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«Consideração da diversidade e da complexidade como fatores a ter em conta». «Criar um quadro de referência que pressuponha a liberdade, a responsabilidade, a valorização do trabalho, a consciência de si próprio, a inserção familiar e comunitária e a participação na sociedade que nos rodeia. «Equilíbrio entre o conhecimento, a compreensão, a criatividade e o sentido crítico». «O aprender a conhecer, o aprender a fazer, o aprender a viver juntos e a viver com os outros e o aprender a ser». «O global e o local, o universo e o singular, a tradição e a modernidade, o curto e o longo prazos, a concorrência e a igual consideração e respeito por todos, a rotina e o progresso, as ideias e a realidade».
Estas citações são excertos das primeiras vinte linhas do prefácio do documento intitulado Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória, que se encontra para discussão pública e que também é conhecido como Perfil dos Alunos para o Século XXI.
O prefácio tem trinta e cinco linhas. As sete linhas seguintes às primeiras vinte apresentam uma listagem, numa adaptação nem sempre feliz, dos sete saberes que Edgar Morin considerou necessários para a educação do futuro (trata-se de um trabalho, elaborado em 1999, a convite da UNESCO, que sintetiza as principais ideias do autor sobre a educação para o nosso milénio e as propostas formuladas por cerca de duas dezenas de personalidades de todo o mundo ligadas à educação). Depois da listagem, vêm as oito linhas finais onde é referida a educação, a cultura, a ciência, o saber e o saber fazer; o poeta, o artista, o artesão, o cientista, o desportista e o técnico; as aprendizagens, a inclusão, o desenvolvimento sustentável, a adaptabilidade, a estabilidade, o saber e as diferenças.
As trinta e cinco linhas impressionam pelo amontoado de conceitos que comportam e pela sensação de cansaço e de vazio que provocam em quem as lê, apesar de serem apenas trinta e cinco. Quando se quer dizer tudo acaba-se por dizer nada.
O problema é que o resto do documento sofre, grosso modo, do mesmo mal do seu prefácio, a que acresce a circunstância de ser repetitivo e às vezes presunçoso. É pena, porque, no meio da amálgama, as ideias boas acabam por ser trucidadas pelas ideias banais e pelo descrédito que o emaranhado suscita.
Além disso, no documento parecem existir fragilidades conceptuais, entre elas:
i) A falta de uma fundamentação que explique como se compatibiliza este perfil único de aluno com a simultânea defesa de multiplicidade de percursos formativos;
ii) Como se compatibiliza este perfil dos alunos à saída de 12 anos de escolaridade obrigatória com a circunstância de, ao fim desse tempo, uns alunos já terem concluído o 12.º ano e outros ainda poderem estar, por exemplo, a concluir o 9.º ano?;
iii) Por que razão o termo «valores» é conceptualmente tão mal tratado, na definição que é apresentada? E por que razão, logo de seguida, se escrevem coisas como esta: «O processo [valorativo] é mais complexo e multilateral. Trata-se da relação construída entre a realidade objetiva, os componentes da personalidade e os fatores de contexto [...]»? Se assim é, como se compatibiliza essa construção valorativa única (já que, como é dito, ela resulta da relação, certamente irrepetível, entre a realidade, a personalidade de cada um e os factores específicos de contexto) com a definição dos cinco valores enunciados no documento como valores para todos?
iv) Que elementos de natureza cognitiva e psicológica fundamentam e dão sentido a muitos dos descritores operativos propostos? Por exemplo, aos seguintes dois descritores operativos que enunciam que os alunos devem:
- «identificar, utilizar e criar diversos produtos linguísticos, literários, musicais, artísticos, tecnológicos, matemáticos e científicos, reconhecendo os significados neles contidos e gerando novos sentidos»;
- «generalizar as conclusões de uma pesquisa, criando modelos e produtos para representar situações hipotéticas ou da vida real. Testar a consistência dos modelos, analisando diferentes referenciais e condicionantes. Usar modelos para explicar um determinado sistema, para estudar os efeitos das variáveis e para fazer previsões acerca do comportamento do sistema em estudo. Avaliar diferentes produtos de acordo com critérios de qualidade e utilidade em diversos contextos significativos».
v) O conteúdo destes dois descritores é compatível com o terceiro princípio enunciado na página 8: «A escola contemporânea agrega uma diversidade de alunos tanto do ponto de vista socioeconómico e cultural como também do ponto de vista cognitivo e motivacional. A adoção do perfil é crítica para que todos possam ser incluídos [...]»?
vi) A seriedade intelectual permite que se enuncie como princípio que «cabe à escola o dever de dotar os jovens de conhecimento para a construção de uma sociedade mais justa»? Se os autores não tiveram o cuidado de esclarecer o que entendem por «uma sociedade mais justa», o que é que estão verdadeiramente a solicitar à escola?
Uma sociedade mais justa é aquela em que o Estado assume um grande papel interventivo na sociedade e, deste modo, assume a função de fazer a redistribuição de rendimentos? Ou uma sociedade mais justa é aquela em que o Estado assume um papel mínimo e deixa que a dita sociedade civil se auto-regule? Ou uma sociedade mais justa é aquela em que...? Para que modelo de «sociedade mais justa» a escola tem o dever de dotar os jovens de conhecimento?
Elencar generalidades é uma tentação, mas não é certamente uma boa tentação.
Não sei o que vai resultar da discussão pública em curso, mas se o documento que vier a ser adoptado não for substancialmente diferente deste, temo que tudo isto não passe de uma enorme perda de tempo para todos e mais um momento falhado na nossa história da Educação.