatura de então, mas também na mais recente, deveriam constituir uma série de "preferências" que, teoricamente, diferenciariam os governos de esquerda dos de direita.

TABELA 2.1. ESCALA DAS PRIORIDADES PROGRAMÁTICAS
                                                                                SOCIALISTAS                     CENTRISTAS            CONSERVADORES
Pleno emprego                                                1.º                            3.º                            4.º
Estabilidade dos preços                                   4.º                           1.º                             1.º
Redistribuição da riqueza                                 2.º                           4.º                             5.º
Crescimento económico                                   3.º                           2.º                             3.º
Equilíbrio da balança de pagamentos                5.º                           5.º                             2.º

Poucos anos mais tarde, os volumes que relatavam os resultados da investigação sobre o welfare state, coordenada por Peter Flora, evidenciavam-se outros indicadores das diferenças entre governos de direita e governos de esquerda. Em particular defendia-se que:
"[...] os partidos socialistas, dado que tradicionalmente apoiavam a taxação progressiva, quer com a finalidade de fazer progredir a justiça social quer para mobilizar os recursos fiscais necessários à execução das reformas sociais, são considerados favoráveis também a crescentes níveis de despesa total. Pelo contrário, espera-se que os partidos liberais e conservadores se oponham não só ao desenvolvimento do welfare state, mas também a qualquer actividade que ultrapasse as funções clássicas do Estado e em particular as intervenções na economia capitalista. Além disso, conta-se que estes mantenham os níveis e os incrementos de despesa o mais baixo possível" [kohl 1983, 389-390].
 É uma família de estudos que necessitaria, para ser plenamente convincente, de dados profundamente analíticos. Como recorda Fabbrini, as investigações que revelam uma estreita conexão entre evolução da despesa pública e presença das esquerdas nos governos concluem que, quando os partidos de esquerda:
      — estiveram no governo durante um número de anos suficiente para levar a cabo os seus programas;
      — não sofreram condicionamentos por partidos de coligação;
      — usifruíram de um claro apoio parlamentar;
      — a despesa pública aumentou, mas também se acentuou o seu carácter redistributivo»
Franco Cazzola, O Que Resta da Esquerda, Cavalo de Ferro.

quarta-feira, 28 de março de 2012

Às quartas

Sobre a Palavra

Entre a folha branca e o gume do olhar
a boca envelhece

Sobre a palavra
a noite aproxima-se da chama

Assim se morre dizias tu
Assim se morre dia o vento acariciando-te a cintura

Na porosa fronteira do silêncio
a mão ilumina a terra inacabada

Interminavelmente

Eugénio de Andrade

A Educação como uma empreitada

Li hoje, no jornal Público, um artigo assinado por António José Seguro, líder do PS, sobre a Escola Pública. Aquilo que deveria ser uma contribuição para um debate promovido por aquele jornal sobre a importância da Escola é, na realidade, um folheto publicitário sobre uma (supostamente orgulhosa) obra realizada pelos governos de Sócrates, no domínio da Educação. É um folheto publicitário e com publicidade enganosa. 
Quem ler o artigo e não estiver minimamente informado sobre o que se passou nos últimos seis anos de governação socialista fica a pensar que, na área da Educação, o país deu um salto único e fantástico e que, por essa razão, nós, portugueses, deveremos sentir-nos particularmente gratos a Sócrates e a Rodrigues.
Para além disto, que se infere do que diz António José Seguro? Infere-se que, em Educação, quantidade e qualidade são termos sinónimos. É por isso que o seu artigo é praticamente um enumerar de despesas e de medidas administrativas realizadas por Sócrates. Seguro não perde um minuto a reflectir se, da parte dos governos de Sócrates, houve algum momento de preocupação com a qualidade da educação. O que, nesse artigo, teria sido necessário perguntar é se se vislumbra alguma evolução qualitativa, imediata ou a médio prazo, na educação dos portugueses, como resultado da política socialista dos últimos seis anos. Esta era a pergunta que Seguro deveria ter formulado e à qual deveria ter respondido. Mas isto não parece interessar a António José Seguro, como não interessou a Sócrates. Ambos parecem ignorar que ser político da Educação não é o mesmo que ser empreiteiro da Educação.
E mesmo que, no seu artigo, tivesse ficado apenas pelas empreitadas, Seguro deveria ter tido algum cuidado com o que escreve, porque o recente relatório do Tribunal de Contas sobre a acção da Parque Escolar, só por si, deveria tê-lo inibido de proceder a elogios levianos e superficiais. Contudo, uma visita a algumas escolas secundárias intervencionadas proporcionar-lhe-ia certamente adicionais motivos inibitórios de elogios acerca da obra realizada. E não  vou sequer debruçar-me sobre os milhões de euros que daqui a três ou quatro anos vão ser necessários gastar em reparações, devido à falta de qualidade de muitos materiais utilizados ou à má execução dos trabalhos efectuados.

Todavia, para além de listar obras, Seguro também não resistiu à tentação de elogiar as Novas Oportunidades, afirmando, com uma impressionante demagogia, que 1,4 milhões de portugueses voltaram aos percursos formais de qualificação. Vamos admitir (sem conferir) que 1,4 milhões de portugueses voltaram. Contudo, o que deveria preocupar Seguro é saber como é que esses portugueses saíram ou vão sair desses percursos. Isto é: que qualificação esses portugueses vão efectivamente possuir, qual a qualidade e a exigência da formação que lhes foi/está a ser ministrada? Saber isto é que é, para esses portugueses e para o país, verdadeiramente importante.
Do mesmo modo que criar cursos Profissionais a granel, amontoar cursos de Educação e Formação, alargar sem sustentação a escolaridade obrigatória para 12 anos são medidas administrativas fáceis de realizar, mas não passam disso mesmo, de meras medidas administrativas, se não forem acompanhadas com uma adequada organização de programas, de formação de professores e de criação de condições objectivas que conduzam a verdadeiros ganhos qualitativos. De nada interessa, aos portugueses e ao país, se estatisticamente estivermos todos bem formados, mas, na realidade, nos mantivermos tão mal qualificados como nos encontrávamos antes da gigantesca encenação da governação socialista se ter iniciado há seis anos. Despejar dinheiro sem controlo, despejar cursos sem qualidade, despejar pressão política e mediática não é realizar uma política educativa.
O PS e António José Seguro não podem, para desgraça de todos nós, orgulhar-se da herança que nos deixaram, na Educação... e no resto.

Para clicar

terça-feira, 27 de março de 2012

Bonecos de palavra

Quino, Não Me Grite!, Pub. Dom Quixote.

Nacos

33
Diga-se ainda (e perdoe-se mais este desvio
— serão tantos, meu caro, prepara-te),
diga-se ainda que as discussões universais dos homens
são sempre discussões particulares. Cada qual
está debruçado sobre o mundo
em parapeito frágil.
E nem mesmo os imbecis têm fisionomias
colectivas.
Cada país é um pormenor que cada habitante utiliza
como melhor lhe convém e como a lei
permite.

