domingo, 30 de setembro de 2012

O Terreiro da indignação

Quinze dia depois, a indignação voltou a sair à rua. 
Desta vez, em Lisboa, foi o Terreiro do Paço que transbordou.






sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Exames nacionais — apontamentos (16)

Já referi nestes apontamentos o estudo realizado pela Universidade do Porto (divulgado há pouco meses) que concluiu: os alunos que obtêm as notas mais altas nos exames nacionais de acesso ao ensino superior não são, depois, os melhores alunos nos cursos superiores que frequentam. Isto é, quase todos os melhores alunos da Universidade do Porto não são aqueles que obtiveram classificações mais elevadas nas provas nacionais. Dito de outro modo, esta conclusão revela que os alunos melhor preparados afinal não eram aqueles que os exames disseram ser os alunos melhor preparados. De outra forma ainda: os exames não avaliam bem, não avaliam com fidelidade. Por esta razão, o reitor da Universidade do Porto, na apresentação das conclusões deste estudo, considerou ser necessário e urgente proceder a uma alteração na forma como se processa o acesso ao ensino superior.
Apesar deste estudo dizer o que diz, e aquilo que diz é de particular relevância, não tenho conhecimento de que lhe esteja a ser dada qualquer atenção por parte do ministério da Educação. Também não tenho conhecimento de qualquer análise realizada por Nuno Crato às suas conclusões. Desconheço igualmente qualquer argumento apresentado pelos fundamentalistas da generalização dos exames nacionais a todas as disciplinas, no final de cada ciclo, que conteste ou contrarie a investigação realizada.
O silêncio e a omissão a que este estudo foi e está a ser votado é passível de ser entendido de um modo pouco abonatório para quem, em nome do rigor, da seriedade e da objectividade defende tão entusiasticamente os exames nacionais. Na realidade, o rigor, a seriedade e a objectividade exigiriam uma especial atenção aos dados que esta investigação apurou. Ao não se dar essa devida atenção, torna-se legítimo pensar que aquilo que verdadeiramente sustenta a cruzada pela proliferação dos exames nacionais são apenas cegas e surdas motivações ideológicas.

O estudo confirma muitas das críticas que são dirigidas a este tipo de provas. Uma delas é: ou aquilo que é objecto de avaliação nas provas de exame não é o relevante, ou o modo como se avalia não tem fidelidade nem credibilidade (na verdade, ainda há uma terceira hipótese: o que se avalia não é relevante e o modo como se avalia não é fiel...). Qualquer uma das hipóteses é má, demasiado má para poder ser ignorada.
O estudo também mostra que, ao contrário do que é insistentemente propagandeado, os exames não premeiam o suposto «mérito» nem os supostos «melhores». Mostra até ser pertinente supor que alguns dos melhores poderão ter ficado pelo caminho, barrados por aqueles que obtiveram melhores notas nos exames, mas que depois, nos cursos superiores que frequentam, se revelam menos capazes.
No fundo, este estudo confirma o que muito de nós, professores, sabemos por experiência própria. Recordo-me de alguns casos de alunos que obtiveram no exame nacional uma classificação superior à classificação que eu lhes havia atribuído na classificação interna, e relembro a cara de alguns que se me dirigiam para me informar dos resultados e aproveitar a circunstância para sugerirem, ainda que de modo simpático, que afinal até mereciam ter tido, da minha parte, uma notazinha melhor... Não esqueço um caso especial, ocorrido há já algum tempo: no final do ano, atribuí a um aluno a classificação final de 11 valores (Filosofia - 12.º ano); no exame nacional, esse aluno obteve, a Filosofia, a classificação de 20 valores. Entrou na faculdade. Dois anos depois, mudou de curso. Ao fim de seis anos, já tinha frequentado três cursos diferentes, sem ter concluído nenhum. Acabou por abandonar o ensino superior sem nenhuma licenciatura.
A crer no resultado do exame nacional, este aluno era um génio. A crer no resultado do exame nacional, não havia dúvidas de que o aluno estava preparadíssimo para ser um excelente aluno no ensino superior. Mas a realidade revelou o contrário. 
Assim também o revela o estudo da Universidade do Porto.

