sábado, 2 de julho de 2016

A nossa complacência com as elites

Fotografia de Pedro Costa
Soubemos esta semana que Miguel Relvas ficou (finalmente) sem a licenciatura que tinha obtido ilegalmente. Também esta semana ficámos a saber que Zeinal Bava, Henrique Granadeiro, Luís Pacheco de Melo e Amílcar Morais Pires (os dois primeiros, ex-presidentes da PT, o terceiro, administrador financeiro da PT, e o último, administrador financeiro do BES) foram acusados pela CMVM de burlarem o mercado com informações falsas nos relatórios e contas que apresentaram. Também os membros da Comissão de Auditoria da PT foram acusados, pela mesma entidade, de incumprimento das suas funções de fiscalização.
Estas são as mais recentes acusações de um infindável rol de processos resultantes de investigações realizadas pelas autoridades à actividade desenvolvida, nos últimos anos, pela designada elite financeira e empresarial. As acusações são às dezenas e os acusados às centenas. Esta elite tem-se revelado especialmente vocacionada para a prática de crimes.
Junte-se a este amontoado de indivíduos pertencentes à elite dos banqueiros e dos patrões o grupo de uma outra elite, a dos políticos que foram ou estão a ser objecto de processos judiciais (um primeiro-ministro, ministros, deputados, autarcas), e o número de implicados passa a atingir proporções verdadeiramente assustadoras.
Apesar destas elites já terem o usufruto indevido de indecorosas mordomias, que lhes advêm do facto de pertencerem a classes sociais desmedidamente privilegiadas, isso não as inibe de acumularem esses privilégios com a prática de gravíssimos crimes financeiros e económicos. Gente medíocre, incompetente e criminosa tem, pois, dominado a nossa vida colectiva.
Todavia, o olhar com que lemos estes factos não é menos assustador: olhamo-los de forma condescendente e resignada, encaramo-los como um azar do nosso destino colectivo ou, segundo um exercício intelectual supostamente mais elaborado, como uma fatalidade inerente à natureza humana... 
No dizer destes olhares, é uma inevitabilidade do destino ou da natureza humana uns terem de pagar (enquanto vítimas de exploração, de burla, de roubo, de corrupção, de evasão fiscal, etc.) para que outros possam usufruir, legal ou ilegalmente, do esplendor de uma vida apenas sustentável na ordem dos milhares ou dos milhares de milhões, seja qual for a divisa de que estejamos a falar. Uma oculta e misteriosa lei dividiria, portanto, os seres humanos em dois grupos: os que trabalham e pagam; e os que recebem e fruem, legal ou ilegalmente. Esta suposta lei da natureza seria a justificação para uma atitude tolerante que todos deveríamos ter em relação às desigualdades sociais legais e uma atitude passiva em relação à designada criminalidade de colarinho branco, porque o seu combate seria da exclusiva responsabilidade do poder judicial.
Contudo, há outros modos de olhar para esta realidade. Um outro modo é aquele que vê esta situação como a consequência decorrente, em grande parte, de uma demissão, de uma renúncia, de uma fuga ao cumprimento de um dever, que é simultaneamente um direito. Refiro-me ao dever e ao direito de exercermos o escrutínio directo de todas as actividades públicas que se desenvolvem à nossa volta. Refiro-me ao dever e ao direito de não delegarmos, sem controlo, quaisquer poderes públicos. Ao dever e ao direito de não aceitarmos a ideia de que existem seres humanos superiores a outros e de que essa alegada superioridade lhes dá direitos que ficam vedados aos restantes. O próprio exercício da Justiça tem de ser rigorosamente escrutinado. Polícias, advogados, magistrados e juízes não são seres humanos à parte dos restantes, possuídos de poderes intocáveis. Os poderes de que usufruem foram-lhes poderes emprestados/delegados pelos cidadãos (e porque lhes foram emprestados/delegados, também lhes podem ser retirados ou alterados).
Enquanto não realizarmos este dever/direito de cidadania plena em todos os locais e em todas as actividades onde desenvolvemos as nossas vidas, seremos, por inacção, coniventes com todas as situações relativas à realidade social que construimos.
Enquanto nos limitarmos ao depósito quadrienal de um boletim de voto na urna que a Junta de Freguesia nos disponibiliza, continuaremos não apenas a assistir ao aprofundamento de repugnantes desigualdades sociais como ao crescente exercício de violação das leis da nossa res publica.