34
Entretanto, lá ao longe, um nervosismo concreto
infiltra-se nos comportamentos e nas flores,
nas árvores de troncos largos
e nas mulheres de pernas magras. E tais distúrbios
têm origem, ao mesmo tempo, no chão e no tecto,
provando assim que as construções dos homens,
ao contrário do que vulgarmente se imagina,
caem tanto a partir de cima como de baixo.

Gonçalo M. Tavares, Uma Viagem à Índia, Caminho

segunda-feira, 26 de março de 2012

Comentário de segunda - «O que lá vai lá vai»

Nos últimos dias, surgiram, no espaço público, algumas vozes rebeladas contra uma alegada perseguição que estará a ser realizada ao anterior primeiro-ministro Sócrates. O argumento que sustenta a rebelião é antigo, é próprio de uma certa direita e de uma certa esquerda, é adequado a uma certa mentalidade portuguesa e é o seguinte: «O que lá vai, lá vai. O indivíduo já foi castigado eleitoralmente. Portanto, deixem-no sossegado.» Recentemente foi introduzido mais um elemento argumentativo: «Dizer mal ou agir contra Sócrates é um acto de vingança. A vingança é um sentimento reprovável. Logo, não se deve dizer mal ou agir contra Sócrates.»
O primeiro argumento parte da pressuposição de que existe uma absoluta impermeabilidade entre aquilo que é de natureza Política e aquilo que é de natureza específica da Justiça. Não vislumbro essa impermeabilidade, não só porque não sendo a Justiça causa de si própria, necessita da filosofia e da política para se fundamentar, mas também porque os actos políticos podem e devem ser criminalizados ou penalizados, desde que, obviamente, violem leis da República. Mesmo analisando o problema do ponto de vista estritamente político, também não encontro razões para que uma derrota eleitoral tenha de marcar o fim da crítica à actuação de um político. Se a sua actuação foi gravemente lesiva dos interesses dos cidadãos de um país — como foi, na minha opinião, o caso de Sócrates —, quem assim o considere não só tem o direito como tem o dever de exercer essa crítica, até quando o considerar pertinente fazê-lo.
Por outro lado, se as (vamos chamar-lhes assim) trapalhadas pessoais e políticas de Sócrates continuam a mexer, a culpa não é certamente dos tribunais, da polícia ou dos jornalistas. Parece ser mais razoável presumir que a responsabilidade está do lado de quem originou as trapalhadas (vamos benignamente chamar-lhes assim) e não de quem as investiga.
Vejo, aliás, com bons olhos a ruptura com a tradição de passar uma esponja sobre os actos dos políticos que, supostamente, deixaram de estar no activo. É tempo dos políticos saberem que a responsabilidade dos seus actos não termina no dia da derrota eleitoral.
Se isso acontecer em relação a Sócrates e aos seus sucessores, estaremos com certeza a dar um valoroso contributo para a elevação do exercício da cidadania e da própria acção política.

domingo, 25 de março de 2012

Jordi Savall

Pensamentos de domingo

«Se nenhuma quantidade de água conseguisse matar a sua sede, consultaria um médico. Que dizer do facto de que quanto mais possui mais quer? Não seria caso para procurar aconselhamento?»
Horácio

«O pobre é constrangido a regatear a sua dor. O rico exibe a sua por inteiro.»
Baudelaire

«A tecnologia é a resposta. Mas qual era a questão?»
Cedric Price
In Eduardo Giannetti, O Livro das Citações, Pub. Dom Quixote.

sábado, 24 de março de 2012

Ao sábado: momento quase filosófico

A propósito de visões pessimistas sobre a condição humana, Nicolas de Chamfort [poeta e moralista francês, do séc.XVIII] lembra a sentença fatalista proferida por um misantropo, cujo nome não revelou: "Apenas a inutilidade do primeiro dilúvio impede que Deus envie um segundo.»
                                                      In Pedro González Calero, A Filosofia com Humor, Planeta (adaptado)

sexta-feira, 23 de março de 2012

Novas Oportunidades (9)

No texto da semana passada, procurei fazer uma aproximação (seguindo o mais fielmente possível o Guia de Operacionalização dos Cursos de Educação e Formação de Adultos) ao interior labiríntico do mundo dos cursos EFA - nível secundário. Vimos, a esse propósito, muitas siglas, muitas designações, muitas interações, muitas relações, muitas interdependências. Hoje vamos tentar aproximar-nos do que se passa a nível do trabalho directo com os designados formandos, isto é, proponho uma breve incursão em alguns conteúdos de formação e em alguns dos designados resultados de aprendizagem, que os formandos supostamente deverão alcançar.

Para cada unidade de formação de curta duração (UFCD), com 50 horas, estão definidos quatro resultados de aprendizagem (RA), que os formandos devem atingir, e é pela verificação desses resultados de aprendizagem que se consideram validadas as suas competências.
Vejamos alguns exemplos concretos — antes disso, porém, chamo a atenção para o facto de uma parte significativa dos designados formandos do nível secundário ainda revelar dificuldades no domínio do português básico. Agora sim os exemplos.
Na UFCD 4, de CLC, ou seja, na unidade de formação de curta duração n.º 4, de Cidadania, Língua e Comunicação, estão enunciados (como em todas as UFCD) quatro resultados de aprendizagem. Detenhamo-nos no conteúdo de um desses resultados de aprendizagem, para podermos saber de que estamos a falar: «[O formando] compreende e aplica os princípios de funcionamento dos sistemas monetários e financeiros, enquanto elementos de configuração cultural e comunicacional das sociedades actuais». Este é um dos resultados de aprendizagem que se espera que os formandos sejam capazes de obter.
Recordo o que disse dois parágrafos acima: uma parte significativa dos formandos do nível secundário ainda revela dificuldades no domínio do português básico. Contudo, apesar da realidade do público alvo ser esta, enuncia-se como  resultado de aprendizagem que os formandos, ao fim de 50 horas, sejam capazes de compreender os princípios de funcionamento dos sistemas monetários e financeiros; que sejam capazes de compreender esses princípios como elementos de configuração cultural e comunicacional das sociedades actuais e que, para além disso, também sejam capazes de aplicar tais princípios.
Foi com perplexidade que li este resultado de aprendizagem, e foi com preocupação que não pude deixar de pensar o quão distante da realidade está quem definiu e previu esta aprendizagem. Na verdade, parece não existir a mais leve noção do que se pede e a quem se pede.
Todavia, a minha perplexidade não ficou por aqui. Quando iniciei a leitura dos conteúdos desta mesma UFCD, a perplexidade voltou. Alguns exemplos desses conteúdos:
A influência da Cultura nos modelos de organização, orçamentação e gestão financeira
— Dimensão económica da Cultura e da Arte
      . Propósitos dos investimentos financeiros (públicos e privados) na Arte, Cultura e Lazer
      . Papel das instituições no desenvolvimento de estratégias de sustentabilidade financeira das actividades culturais
— Paradigmas organizacionais das empresas e instituições e suas implicações na comunicação nas/entre as organizações
      . Vectores de percepção de uma cultura do rigor, cultura de cooperação, cultura de ambição, cultura de participação, cultura de inovação - consequências nas necessidades e características da comunicação
— Vivência egotista e em diferido, ou vivência partilhada e em tempo real: uma opção macro-estrutural de gestão da comunidade global
Paro aqui, para não maçar, e porque estes exemplos são por si suficientemente ilustrativos. Não é pois necessário transcrever os trinta e um enunciados que constituem os conteúdos desta UFCD. O que foi transcrito não carece de grande análise. Parece ser evidente a total desadequação destes enunciados, relativamente à realidade a que se dirigem e aos objectivos definidos. Mesmo que o nível de uma parte significativa dos formandos não fosse tão baixo, estes conteúdos continuariam a ser desadequados. É inaceitável, seja qual for o ponto de vista a partir do qual se proceda ao escrutínio destes enunciados, que haja quem tenha tido a irresponsabilidade de os elaborar e quem tenha tido a ainda maior irresponsabilidade de os validar como documentos oficiais sobre os quais se pretende edificar uma formação massificada de adultos. 
Ou a intenção destes documentos é um incompreensível exercício de gongorismos ou o que na realidade é proposto é que os formandos, sem se saber bem como, façam uma incursão na complexa vertente económica da Cultura e da Arte, quer através da análise dos propósitos dos investimentos financeiros, que Estado e empresas privadas realizam nos domínios da Arte, da Cultura e do Lazer; quer através do estudo da actuação das instituições no desenvolvimento de estratégias de sustentabilidade financeira das actividades culturais. 
Ou a intenção é propagandear um discurso afectado e vazio de conteúdo ou o que na realidade é proposto é que os formandos, sem se saber bem como, façam uma análise dos diferentes modelos organizacionais das empresas e instituições e uma análise das implicações de cada um desses modelos a nível da comunicação interna e externa das empresas.
Ou a intenção é apenas dar vazão público a um discurso arrebicado ou o que na realidade é proposto é que os formandos façam, sem se saber bem como, uma abordagem do complexo mundo das percepções, neste caso, das percepções culturais do rigor, da cooperação, da ambição, da participação e da inovação. 
Fico-me por estas observações, porque vou resistir à tentação de comentar os outros conteúdos acima citados, aqueles que nos reportam para umas «vivências egotistas em diferido», ou para umas «vivências partilhadas em tempo real», ou ainda para uma «opção macro-estrutural de gestão da comunidade global».
Seja o que for e como for, estamos sempre perante um desmedido e incompreensível autismo que tem, no mínimo, duas funestas consequência: o de ser um discurso que se descredibiliza a si próprio; e o de ser um discurso que conduz à absoluta desorientação de quem tem a tarefa de concretizar um projecto inconcretizável. O resultado é que, sem referencial credível e com a enorme pressão política e mediática que durante anos os governos de Sócrates realizaram sobre a Iniciativa Novas Oportunidades, estes cursos, em muitos sítios, entraram em roda livre.