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Da falta de competência e de respeito

Chegámos a um ponto perigoso: damos como relativamente normal que o extravagante, o bizarro, o esdrúxulo e o grotesco entrem no nosso quotidiano e se tornem dominantes. No âmbito do excêntrico, o ministério da Educação é um arquétipo.
Um exemplo, entre muitos, muitos outros.
Sem se conhecer o fundamento, o ministério da Educação determinou, através da nova matriz curricular, saída em Junho, uma redução de 25% na carga horária da disciplina de Filosofia, no 10.º e 11º anos do Ensino Recorrente (nocturno), e uma redução de 33% na carga horária da disciplina de Psicologia B, no 12.º ano (diurno). Aconteceu algo de semelhante em várias outras disciplinas.
Apesar de ter operado esta arbitrária e drástica redução nas horas a leccionar, Nuno Crato não teve o cuidado de alterar os programas ou, no mínimo, as orientações de gestão dos programas destas disciplinas, e, assim, as escolas vivem neste momento esta situação impensável: não havendo critério orientador, não existindo coordenação superior, cada escola inventa a adequação que vai fazer dos programas às novas cargas horárias: umas escolas vão cortar aqui e desvalorizar acolá, outras farão provavelmente o inverso, outras seguirão uma terceira via, outras uma quarta e por aí adiante. Isto que, por si mesmo, é do domínio da imbecilidade, mais estultícia revela quando verificamos que algumas destas disciplinas têm exame nacional. No caso concreto dos alunos de Filosofia do Ensino Recorrente, o que está a suceder é inimaginável, mesmo, presumo, no mais recôndito país africano: para além de não existirem quaisquer orientações quanto ao modo de adequar o programa à nova carga horária, ficando os alunos sujeitos à subjectividade de cada escola, estes discentes enfrentam ainda a circunstância de, no final do ano, concorrerem, a nível de exame nacional, com os colegas do ensino regular diurno, apesar de terem menos 25% de aulas nesta disciplina para cumprirem o mesmo programa.
Para além da evidente falta de competência para o cargo, Nuno Crato tem uma inadmissível falta de respeito pelas pessoas.

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

A desonestidade política como padrão de conduta

Ouve-se dizer com alguma frequência que uma das qualidades de Passos Coelho é a sua honestidade política, a sua franqueza, a sua capacidade de dizer a verdade aos portugueses. Sempre que oiço isto, da boca de políticos e de comentadores, fico perplexo. Se há coisa que eu acho é o oposto: Passos Coelho é um político desonesto. Aliás não vislumbro de onde lhe vem aquela boa fama.
Para não recuar muito no tempo, o primeiro episódio que, na história mais recente do líder do PSD, mostrou os pouco exigentes critérios éticos que utiliza consigo próprio na acção política foi o comportamento que teve com Santana Castilho. Depois de meses de pública sintonia com este professor, de trabalho conjunto com vista à elaboração do programa eleitoral do PSD sobre Educação,  depois de prefaciar, apresentar e tecer rasgados elogios ao livro O Ensino Passado a Limpo e ao seu autor, Passos Coelho verga-se à pressão dos lóbis internos do partido e renegando tudo o que tinha dito e feito, foge e desaparece, sem explicação, dessa relação de trabalho político.
A seguir a isto, e ainda antes de vencer as eleições, veio uma série indeterminada de desonestidades políticas que são conhecidas de todos: a promessa, feita a uma criança, de que nunca tiraria os subsídios de férias e de Natal a ninguém; a promessa de que nunca baixaria os salários a nenhum trabalhador, porque, em caso de necessidade, seria mais justo subir os impostos sobre o consumo; a promessa de que acabaria de imediato com a monstruosidade kafkiana, que era a (pseudo) avaliação do desempenho dos professores, da responsabilidade de Sócrates e Rodrigues; a promessa de que acabaria ou alteraria radicalmente a Iniciativa Novas Oportunidades (baluarte do oportunismo político de Sócrates); a promessa de que nunca subiria os impostos, sem acabar primeiro com as gorduras do Estado; a promessa de que nunca se desculparia com o passado para justificar a sua política, se viesse a ser governo; a promessa de que nunca se desculparia com o desconhecimento sobre o estado em que as finanças se encontrava; etc., etc.
Nenhuma destas promessas foi cumprida. Nem uma. Isto tem um nome: desonestidade política. Passos Coelho venceu as eleições porque assumiu compromissos políticos que a maioria eleitoral dos portugueses sufragou. Passos Coelho não deu cumprimento a esses compromissos. Passos Coelho venceu as eleições com um programa político que jurou cumprir. Não o cumpriu. Isto é desonestidade política. Desonestidade que mina o alicerce fundamental da democracia: a confiança entre eleitor e eleito. Passos Coelho deu um contributo decisivo para destruir esse alicerce.
Também é desonestidade política dizer, umas vezes, que não é a contragosto que cumpre o Memorando de Entendimento, acrescentando que quer mesmo ir mais longe do que aquilo que nele está determinado; e, outras vezes, dizer que não é da sua responsabilidade a política que está a ser seguida, que a responsabilidade é do governo anterior que assinou o Memorando de Entendimento. Esta cínica duplicidade é desonestidade política.
O rol de exemplos é enorme. Desgraçadamente para todos nós, Passos Coelho é politicamente desonesto e faz dessa desonestidade um padrão de conduta.

sábado, 22 de setembro de 2012

Momento quase filosófico

[Através de Chusang-Tsé, filósofo taoista, chega-nos este diálogo:]
Perguntaram um dia a um sábio chinês chamado Wang Yi:
— Conhece uma verdade que possa ser unanimemente admitida por todos os seres?
— Como poderia eu conhecer uma verdade assim? — perguntou por sua vez o sábio.
— Sabe ao menos que não a conhece?
— Como poderia saber? — contrapôs Wang Yi.
— Ou seja, os seres humanos não sabem nada?
— Como posso saber?
In Jean-Claude Carrière, Tertúlia de Mentirosos, Teorema. (Adaptado)

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Exames nacionais - apontamentos (15)

No artigo («Exames Nacionais e Sucesso Escolar no Ensino Básico e Secundário», de Desidério Murcho) a que me tenho vindo a referir nos dois últimos apontamentos, o autor parece encontrar na generalização dos exames nacionais (exames «a todas as disciplinas no final de cada ciclo de ensino básico [4.º, 6.º e 9.º anos] e, no ensino secundário, no ano terminal de todas as disciplinas» e com peso «determinante para a aprovação») a solução para todos ou quase todos os problemas do nosso sistema educativo. Desde o problema da falta de qualidade dos manuais escolares até à avaliação dos professores, quase tudo, a crer nas palavras de Murcho, teria resolução com a proliferação dos exames nacionais.
Desidério Murcho diz que a inexistência de exames nacionais generalizados tem, entre várias outras, as seguintes consequências negativas:
a) «liberta os professores e os estudantes do esforço de fazer melhor»;
b) «o professor médio não cumpre os programas nem se esforça por ensinar melhor»;
c) «o professor é o único árbitro em causa própria»;
d) «os estudantes adaptam-se a cada professor, sabendo que toda a avaliação é interna, e não se esforçam nem valorizam o estudo»;
e) gera «a completa desmoralização e desvalorização social da escola»;
f) conduz, em grande medida, «ao colapso do sistema educativo».
A seguir, o autor enumera os supostos benefícios que a generalização dos exames nacionais traria — entre vários, saliento dois:
a) «Os exames permitem aferir os resultados obtidos pelos estudantes ao longo do ano, em condições muito distintas, confrontando-os com uma prova com conteúdos, condicionalismos e critérios de avaliação nacionais»;
b) «Os exames não são necessários apenas para estimular estudantes e fomentar o profissionalismo dos professores. Constituem também um instrumento imprescindível na avaliação do próprio sistema.»
Portanto, e segundo Murcho, os exames nacionais generalizados combatem diversas enfermidades graves do sistema de ensino e introduzem nele vantagens evidentes.

Olhando-se agora com atenção para este diagnóstico, verifica-se, contudo, que nenhuma das consequências acima enumeradas, alegadamente decorrentes da inexistência de uma generalização dos exames nacionais, poderá constituir um problema específico e exclusivo dos ensinos básico e secundário. Isto é, se se considera que a inexistência de exames nacionais gera uma preguiça generalizada nos professores e nos alunos; se se considera que a inexistência de exames nacionais conduz a que os professores não se esforcem por ensinar melhor; se se considera que a inexistência de exames nacionais provoca uma desvalorização do estudo, por parte dos alunos, porque se adaptam ao professor e porque sabem que a avaliação é somente interna, ter-se-á de concluir também que a inexistência de exames nacionais no ensino superior é causa dos mesmos males. Não há nenhuma razão para se pensar que o mesmo fenómeno (a não existência de provas nacionais) não produza os mesmos efeitos, neste nível de ensino. Não só a teoria não nos fornece nenhum elemento credível que, neste caso específico, nos conduza ou aconselhe a isolar o ensino superior dos outros níveis de ensino, como a realidade se encarrega de nos revelar o contrário, ou seja, que os males acima apontados por Murcho ao sistema educativo não superior estão, sem a mínima dúvida, profusamente presentes no ensino universitário e no ensino politécnico — com particular acuidade, desde que se deu a multiplicação de instituições de ensino superior de natureza privada.
Os factos são inquestionáveis: todos aqueles que, como alunos, frequentaram o ensino superior são testemunhas da existência de (muitos) professores que não se esforçam minimamente para ensinar melhor, e são testemunhas de que é precisamente neste nível de ensino que mais apropriadamente se aplica a afirmação «o professor é o único árbitro em causa própria». Desidério Murcho é professor do ensino superior, assim como Nuno Crato e assim como, curiosamente, quase todos os mais acérrimos e mais radicais defensores dos exames nacionais nos ensinos básico e secundário, contudo, não se conhece de nenhum deles a defesa pública do alargamento de provas dessa natureza ao ensino universitário e politécnico — mas essa omissão não ocorrerá certamente por não encontrarem aí as alegadas consequências negativas provenientes da inexistência de exames nacionais, acima descritas. Na verdade, o ensino superior é pródigo em exemplos de péssimos professores, e, por isso, não se compreende a razão pela qual Murcho, Crato e outros não surgem a defender a ideia de que a introdução de exames nacionais no ensino superior ajudaria a combater a mediocridade docente, como defendem que acontecerá nos ensinos básico e secundário.
Uma outra interrogação se coloca mas agora quanto aos aludidos benefícios decorrentes da generalização de provas nacionais: esses presumíveis benefícios não se aplicam ao ensino superior? Porquê? Recordo-os:
a) «Os exames permitem aferir os resultados obtidos pelos estudantes ao longo do ano, em condições muito distintas, confrontando-os com uma prova com conteúdos, condicionalismos e critérios de avaliação nacionais»;
b) «Os exames não são necessários apenas para estimular estudantes e fomentar o profissionalismo dos professores. Constituem também um instrumento imprescindível na avaliação do próprio sistema.»
Se a realização de exames nacionais possui as virtudes descritas, a sua realização também não será  aconselhável para aferir os resultados obtidos pelos estudantes de diferentes universidades públicas? Ou para aferir os resultados obtidos pelos estudantes de universidades públicas e pelos estudantes das universidades privadas? E a sua realização não constituiria também um instrumento imprescindível para avaliar o próprio sistema de ensino universitário?