quarta-feira, 21 de março de 2012

Às quartas

Não fugir. Suster o peso da hora
Sem palavras minhas e sem os sonhos,
Fáceis, e sem as outras falsidades.
Numa espécie de morte mais terrível
Ser de mim despojado, ser
abandonado aos pés como um vestido.
Sem pressa atravessar a asfixia.
Não vergar. Suster o peso da hora
Até soltar sua canção intacta.

Cristovam Pavia

Estranhos silêncios

Há pouco mais de quinze dias, foi divulgado um estudo realizado pela Universidade do Porto que concluía o seguinte:
a) no ensino superior, os alunos oriundos dos colégios privados obtêm classificações mais baixas do que os alunos provenientes das escolas públicas; 
b) as classificações com que os alunos entram nas universidades não tem nenhuma relação relevante com o seu posterior desempenho nas faculdades.

Aguardei, desde então, pelo aceso debate que estas conclusões supostamente deveriam suscitar. Mas aguardei em vão. Não me recordo de ter lido ou ouvido nenhuma polémica particularmente relevante sobre a matéria. Contudo, parece estranho isso não ter acontecido. 
Na realidade, o assunto é sério. Aliás, é particularmente sério. E não se compreende o silêncio de algumas vozes e de algumas penas que recorrentemente se reclamam detentoras do monopólio da defesa do ensino exigente e rigoroso e o identificam com o ensino praticado nas escolas privadas. Alegam, a favor desta pretensa «evidência», com os resultados anualmente publicados nos rankings das escolas. Ora, o estudo desmente a dita «evidência». Deste modo, o seu silêncio é comprometedor: a partir de agora, persistirá sempre a dúvida (ou a certeza) de que aquilo que verdadeiramente move tais vozes e tais penas não é a defesa da exigência e do rigor no ensino, mas apenas a defesa interessada, e muitas vezes interesseira, das escolas privadas em detrimento das escolas públicas. 
O estudo contraria, de modo objectivo, a ideia repetidamente divulgada de que a qualidade da educação está nos colégios e de que, consequentemente, as escolas do Estado devem seguir o seu exemplo. O estudo revela a falsidade da proposição que afirma a melhor preparação dos alunos do ensino privado em relação aos alunos saídos do ensino público. Ao contrário, o estudo mostra que são os alunos provenientes da escolas do Estado que obtêm, em média, as mais altas classificações, no ensino superior. De entre os exemplos mencionados no estudo, refere-se o caso das duas escolas que mais estudantes conseguiram fazer entrar na Universidade do Porto, no ano lectivo 2008/2009: o Externato Ribadouro (ensino privado) colocou 154 estudantes e a Escola Secundária Garcia da Orta (ensino público) 114. Ao fim de três anos na Universidade do Porto, dos 154 estudantes provenientes do Externato apenas se contavam 5 entre os melhores alunos, enquanto dos 114 oriundos da Garcia de Orta havia quase o triplo, 14. Em todos os critérios do estudo, os alunos das escolas públicas obtiveram sempre os melhores resultados. 
Ora isto mostra duas coisas:
1. Os rankings das escolas, quer pela forma grosseira como são feitos quer pela natureza dos dados em que se fundamentam, não possuem credibilidade: uma escola situada no topo do ranking não significa ser a escola com os alunos melhor preparados, e muito menos significa ser a escola onde melhor se ensina;
2. A fiabilidade avaliativa dos exames nacionais é reduzida: os alunos que obtêm melhores resultados nos exames não são necessariamente aqueles que têm mais e melhores conhecimentos nem são aqueles que estão mais capacitados para serem melhores alunos universitários.
É por isso que, relativamente aos critérios de acesso ao ensino superior, deste estudo se retira uma conclusão: «Precisávamos que os jovens fossem escolhidos de outra maneira, que deixassem os dezanoves e os vintes e se privilegiasse o cidadão, assim como necessitávamos de um novo modelo de ensino e de um número de alunos mais reduzido para fazermos muito bem o nosso trabalho».

Sobre esta matéria era interessante ouvir o comentário de Nuno Crato. Sabendo nós que o actual ministro da Educação é um obsessivo defensor dos exames nacionais, pois vê neles a forma mais fiável e mais credível de avaliar, conviria conhecer-se que ilações ele retira dos resultados deste estudo universitário. 
Todavia, nestas situações como em outras similares, o silêncio vai continuando a valer como estratégia de recurso...

terça-feira, 20 de março de 2012

Bonecos de palavra

Quino, Não Me Grite!, Pub. Dom Quixote.

Nacos

— Não é bom para ti fechares-te dessa maneira — disse ela.
— Mas sinto-me bastante feliz.
— Estás muito triste, meu querido, como acabaste de confessar.
— Isto vai passar — respondi, perguntando-me se esse milagre não se teria já verificado.
— Não tens ninguém à tua altura com quem falar.
— Tenho-te a ti.
Em resposta, surpreendeu-me, como tinha feito noutras ocasiões, roçando, por breves instantes e maliciosamente, como que por acidente, aquele elemento da minha anatomia que provava que eu não era seu igual. E, depois de o ter feito, aquele diabrete começou a caminhar monte acima. Segui-a um tanto confuso, ciente de que tinha de corrigir o meu capítulo sobre os usos dos Americanos.
— És um demónio — disse, beijando-a.
— Posso tornar-me um anjo, aos olhos de Deus.
E assim prosseguiu a nossa conversa sobre o assunto do matrimónio, sempre presente e nunca completamente explícito. Porém, quando ela disse anjo imaginei, como era sua intenção, Amelia Godfroy vestida de branco diante de um altar.
Peter Carey, Parrot e Olivier na América, Gradiva.

segunda-feira, 19 de março de 2012

Comentário de segunda - As elites que temos...

Pessoalmente nada tenho a favor ou contra Pedro Santana Lopes, por uma razão: não o conheço. Só o conheço enquanto actor político, e é nessa qualidade que tenho o direito e o dever de o avaliar. É pois este o contexto em que se insere o que a seguir digo.
Santana Lopes anunciou na última edição do Expresso que não afastava a hipótese de ser candidato a Presidente da República. O que significa dizer que Santana Lopes deseja, de facto, ser candidato e, consequentemente, deseja, de facto, ser Presidente. O problema está precisamente aqui. Vou tentar explicar.
Sou de opinião, tenho-o dito neste blogue algumas vezes, que uma das principais causas das graves crises por que Portugal tem passado, e em particular a actual por que está a passar, reside na mediocridade das nossas elites — refiro-me nomeadamente às nossas elites políticas, financeiras e empresariais. São estas elites as primeiras responsáveis pelo que o país tem sofrido e está a sofrer. Pelo menos, nestes três domínios, quem dirige o país está, em regra, mal preparado, do ponto de vista técnico, e mal ancorado, do ponto de vista cultural e ético. A esta má preparação geral, junta-se, em muitos casos, um egocentrismo doentio que os torna incapazes de se focalizarem nos problemas do país ou das empresas, em detrimento   dos seus interesses pessoais. É assim na política, é assim no sector empresarial.
Santana Lopes é um bom exemplo para ilustrar esta realidade. Para além das suas deambulações pelo mundo frívolo e idiota do designado jet set, que de verdadeiramente significativo fez ele para ter ascendido a líder do PSD e a primeiro-ministro? E quando exerceu as funções de chefe de governo, como as exerceu? E como saiu delas? Nenhuma das respostas a esta perguntas é minimamente lisonjeira para Santana Lopes. E quando o vemos, na televisão, a comentar a política, que diz ele que se distinga do nível mais elementar do senso comum? A resposta continua a ser negativa. Apesar de tudo isto, apesar de todas as trapalhadas em que política e institucionalmente andou envolvido, apesar da sua imensa falta de preparação, que conduziu à sua efémera passagem pelo governo, Santana Lopes mantém a irresponsabilidade de persistir em querer protagonizar altos cargos e funções de Estado. Sócrates padece do mesmo mal, Passos Coelho também, Cavaco Silva idem aspas. Se passarmos para o mundo financeiro ou para o mundo empresarial, o panorama não muda.
Santana Lopes é apenas um exemplo da mediocridade e da irresponsabilidade das elites que temos.

domingo, 18 de março de 2012

Caravan Palace

Pensamentos de domingo

«Especialistas sem espírito, sensualistas sem coração — e esta nulidade considera-se, ainda por cima, o supra-sumo da civilização.»
(Atribuído a) Goethe

«Não é coisa fácil decidir se a nossa época se caracteriza pelo excesso ou pela míngua de crença.»
Carlos Drummond de Andrade 

«Melhor morrer de vodka que de tédio!»
Maiakovski
In Eduardo Giannetti, O Livro das Citações, Pub. Dom Quixote.

Para clicar (obrigatoriamente)


sábado, 17 de março de 2012

Ao sábado: momento quase filosófico

«Um oleiro consultou Sócrates [o grego] sobre o que fazer, se haveria de se casar ou de permanecer solteiro. Sócrates [o grego] aconselhou-o:
— Faças o que fizeres, vais arrepender-te.»
In Pedro González Calero, A Filosofia com Humor, Planeta (adaptado).

sexta-feira, 16 de março de 2012

Novas Oportunidades (8)

Deixo mais algumas observações acerca dos cursos EFA, da Iniciativa Novas Oportunidades (INO).