Na verdade, quem defende os exames nacionais, com os argumentos acima enunciados, tem de retirar daí todas as consequências que esses argumentos implicam.

(Continua)

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

O amor pela Lei

Na democracia, os políticos que se afirmam como sendo de direita, juntam a essa afirmação várias outras, entre as quais a afirmação do escrupuloso respeito pelo Estado de Direito. A submissão e o respeito pela Lei são recorrentemente apresentados como valores fundamentais e inquestionáveis, sendo utilizados muitas vezes como um exemplo que marca a diferença entre aqueles que zelam pelo cumprimento das regras (os de direita) e aqueles que são mais permissivos relativamente a esse mesmo cumprimento (os de esquerda).
Vem isto a propósito do modo como muitos políticos de direita (e comentadores e jornalistas) reagiram e continuam a reagir ao acórdão do Tribunal Constitucional sobre a supressão dos dois subsídios aos funcionários públicos. Na verdade, não se compreende que quem se afirma pública e garbosamente um cumpridor da Lei tenha tido e insista em continuar a ter comportamentos que configuram uma assinalável falta de respeito pela Lei e por quem tem o poder de julgar do seu cumprimento.
Não me refiro, naturalmente, à legítima manifestação da discordância ou ao direito à crítica relativamente às decisões judiciais. Refiro-me à forma como vários políticos de direita se dirigiram e continuam a dirigir ao órgão Tribunal Constitucional e à forma como vários políticos de direita trataram e continuam a tratar o conteúdo do acórdão acima referido. Não é próprio de quem reclama para si a posse da conduta modelar de respeito pelo Estado de Direito e pelas suas Instituições reagir com tão carregado acinte e com uma profusão de comentários que desprestigiam o órgão cuja elevada função é precisamente a de garantir o cumprimento da Constituição, ou seja, o cumprimento da Lei. Insinuar que os juízes do Tribunal Constitucional são um grupo de incompetentes, ou que são um grupo que julgou não em função do texto da Constituição, mas em função dos seus próprios interesses, não se coaduna com uma postura defensora da respeitabilidade e da honorabilidade. São acusações que, para além de não serem acompanhadas da respectiva prova, se enquadram justamente no tipo de discurso que é sempre condenado por quem agora o profere. 
Parece pois que o sagrado respeito pela Lei e pelas Instituições afinal é selectivo e que o critério de selecção não se fundamenta em elevados princípios e valores éticos, como seria de supor, mas somente, e como de costume, na defesa de interesses.

terça-feira, 18 de setembro de 2012

Nacos

Canto VII

35
O rio Ganges é a mais importante biblioteca
da cidade e o mais importante arquivo.
Não há verdade fora do rio, nem há mentira de qualidade,
ficção ou mitologia, exterior às suas águas sujas. Mas as
águas não são sujas, realmente tal expressão
é um erro — corrige Anish. São águas complexas,
o que é diferente.
Aqui a água não é um elemento de visita ao mundo dos homens,
são os homens que estão de visita
à água — e na Índia toda a gente o sabe.

36
A água insinua-se nas casas, nos dias e nas
mulheres. O que não é atraído pela água não é
importante. A água é sagrada. Depois
de mergulharem no rio as pessoas cantam
mais, há quem saia da água com uma voz
milagrosa e não há dançarina que na véspera
de actuar não vá copiar do rio certos movimentos.
É o único país onde a água embebeda mais que o vinho
e seduz tanto como as mulheres jovens.
Gonçalo M. Tavares, Uma Viagem à Índia, Caminho.

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

O «sui generis» consenso

O sui generis consenso de oposição à política governativa, que actualmente se vive na sociedade portuguesa, pode ter pelo menos dois efeitos perniciosos. 
Um desses efeitos é o de fazer parecer que não só estamos todos de acordo naquilo que rejeitamos mas também que estamos todos de acordo naquilo que queremos para o futuro. E na realidade não estamos sequer minimamente de acordo em relação ao caminho que queremos seguir. A ideia de que estamos unidos em torno de algo que se quer construir é falsa.
É falsa, por exemplo, a consonância entre a elite empresarial e os trabalhadores na rejeição da baixa da TSU, por via do corte nos salários. Há patrões que em público criticam a medida e que em privado se mostram satisfeitíssimos com ela.  Por outro lado, as críticas que agora ouvimos de ex-dirigentes do PSD e do CDS não têm por base nenhuma especial sensibilidade social nem revelam nenhuma recente conversão à defesa dos interesses do trabalho em detrimento dos interesses de quem possui o capital. Os que agora fazem ouvir a sua voz crítica são precisamente os mesmos que, quando exerceram funções governativas, agiram de forma idêntica, só que adaptada à conjuntura que na altura se vivia. O seu princípio de acção é genericamente o mesmo, o contexto é que é outro.
Um segundo efeito pernicioso deste sui generis consenso é o de ajudar a esquecer o passado recente. Quem agora ouve falar alguns dirigentes e deputados do PS — que há pouco mais de um ano bramiam, em Matosinhos, slogans e juras de apoio a Sócrates e que durante seis anos foram coniventes, cúmplices e executores das suas desgraçadas políticas — interroga-se como é possível vê-los, neste momento, no papel de impolutos juízes e de consciências do regime. Quem diz dirigentes do PS diz comentadores, jornalistas, economistas que durante anos fizeram militantemente rasgados elogios a Sócrates e aos seus governos. A não assunção da mea culpa retira-lhes autoridade crítica e credibilidade política.

A rotatividade das elites que têm governado Portugal tem de ser quebrada. Enquanto isso não acontecer, enquanto forem sempre as mesmas elites a deter o poder, nada de verdadeiramente significativo acontecerá na vida concreta de cada um. E o falso e sui generis consenso que estamos a viver tende a esconder ou a fazer esquecer que assim é.

domingo, 16 de setembro de 2012

Meio milhão

Em Lisboa, o desfile seguiu compacto ente a Praça José Fontana e a Praça de Espanha. Iniciou-se um pouco antes das 17h e os últimos manifestantes só chegaram ao já repleto ponto de encontro por volta das 19,30h, quando as intervenções dos organizadores estavam a terminar. Exceptuando 1974, não me recordo de ter participado numa iniciativa de protesto que tivesse mobilizado tantas pessoas. Foram várias centenas de milhares: 300 mil, 400 mil, 500 mil? Uma destas hipóteses é seguramente correcta, mas o que verdadeiramente interessa é que foram muitíssimos aqueles que vieram à rua dizer a este governo: BASTA!
Foi assim em Lisboa e foi assim em todo o país. Portugal reagiu, os portugueses saíram à rua e certamente sentiram que, em breve, a ela vão ter de regressar.

A caminho da Praça de Espanha (para ampliar, clicar nas imagens):





Na repleta Praça de Espanha:


sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Exames nacionais - apontamentos (14)

Um outro argumento a favor da generalização dos exames a todas as disciplinas, no final de cada ciclo de ensino, e com peso determinante na aprovação do aluno é o seguinte: «Os exames são fundamentais para estimular a excelência no ensino». (Desidério Murcho, «Exames Nacionais e Sucesso Escolar no Ensino Básico e Secundário», Blogue Crítica). 