Apesar de longa, creio ser de utilidade e interesse fazer a transcrição de uma passagem do Guia de Operacionalização dos Cursos de Educação e Formação de Adultos — documento que tenho vindo a aludir, ao longo destes textos. O conteúdo do excerto refere-se aos cursos EFA, de nível secundário (NS).
Passo à transcrição, sem comentários prévios:
«Os cursos EFA – NS compreendem uma componente de formação de base que integra três áreas de competências-chave: Cidadania e Profissionalidade (CP), Sociedade, Tecnologia e Ciência (STC) e Cultura, Língua e Comunicação (CLC), na sequência do que está definido no Referencial de Competências-Chave (RCC) para este nível.
Estas áreas estão organizadas no Catálogo por unidades de formação de curta duração (UFCD) de 50 horas cada, que seguiram igualmente a estrutura daquele referencial: oito em CP, sete em STC e sete em CLC. Ou seja, a cada UFCD constante na componente de formação de base dos percursos formativos explicitados no Catálogo Nacional de Qualificações corresponde uma Unidade de Competência (UC) do Referencial de Competências-Chave (RCC).
No RCC, o elenco dos Núcleos Geradores tem um carácter específico na área de Cidadania e Profissionalidade, sendo comum a Sociedade, Tecnologia e Ciência e a Cultura, Língua e Comunicação, dando origem à expressão de “áreas gémeas” para designar estas duas áreas. As UC derivam dos Núcleos Geradores de cada área e integram as competências que os formandos terão de evidenciar em processo de RVCC, com vista à certificação do nível secundário.
As competências de cada unidade do RCC estão definidas a partir de quatro domínios de referência para a acção (DRA), entendidos, em sentido lato, como os contextos de vida em que as aprendizagens são aplicadas (contextos individual, privado, institucional e macro-estrutural). Para além disso, as competências organizam-se por dimensões, que definem o quadro de representação em que o formando as manifesta, no âmbito de cada área de competências-chave.
No caso dos cursos EFA de nível secundário, as UFCD da formação de base organizam-se a partir de resultados de aprendizagem, quatro por UFCD, em referência às quatro competências por Unidade do Referencial de Competências-Chave. Estes quatro re- sultados também se associam aos DRA que o Referencial de Competências-Chave define para cada Núcleo Gerador, dando origem às quatro competências por unidade. [...]
Na organização interna de cada UFCD estão ainda contempladas as diferentes dimensões das competências, designadamente nas áreas de Sociedade, Tecnologia e Ciência (STC) e Cultura, Língua e Comunicação (CLC), de modo articulado e transversal, em resultado da interdependência que aquelas dimensões revelam quando trabalhadas em contexto de formação. Uma exploração atenta destas UFCD revelará conceitos-chave e conteúdos de formação que se associam, directa e indirectamente, às dimensões social, tecnológica e científica, no caso de STC, bem como às dimensões cultural, linguística e comunicacional, no que diz respeito a CLC» (pp. 65-66).
O conteúdo deste excerto parece ter o objectivo de nos elucidar sobre a orgânica dos cursos EFA. Independentemente de se saber se o objectivo é minimamente alcançado, o que julgo ser relevante é, para além do que a linguagem e a terminologia por si próprias revelam, a concepção proto-mecânica de estruturar um curso de formação e a necessidade quase obsessiva (presente em quase todos os documentos da INO) de mostrar uma excepcional complexidade formal dos cursos (e do próprio acto de formar). Ora, as construções teóricas na educação são particularmente sensíveis ao confronto com a realidade. Grande parte da fragilidade de muitas dessas construções advém do facto de quer o seu ponto de partida quer o seu ponto de chegada estarem muito afastados da realidade sobre a qual pretendem agir. Uma construção teórica não pode ser, em nenhuma circunstância, um discurso fechado sobre si próprio ou um discurso que se delicia com a sua imagem no espelho. Da mesma forma, a credibilidade de uma teoria ou de um modelo formativo não se obtém pelo maior ou menor formalismo, pela maior ou menor aparência de complexidade.
O designado «eduquês» tem, nos parágrafos citados, uma verdadeira homenagem. As designações, as siglas, as relações, as interacções, as dependências, as interdependências... são muitas e são múltiplas.
Siglas e designações:
     - Cidadania e Profissionalidade (CP); Sociedade, Tecnologia e Ciência (STC); Cultura, Língua e Comunicação (CLC); Componente de Formação de Base; Áreas de Competências-Chave, Referencial de Competências-Chave (RCC); Unidades de Formação de Curta Duração (UFCD); Catálogo Nacional de Qualificações; Unidade de Competência (UC); Núcleos Geradores; Domínios de Referência para a Acção (DRA).
Vejamos agora as relações, interacções, dependências, interdependências...:
    - há uma componente de formação de base e três áreas de competências-chave. As áreas de competências-chave estão organizadas por unidades de formação de curta duração. Existem núcleos geradores, que têm um carácter específico numa área, mas já não têm um carácter específico nas duas outras áreas, as que são designadas por «áreas gémeas». As unidades de competência derivam dos núcleos geradores de cada área e integram as competências. Por seu turno, as competências estão definidas a partir de quatro domínios. Estes domínios são os domínios de referência para a acção, que devem ser entendidos como os contextos de vida em que as aprendizagens são aplicadas. Ora, os contextos de vida são quatro: o contexto individual, o contexto privado, o contexto institucional e o contexto macro-estrutural (umas linhas abaixo os contextos continuam a contar-se por quatro, mas com uma pequena alteração na designação: o privado passa a profissional — o que parece ser a versão correcta). Para além disto, as competências organizam-se por dimensões que, por sua vez, definem o quadro de representação em que o formando manifesta as competências, no âmbito, claro, de cada área de competências-chave. Por seu turno, as unidades de formação de curta duração da formação de base organizam-se a partir de resultados de aprendizagem. Ora, os resultados de aprendizagem são quatro por unidade de formação de curta duração, em referência às quatro competências por unidade do referencial de competências-chave. Todavia, estes resultados também estão associados aos domínios de referência para a acção que o referencial de competências-chave define para cada núcleo gerador, dando origem às quatro competências por unidade. Finalmente, na organização interna de cada unidade de formação de curta duração estão contempladas as diferentes dimensões das competências. Isto feito, como é óbvio, de modo articulado e transversal, em resultado da interdependência que aquelas dimensões revelam quando trabalhadas em contexto de formação.

Este é o retrato da obscura e emaranhada orgânica dos cursos EFA de nível secundário. E é igualmente o retrato do obscuro e emaranhado mundo conceptual que tem dominado o Ministério da Educação nos últimos anos.
Na próxima semana, tentarei deixar algumas notas sobre os conteúdos de formação e sobre os resultados de aprendizagem que os designados formandos devem, na terminologia oficial, evidenciar.

quinta-feira, 15 de março de 2012

Quinta da música - Felix Mendelssohn

Trechos - Franco Cazzola

«"Provavelmente é verdade, como defende Hobsbswm, que o próprio sucesso da esquerda acabou com o enfraquecimento do seu programa, no sentido em que muitos dos objectivos pelos quais começou a bater-se há um século foram alcançados, pelo menos na Europa: da democracia ao sufrágio universal, à extensão da protecção dos sujeitos socialmente mais fracos. [...] Por um lado, esmorecia cada vez mais o fascínio dos modelos acabados por sociedade alternativas à capitalista [...]. Por outro lado, em muitos países europeus o limite de capacidade de reforma das sociedades existentes parecia atingido e, de qualquer modo, só restava à esquerda 'realista' o objectivo de conservar o que tinha sido obtido" [Agosti 2000, X-XI]."

Fim da história? Ou a própria história, como assinala Eco, parece enrolar-se para trás? Andamos a passo de caranguejo [Eco 2006].
Conservar o que foi conquistado, amainar as velas, aceitar o inevitável. Se é isto o que resta à esquerda, é bom recordar também os factos que estão a verificar-se neste difícl início do novo milénio.
Por um lado, o que foi conquistado não está assegurado de uma vez por todas, pelo contrário, é continuamente posto em causa (do voto livre aos direitos de cidadania e de expressão, ao direito à saúde e à educação, etc.); por outro lado, como recordava, há já dez anos (e ainda não tinha rebentado a crise planetária e 2008), o já citado Lukes:

"[...] tal como se restringiu o horizonte político da esquerda [...], ao mesmo tempo desvantagens e privações aumentaram em diversas dimensões no interior dos países desenvolvidos, nos países em vias de desenvolvimento e entre os primeiros e os segundos. Há 20 milhões de desempregados só na Euopa Ocidental, sem qualquer perspectiva de retorno ao pleno emprego, enquanto uma crescente pobreza e marginalização e a exclusão social de categorias de pessoas cada vez mais amplas parecem ser inseparáveis das sociedades liberais e capitalistas, não obstante os crescentes custos das políticas de welfare. Enquanto se contraem os recursos da esquerda, aumentam as exigências à sua inventiva programática e à sua imaginação" [Lukes 1997, 314].»
Franco Cazzola, O Que Resta da Esquerda, Cavalo de Ferro

quarta-feira, 14 de março de 2012

Às quartas

Laranja, peso, potência.
Que se finca, se apoia, delicadeza, fria abundância.
A matéria pensa. As madeiras
incham, dão luz. Apuram tão leve açúcar,
tal golpe na língua. Espaço lunado onde a laranja
recebe soberania.
E por anéis de carne artesiana o ouro sobe à cabeça.
A ferida que a gente é: de mundo
e invenção. Laranja
assombrosamente. Doce demência, arrancada à 
          monstruosa
inocência da terra.

Herberto Helder

Sempre más notícias

O anterior secretário de Estado da Energia demitiu-se porque parece ter sido derrotado pelos poderosos interesses das companhias energéticas, em particular da EDP.
O ministro da Economia não tinha sido convidado pelo comissário europeu Olli Rehn para as reuniões que este vai realizar em Portugal, com diversas entidades. À última hora, depois de publicitado o enxovalho, foi conseguido um breve encontro do ministro com o comissário.
Entretanto, Portugal subiu ao 1.º lugar do clube dos países candidatos à bancarrota e os juros da dívida portuguesa não param de subir. O ex-primeiro ministro grego, Georges Papandreou, avisa que «Portugal vai no mesmo caminho da Grécia». Mas o primeiro-ministro português, cego e surdo, faz de conta que nada está a acontecer e que nada vai acontecer. Irresponsavelmente prossegue em direcção ao muro.
E continua a não chover — apesar das preces da ministra da Agricultura —, e continua a não haver meio de aparecer petróleo na costa portuguesa... As más notícias são diárias.
Excepcionalmente, uma boa notícia: o director do jornal i foi demitido.

Para clicar


terça-feira, 13 de março de 2012

Bonecos de palavra

Quino, Não Me Grite!, Pub. Dom Quixote

Nacos

«A primeira visita foi a uma nova máquina debulhadora de cereais que Mr. Godefroy comprara no ano anterior. Fustigados pela chuva miudinha, ficámos a ver o monstro a trabalhar, e não havia falta de vizinhos e trabalhadores para explicar, uma e outra vez, as maravilhas do mecanismo. A única voz discordante, e a mais complexa e eloquente, era a de Amelia Godefroy, que forneceu um exemplo perfeito dessa veemência, dessa surpreendente melancolia, dessa nostalgia inesperada a que os Americanos são tão vulneráveis. Embora o seu passado seja tão breve, estão conscientes de um mundo ideal, de uma natureza perfeita que desaparece perante os olhos, sentimentos que seriam mais de esperar numa sociedade aristocrática do que numa sociedade democrática.
Assim, Miss Godefroy, a propósito da debulhadora de cereais, com os braços cruzados sob a capa de oleado, com a chuva a correr pelas faces encantadoras, declarou:
— Antes desta encantadora invenção que tanto entusiasma o meu querido pai, o trigo era transportado para o celeiro quando fazia bom tempo, e depois, durante o Inverno, os jovens iam de quinta em quinta ao entardecer e faziam da debulha uma festa. A pessoa que descamisasse uma maçaroca vermelha tinha direito a beijar o namorado ou a namorada. Era uma maneira de tornar o trabalho agradável. Foi substituída por aquilo que estão a ver: este trabalhador solitário a debulhar o trigo num campo frio em Dezembro.
A maçaroca vermelha. Como poderia eu não a amar?»
Peter Carey, Parrot e Olivier na América, Gradiva.

segunda-feira, 12 de março de 2012

Comentário de segunda: Cavaco e Sócrates

Cavaco Silva disse de Sócrates o que todos sabíamos e sabemos: que Sócrates é politicamente desonesto e institucionalmente desleal. Não constitui novidade. Sócrates foi certamente o português que mais degradou o exercício da política, desde o 25 de Abril. Não tenho memória de nenhum político anterior a ele que tenha feito tanto mal ao país e que tanto tenha contribuído para a descredibilização da vida pública. Descredibilizou tudo o que havia para descredibilizar: descredibilizou a democracia, descredibilizou a esquerda, descredibilizou a acção governativa, descredibilizou a palavra compromisso, a palavra responsabilidade, a palavra lealdade. Foi patologicamente arrogante, foi recorrentemente grosseiro e foi incompetente em quase tudo o que fez. Esta é a realidade e convém lembrá-la enquanto a personagem alimentar ilusões quanto a eventuais regressos.
Cavaco Silva foi criticado por ter vindo agora, e no estatuto de Presidente da República, recordar as deslealdades institucionais do ex-primeiro-ministro. Acusam Cavaco de não ter agido segundo o interesse nacional, mas apenas movido por sentimentos mesquinhos de vingança pessoal. Não tenho nenhuma dúvida de que isso é verdade. Todavia, o que importa saber é se este modo de actuar de Cavaco Silva constitui uma novidade. Não compreendo a surpresa, ele sempre procedeu assim. Desde 1980, quando exerceu as funções de ministro das Finanças, no governo de Sá Carneiro, que Cavaco Silva agiu e age pondo sempre em primeiro lugar os seus interesses pessoais. Não seria de esperar que agora mudasse.
Uma das causas dos nossos males é precisamente esta: a nossa elite política é medíocre. É constituída por uma maioria de actores que nunca estiveram nem estão à altura das responsabilidades que assumem, e para as quais livremente se candidatam.
A ruptura com a elite política que nos tem governado é uma condição de possibilidade de Portugal ainda poder vir a ser um país diferente.

domingo, 11 de março de 2012

Philippe Jaroussky

Pensamentos de domingo

«Ideias genéricas e uma grande presunção estão sempre em via de causar uma terrível desgraça.»
Johann Goethe

«Ao envelhecer, parei de escutar o que as pessoas dizem. Agora só presto atenção ao que elas fazem.»
Andrew Carnegie

«Vou-lhe dizer um grande segredo, meu caro. Não espere o juízo final. Ele realiza-se todos os dias.
Albert Camus
In Paulo Neves da Silva, Dicionário de Citações, Âncora Editora.

sábado, 10 de março de 2012

Ao sábado: momento quase filosófico

O problema do pragmatismo

«Rumi conta que um merceeiro amava ardentemente uma mulher e enviou-lhe uma mensagem por intermédio da criada.
Disse à criada para transmitir à sua patroa o seguinte: "Estou de cabeça perdida, o meu coração foi roubado por uma lua sem igual, ardo, o sono abandonou as minhas noites, já não como, sofro mil dores cruéis..." E assim por diante.
A criada ouviu-o, depois foi ter com a patroa e disse-lhe:
— O merceeiro manda-lhe cumprimentos. Quer dormir consigo.
— Ele disse isso assim friamente? — perguntou a mulher.
— Não, fartou-se de contar histórias. Mas o essencial é isto.»
In Jean-Claude Carrière, Tertúlia de Mentirosos, Teorema (adaptado).

sexta-feira, 9 de março de 2012

Novas Oportunidades (7)