Antes de dar a minha opinião sobre o conteúdo deste argumento, não prescindo de fazer um comentário que, apesar de ser totalmente lateral ao argumento de Murcho, me parece pertinente, dado o contexto em que vivemos e que temos vivido, nos últimos anos. 
Nos dias de hoje, falar de «excelência» remete-nos para uma carga de trabalhos. Desde há meia dúzia de anos — e de um modo um pouco misterioso — o termo excelência ganhou, em Portugal, inusitados adeptos e uma popularidade inesperada, em particular no domínio da Educação. De repente, isto é, a partir de Sócrates e de Rodrigues, toda a gente começou a utilizar e a manipular conceptualmente o termo excelência com uma facilidade que me deixou e continua a deixar impressionado: são as «Escolas de excelência», são as «Escolas a caminho da excelência», são os «Professores de excelência», é o «Ensino de excelência», são as «Instalações de excelência». E do substantivo para o adjectivo: «A minha escola é excelente porque obteve três excelentes na avaliação externa»; «O Manel é excelente porque teve excelente na avaliação do desempenho», etc. Por isto, não admira que há algum tempo tenha ouvido uma conversa entre duas professoras, que se desenvolvia mais ou menos assim: «Eu sou mais excelente do que a X, porque o meu excelente na avaliação do desempenho foi mais alto do que o excelente dela.» Quando o conceito de «excelência» se vê suplantado por um outro conceito de «excelência» que incorpora «excelências superiores» e «excelência inferiores», a situação fica difícil de ser trabalhada conceptualmente. Ou seja, em Portugal, nesta conjuntura de confusão generalizada acerca do conceito «excelência», onde se faz a caça descarada ao adjectivo e se vulgariza o substantivo, torna-se difícil saber do que é que estamos a falar quando falamos de excelência. Desgraçadamente, é esta a realidade em que estamos: somos medíocres em quase tudo, mas enchemos os discursos de «excelências». 

Mas vou deixar de parte a conjuntura e vou tentar dar a minha opinião sobre o argumento de Desidério Murcho. Volto a enunciá-lo: «Os exames são fundamentais para estimular a excelência no ensino». O autor acrescenta ainda que a excelência do ensino estimula «o sucesso escolar». Mas vamos por partes, e porque o sucesso escolar aparece aqui como consequência da «excelência no ensino», comecemos pela «excelência no ensino». 
Independentemente das tolices da conjuntura que acima referi, Murcho deveria ter esclarecido e aprofundado o que entende por «excelência no ensino». Não o tendo feito, ficamos um pouco enredados numa dimensão conceptualmente obscura. Na verdade, a expressão «excelência no ensino» pode ter, como Murcho sabe, diferentes acepções — excelência no ensino pode querer significar um ensino «centrado nos conhecimentos», ou significar um ensino «centrado nas competências»; ou significar um ensino «centrado na formação integral do aluno», ou significar um ensino centrado na «formação para a cidadania», ou um ensino «centrado na preparação para os exames», ou um ensino «descentrado dos conteúdos e centrado no aluno», ou um ensino «centrado na liberdade do aluno», ou outra coisa qualquer (utilizei expressões vulgarizadas pelas modas pedagógicas e que são conhecidas de todos, ainda que, em alguns casos, nem sempre se saiba qual é o seu verdadeiro significado...). 
É incompreensível pois que Desidério Murcho no seu desenvolvido texto não tenha dedicado umas linhas a este esclarecimento. Em nome do rigor e da clareza que diz prezar (e bem) deveria ter começado por aqui. Ficamos, deste modo, sem poder saber por que razão os exames são fundamentais para a «excelência no ensino», já que não nos é dada a possibilidade de vislumbrar o que é a «excelência no ensino» e que relação de causa-efeito aqui existe. 
A argumentação a favor da generalização dos exames e da sua importância vive muito deste tipo de «evidências», que espontaneamente se tendem a aceitar, porque são apelativas, mas que esmiuçadas pouco ou nada revelam. 
Não quero, aliás, cometer a injustiça de pensar que, para Desidério Murcho, um «ensino de excelência» é aquele que está centrado na preparação dos alunos para os exames (atendendo aos rasgados elogios que ele faz a este tipo de provas). Se este fosse o entendimento de Murcho, o argumento que utiliza a favor dos exames seria estranho, pois seria o mesmo que dizer que os exames são fundamentais para estimular a preparação para os exames, o que quereria dizer que os exames se justificariam a si mesmos...
Mas seja o que for que se entenda por «excelência do ensino», tenho dificuldade em imaginar como é que provas tão limitadas nas suas capacidades avaliativas (v. os posts anteriores) podem contribuir para tal «excelência».

(Continua)