No texto da semana passada, referi o que entendo ser um dos males nucleares do modelo de formação da Iniciativa Novas Oportunidades (INO): assentar numa construção teórica autodeslumbrada, sem capacidade de auto-escrutíneo e, simultaneamente, muito afastada da realidade. O autodeslumbramento e a ausência de auto-escrutíneo tem consequências diversas, uma delas é a de gerar contradições insuperáveis.
Segundo o Guia de Operacionalização dos Cursos de Educação e Formação de Adultos, os cargos de mediador e de formador dos cursos EFA não podem ser exercidos por qualquer um. Depreende-se, do que se lê, que a sua escolha deve ser criteriosa e rigorosa: «A função do mediador deve ser desempenhada por formadores e outros profissionais, designadamente ligados às tarefas de orientação vocacional, detentores de habilitação de nível superior e possuidores de experiência relevante em matéria de educação e formação de adultos» (pp. 44-45).
Relativamente à selecção dos formadores, exige-se que: «Deve ser considerada a importância da qualidade pedagógica comprovada e da experiência profissional prévia destes elementos em ofertas formativas especificamente vocacionadas para a educação e formação de adultos, como critérios que garantem a prossecução dos objectivos e princípios orientadores dos cursos EFA» (em ambas as citações os sublinhados são meus).
O acto da escrita é um acto livre, todavia, quem escreve e ao mesmo tempo prescreve tem a obrigação de saber o que está a escrever e a prescrever. Ora, quem escreveu e prescreveu o que acabei de citar dificilmente saberia, quando o fez, o que estava realmente a prescrever. Se o objectivo da INO era (e foi, e continua a ser) o de certificar, formar e educar mais de um milhão de portugueses num relativamente curto período de tempo, ou seja, se o objectivo era (e é) uma massificação da certificação, formação e educação de adultos, como foi possível alguém determinar que o recrutamento dos mediadores e dos formadores deveria obedecer aos critérios de, respectivamente: posse de «experiência relevante em matéria de educação e formação de adultos» e de «experiência profissional prévia destes elementos em ofertas formativas especificamente vocacionadas para a educação e formação de adultos»? Uma massificação de formandos implica uma proporcional massificação de mediadores e de formadores. Em Portugal, era de todos conhecido que não existiam recursos humanos massificados no  domínio da educação e formação de adultos. Contudo, isso não impediu minimamente que se construísse um modelo cujos pressupostos exigiam precisamente o que não havia: recursos humanos massificados no domínio da educação e formação de adultos. E das duas uma: ou essa exigência tinha um carácter meramente folclórico para proporcionar uma aparência e uma exigência que o modelo na realidade não tinha, não tem nem pressupõe; ou essa exigência era, na verdade, um pré-requisito essencial para o sucesso do modelo e, neste caso, não sendo o pré-requisito satisfeito o modelo vê o seu sucesso hipotecado. 
O que nos revela a realidade? Revela que foram e são atribuídas as funções de mediador e de formador a professores que nunca na sua vida profissional estiveram ligados à educação e formação de adultos; revela que há mediadores sem qualquer «experiência relevante», pois nem a experiência mínima possuem nesta área; revela que há formadores cuja «experiência profissional prévia» é zero, na educação e formação de adultos.
À permanente falta de sobriedade dos textos fundamentadores da INO, acrescenta-se uma notável desadequação da realidade, o que não só os descredibiliza como os torna, em muitos casos, inúteis.

Uma outra observação.
A propósito da figura do mediador, é dito o seguinte, no Guia que tenho vindo a citar: «a função de mediação é de extrema exigência e implica isenção e imparcialidade em diversas situações». Sublinhei a expressão «extrema exigência» apenas para, mais uma vez, realçar o pouco comedimento do discurso, porque o que verdadeiramente interessa é a parte da «isenção» e da «imparcialidade», que está intimamente ligada à escolha do termo mediador, e à concepção que lhe está subjacente.
Porquê a designação de «mediador»? Porquê «isenção» e «imparcialidade»? O que é que, na realidade, há a mediar que dê substância e razão de ser ao termo «mediador» e obriga a chamar a atenção para exigência de «isenção» e de «imparcialidade»? 
Deve ser, certamente, algo de muito importante, a julgar pelo que é dito logo a seguir à frase que citei: «[o mediador] não deve ser formador em qualquer área ou componente da formação do(s) curso(s) em que for mediador, salvo em casos excepcionais, devidamente justificados e com autorização da entidade competente para a autorização do funcionamento do curso» (o sublinhado continua a ser meu). É notável a necessidade de emproamento e de formalismo e de aparentar um nível de exigência e de complexidade pretensamente só acessível a especialistas seniores. Mas adiante, voltando à questão: afinal o que medeia o mediador? Diz o Guia, o mediador «faz a mediação do grupo de formação, atendendo às suas dinâmicas e às características de cada adulto em particular na negociação de atitudes e objectivos face à formação, ou até mesmo na resolução de diferendos.» Confesso a minha dificuldade em perceber o que significa exactamente fazer «a mediação do grupo de formação», mas para além desta dificuldade, que é minha, o que é que o mediador faz a mais que qualquer director de turma do ensino secundário não faça, no que diz respeito especificamente ao conceito de mediação acima enunciado? Nada, a não ser que esteja a ser dado um significado muito particular aos termos «negociação» e «diferendo». Se, aqui, o significado de «negociação» e «diferendo» nos pretende remeter para contextos em que duas partes (neste caso, formandos e formadores) têm interesses divergentes ou antagónicos e, pela via da negociação, cujo o protagonista seria o mediador que, com «isenção» e «imparcialidade», procuraria chegar a compromissos, através de cedências de ambas as partes; se é este o significado com que são utilizados aqueles dois termos, distancio-me totalmente de tal concepção. Em contexto educativo tais significados não têm cabimento — a relação educativa não é uma relação de natureza sindical ou sequer de natureza aparentada. 
Se não é nesse sentido, então o termo «mediador» nada traz de novo e a sua introdução é arbitrária ou, e mais uma vez, de cariz ideológico.

quinta-feira, 8 de março de 2012

Quinta da música - Maurice Ravel

Trechos - Franco Cazzola

«[...] Diz-se: toda a política foi derrotada, ou foi substituída, pela administração e pela tecnocracia. Já não teria razão de existir, pela administração e pela tecnocracia. Já não teria razão de existir, num universo mercantil totalmente auto-suficiente. Resultado: transferência de poder da política para o mercado. A política estaria predestinada à dependência de poderes dominantes, quase sempre invisíveis e não democráticos, e de corporações fortes e ossificadas, intocáveis. A concentração oligárquica configuraria um novo sistema de interesses capaz quer de definir os temas da agenda de decisões quer de oferecer-se como margem aparentemente para a declinação das soluções, subtraído assim à obrigação cansativa do confronto e da mediação.»
Franco Cazzola, O Que Resta da Esquerda, Cavalo de Ferro.

8 de Março

quarta-feira, 7 de março de 2012

Para clicar


Às quartas

DESCIDA AO ESQUECIMENTO

Aqui os mortos estão sentados,
imóveis em redor do tempo,
a contemplar a pálida, e eterna fogueira,
insolitamente sombrios nesta reunião solitária.

Atravessados por espinhos azuis,
por húmidas músicas, e obstinadas cigarras.
Os vendavais castigam seus gestos primitivos,
os corpos vaporosos
se condensam em prolongadas chuvas.

Não. Não fales o idioma extinto.
Não pronuncies o teu nome.
Não rodopies com fatal lentidão a atormentada cabeça.
Que  não reconheçam os ocos corações
devorados pelos pássaros.

Enrique Molina
(Trad.: Jorge Henrique Bastos)

Ainda Sócrates e ainda as «nuances» da crise

Processo da licenciatura de Sócrates pode reabrir
Expresso

Custos da Parque Escolar aumentaram 400%
Público

Construção: Parque Escolar "está no limite do incumprimento" - FEPICOP 
Expresso

Sócrates não deixa de incomodar. Na verdade, seria ilusório pensar que era possível não voltarmos a ouvir falar dele ou das consequências da sua governação. Dele fala-se sempre pelas piores razões, e, mais uma vez, volta a história da trapalhada da sua ainda e sempre duvidosa licenciatura. Agora com novas revelações documentais e com novas escutas que ainda mais comprometem aquele que, desgraçadamente para (quase) todos nós, governou o país. 
Desgraça que não se circunscreve ao período em que exerceu o poder. As sequelas da sua política prolongar-se-ão por muito tempo, como é o caso:  ficamos agora a saber que uma das meninas dos olhos da sua governação — a Parque Escolar — gastou das verbas do erário público mais 400% do que estava previsto e anunciado e está à beira de não pagar os compromissos financeiros que assumiu. 400% é um desvio brutal. Inevitavelmente, alguém terá de responder por isto nos tribunais. 
O desvario e a irresponsabilidade de Sócrates têm aqui mais um fidelíssimo retrato.

Governo mantém salários na TAP e cortes feitos serão devolvidos
Público

Lucros da Jerónimo Martins crescem 21% para 340 milhões em 2011
Jornal de Negócios

Já todos sabíamos e as confirmações vão surgindo com regularidade: a crise não é igual para todos. Ou porque o governo, sem pudor, dá o dito por não dito e abre as excepções que entende; ou porque a realidade, para alguns, não está assim tão má, o que torna ainda mais inaceitável a fuga aos impostos, realizada com o truque da migração de sedes sociais de empresas para o estrangeiro. A Jerónimo Martins é precisamente um exemplo disso.

terça-feira, 6 de março de 2012

Bonecos de palavra

Quino, Não Me Grite!, Pub. Dom Quixote.

Nacos

«Amelia era uma jovem muito culta, mas, dado ser americana, também era muito prática e ninguém ficaria surpreendido por uma parte da administração da quinta já lhe estar confiada. Nestes circunstâncias, era difícil considerar-se invulgar o facto de ela estar familiarizada com a arte das cartas ou com a diplomacia, embora me levasse aproximadamente um dia a compreender que, com todo o seu entusiasmo cristão, ela havia seriamente subestimado a quantidade de trabalho exigida a alguém que é secrétaire. Creio que considerava o serviço semelhante ao que poderia prestar a uma tia idosa — com os seus olhos outrora azuis agora enevoados, os nós dos dedos encordoados e rígidos — que desejasse escrever à irmã sobre o último sermão dominical, uma boa acção que, emocionado, a tinha visto praticar.
Mas sentia-me ridiculamente feliz por fazer um ditado em que exibia os dotes da minha mente, como esses pássaros-cetim que constroem um caramanchão para atraírem a companheira, por elaborar, como só um francês sabe fazer, as frases mais encantadoras e artísticas, murmurando linhas de raciocínio que já deslumbram no momento em que se organizam. Isto pode parecer um tanto grandiloquente ou louco, mas não é verdade que a ouvia suspirar?»
Peter Carey, Parrot e Olivier na América, Gradiva.

segunda-feira, 5 de março de 2012

Comentário de segunda: endividados e embrutecidos

No passado sábado, fui ao ex-Casino da Trafaria assistir ao espectáculo Origens — uma dramaturgia de textos poéticos de quatro autores (todos professores de filosofia), que uma criação colectiva conseguiu transformar num belíssimo espectáculo de teatro de arena.
Confesso a minha surpresa e o meu deslumbramento pela qualidade do trabalho realizado pelo Grupo de Iniciação Teatral da Trafaria, constituído exclusivamente por amadores. O desafio era arriscado: descobrir unidade em textos avulsos, «iluminar os versos» através da dramaturgia e fazê-lo de modo original, sem hermetismos nem artificialismos. Foi um prazer assistir às performances dos seis actores (que na realidade são sete, porque, enquanto o espectáculo decorre, há um pintor em cena que pinta o que a palavra dos actores e a música lhe suscitam — em cada actuação é produzida uma obra diferente e éfemera, pois é  destruída no fim da cada espectáculo). O trabalho vocal e corporal dos actores é muito cuidado e a expressividade das emoções, que o sentido das palavras incorpora, tem momentos particularmente felizes. 
Origens é um percurso que se inicia no suposto caos original e chega até aos nossos dias, em que o caos já é outro: o do consumo. Interrogativo, reflexivo, irónico e com humor subtil este longo caminho é percorrido num abrir e fechar de olhos, só possível pela conjugação da qualidade dos textos e da qualidade da  representação. O espaço cénico, em forma de campânula ou de ovo primitivo, que acolhe e aproxima público e actores, possibilita uma fecunda envolvência entre ambos.

Resumindo, eu deveria dizer: é um espectáculo a ver. Mas não posso, porque ontem foi a sua última apresentação, porque não há condições para continuar nem convites para visitar outros palcos. E um trabalho de qualidade vai ser perdido e esquecido. Mas nós somos assim: quase todos os dias deitamos fora o que tem valor e qualidade e preferimos coleccionar e atolharmo-nos de mediocridade. Do que nós gostamos mesmo é de telenovela, muita; de talk shows, muitos; de cuscuvilhice na tv, muitíssima; ou então, do outro lado, do lado do mundo das elites políticas, financeiras e empresariais, o que é mesmo apreciado é muito ranking, muita competitividade, muita pompa, muita cerimónia, muito aparato repleto de vazio. Há tempos, dei também aqui testemunho de um outro desgraçado exemplo de como, em Portugal, se despreza o que é bom: refiro-me ao último trabalho musical do grupo Toque de Caixa, o cd Cruzes Canhoto. Mais um caso vergonhoso de como a excelência é derrotada pela pimbalhada. E os exemplos poderiam ser muitos.
Somos um país que, para além de endividado, está embrutecido.

domingo, 4 de março de 2012

Illinois Jacquet

Pensamentos de domingo

«A estupidez insiste sempre.»
Albert Camus

«A estupidez tem de terrível o poder assemelhar-se à mais profunda das sabedorias.»
Valéry Larbaud

«Duas coisas são infinitas: o universo e a estupidez humana. Mas, no que respeita ao universo, ainda não adquiri a certeza absoluta.»
Albert Einstein
In Paulo Neves da Silva, Dicionário de Citações, Âncora Editora.

sábado, 3 de março de 2012

Ao sábado: momento quase filosófico

O génio libertado diz ao pescador que tinha feito saltar a tampa de chumbo da garrafa:
— Formula três desejos que eu os executarei. Qual é o teu primeiro desejo?
— Ei-lo — disse o pescador. — Quero que me tornes suficientemente inteligente para que possa escolher na perfeição os dois desejos seguintes.
— Concedido — disse o génio — E agora, quais são os teus outros desejos?
O pescador reflectiu por um momento e respondeu:
— Obrigado. Não tenho mais desejos.
In Jean-Claude Carrière, Tertúlia de Mentirosos, Teorema (adaptado).