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Perplexo e interrogativo

O repúdio unânime de que as novas medidas de austeridade anunciadas pelo governo têm sido objecto deixa-me um pouco perplexo. Não é o repúdio que me deixa perplexo, é a unanimidade. Vejo hoje muita gente, muita gente mesmo, indignada com estas medidas e com o governo, quando há um ano as via elogiosas e satisfeitas com as medidas de austeridade impostas aos funcionários públicos, reformados e pensionistas. Elogiavam as medidas, elogiavam o governo, elogiavam Passos Coelho, elogiavam Vítor Gaspar. Nessa altura, ouvimos e lemos que era preciso ter consciência de que vivíamos acima das nossas possibilidades, que era preciso ter espírito de sacrifício, que era uma inevitabilidade, que tínhamos de aprender a viver de modo mais modesto, etc. Ouvimos isto e lemos isto da boca e da pena de muitas, muitas figuras públicas: banqueiros, gestores, jornalistas, economistas, comentadores... 
Agora, Setembro de 2012, estes mesmos banqueiros, gestores, jornalistas, economistas, comentadores mudaram de opinião. O coro de protestos desta elite social é tão vigoroso e insistente que ninguém fica com dúvidas sobre a sua indignação. Parece pois que deixou de ser claro que vivíamos acima das nossas possibilidades, ou que tenha de existir espírito de sacrifício, ou que a austeridade seja uma inevitabilidade. Sejam bem-vindos ao clube, banqueiros, gestores, jornalistas, economistas e comentadores do meu país! Mas, ao mesmo tempo que lhes dou as boas-vindas, tenho também de manifestar a minha perplexidade com esta repentina mudança. Não posso deixar de ficar perplexo. Perplexo e interrogativo. E pergunto-me: esta mudança de opinião terá alguma coisa que ver com a circunstância de lhes ter sido dito que a austeridade que foi (e continua a ser) imposta aos funcionários públicos também lhes vai ser aplicada, ainda que seja apenas pela metade? Trata-se de uma inocente coincidência temporal ou é o desmascarar de um colossal cinismo?

Para clicar


terça-feira, 11 de setembro de 2012

Poemas

ESPERANÇA

Espremo o sol num poema, e bebo o sumo.
Pode muito esta humana fantasia!
Navegava a direito, no meu rumo,
Quando nisto,
A monção
Desvia-me das velas a ilusão
E atola-me num mar de calmaria!

Mas resisto,
Embebedo-me assim na solidão,
E aguardo que renasça a ventania...

Miguel Torga

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Politicamente ordinário

Tive a sorte de não poder assistir em directo à comunicação que Passos Coelho fez ao país, na passada sexta-feira. Fui assim poupado à observação, em tempo real, de um comportamento politicamente ordinário.
Acabei de ler o texto. Os primeiros onze parágrafos do discurso proferido são uma mescla do pior que se imagina que um político sem respeito pelos outros nem por si próprio pode fazer: afirmações enganosas, afirmações falsas e afirmações velhacas, como aquela que inicia o segundo parágrafo: «Quero falar-vos com a mesma franqueza com que sempre vos falei.» Ouvir ou ler isto incomoda certamente até o mais pacato cidadão — que certamente se interroga como é que alguém que praticamente desde há ano e meio não faz outra coisa senão mentir aos portugueses consegue ter o despudor de pronunciar a palavra «franqueza» em proveito próprio.
A reiterada falta de honestidade política de Coelho tem uma consequência grave: torna irrelevante, para quem o ouve ou lê, a argumentação que ele utiliza para (supostamente) fundamentar a sua política. Sabendo-se como se sabe que estamos perante alguém que mente de forma sistemática e que faz do engano o seu principal instrumento político, aquilo que ele diz deixa obviamente de merecer atenção séria ou respeitosa. É por isso que os restantes nove parágrafos, que anunciam o aprofundamento do latrocínio governamental, são de leitura inútil para quem tenha a expectativa de encontrar alguma lisura no comportamento do nosso primeiro-ministro.
Na realidade, o patamar de degradação política e ética a que chegou a actual governação já não solicita como resposta a dialéctica argumentativa — esta pressupõe seriedade intelectual de ambas as partes, condição que manifestamente já não existe. É necessário começar a criar condições para o derrube do governo.

sexta-feira, 7 de setembro de 2012

Exames nacionais - apontamentos (13)

Um quarto argumento a favor da proliferação dos exames nacionais apresentado por Nuno Crato, no livro O 'Eduquês' em Discurso Directo (2006), é um argumento muito utilizado e que consiste no seguinte: «[...] Os exames podem ser bem feitos ou mal feitos. Podem privilegiar a memorização ou podem privilegiar o raciocínio. Podem dirigir-se à solução mecânica de exercícios ou podem dirigir-se à aplicação criativa de técnicas e conceitos.» (p.49). Conclui-se daqui que o problema não está nos exames, o problema está apenas em saber ou não saber fazer exames bem elaborados.
Desidério Murcho desenvolveu, no blogue Crítica, na mesma altura da publicação do livro de Crato, a mesma argumentação: «Como é evidente, é possível fazer exames bons e exames maus. Pode-se fazer exames para o "decoranço" [...] ou para a compreensão crítica e a expressão de competências fundamentais [...]», para chegar à mesma conclusão: o problema não está nos exames, o problema está apenas em saber ou não saber fazer exames bem elaborados.
O argumento é pois o mesmo e é repetido até à exaustão como tentativa de resposta à crítica que denuncia as múltiplas deficiências e limitações deste tipo de provas. Vale a pena agora observar duas particularidades do raciocínio exposto. 

i) Sendo utilizado para defender a proliferação dos exames, este argumento constitui, na verdade, a admissão das fragilidades destas provas. Não seria necessário insistir sistematicamente neste ponto se ele não fosse relevante. E ele é relevante porque é reconhecido de forma unânime (pelos que criticam e pelos que defendem a proliferação dos exames nacionais) que há exames que são «mal feitos». O problema que se coloca é que os exames «mal feitos» não são ocasionais, o problema é que há sempre, anos após ano, exames «mal feitos». Ora, este facto que nos revela a existência de uma constante (provas «mal feitas» todos os anos) deveria ser razão suficiente para os defensores dos exames a qualquer preço ponderarem a possibilidade de a causa dos «erros» sistemáticos ocorridos na elaboração dos exames ser a própria natureza da prova e não, alegadamente, fortuitas falhas dos seus autores, por distracção ou incompetência. Como sabemos, a realidade não tem a vocação de se adaptar aos nossos desejos — o que neste caso significa dizer que as contradições conceptuais de que um exame nacional enferma nunca poderão fazer dele uma prova que avalie mais do que mediocremente,  por mais que se deseje o contrário.

ii) De modo paradoxal com o que os factos revelam, Crato, Murcho e todos os que utilizam este argumento parecem querer sugerir-nos que a elaboração de exames «bem feitos» é algo do domínio do óbvio e que se resume a saber fazer provas para a «compreensão crítica», para a «expressão de competências fundamentais» e que «privilegiem o raciocínio» e a «aplicação criativa de técnicas e conceitos». Ora, isto que nos é apresentado como sendo do domínio do óbvio é desmentido sistematicamente pelos factos, se tivermos presente a lista infindável de erros e de provas «mal feitas». A perplexidade aumenta e o problema ainda se torna maior quando nos é revelado como se faz uma prova e nos são dados exemplos concretos do que é um item mal formulado e do que é um item bem formulado (as «perguntas/questões» das provas de avaliação passaram, na linguagem modernaça, a ser designadas de «itens»...). No texto acima referido, Desidério Murcho procede à elucidação: por exemplo, na Filosofia, um item feito para o «"decoranço"» será «Defina argumento dedutivamente válido»; e um item feito supostamente para a «compreensão crítica e a expressão de competências fundamentais» será «Poderá um argumento dedutivamente válido ter uma conclusão falsa? Porquê?»
Nestas como em outras situações, é quando se desce ao concreto que a verdade vem ao de cima. De facto, no exemplo que é dado, a segunda formulação da pergunta pode ser considerada precisamente da mesma natureza da primeira formulação, isto é, uma pergunta feita para o «decoranço». Se um professor explica na aula (e deve-o fazer) por que razão um argumento dedutivamente válido pode ter uma conclusão falsa, e o aluno «decora» essa explicação, ele responderá «sim» no exame e, de seguida, «despejará» o que decorou da explicação do professor (ou do manual). E, de repente, aquilo que, pelas palavras de Murcho, parecia óbvio deixa de o ser: aquilo que parecia ser obviamente um item «bem feito» passa a ser um «item mal feito», seguindo o critério do mesmo Murcho. (Não é o caso, mas, em várias situações, o exercício do «decoranço» não está apenas dependente da forma como um item/pergunta é elaborado/a, está igualmente dependente da forma como um conteúdo foi ensinado-aprendido.)

O mito dos exames «bem feitos», não passa disso mesmo — de um mito. É claro que há provas de avaliação mais bem feitas do que outras, mas as provas com a natureza de um exame nacional ou são assumidamente provas muito limitadas no seu horizonte avaliativo, para poderem ter alguma fiabilidade/fidelidade, ou são provas (ilusoriamente) de amplos objectivos avaliativos e de muito reduzida fiabilidade/fidelidade.
O argumento dos exames «bem feitos», como instrumento de defesa da generalização dos exames a todos os ciclos de ensino e a todas as disciplinas e com peso determinante na aprovação do aluno, é um mito. Um mito perigoso.

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Nuno Crato e as Novas Oportunidades

Há pouco mais de um ano, Nuno Crato criticava a Iniciativa Novas Oportunidades (INO) — ainda que o fizesse de modo insuficientemente fundamentado, era uma crítica a algo que manifestamente devia ser criticado: da concepção à concretização, a INO foi uma colossal soma de erros técnicos e de oportunismos políticos.
Pouco tempo depois de tomar posse como ministro da Educação e Ciência, em Junho de 2011, Crato mandou, atabalhoadamente, suspender a abertura de novas turmas dos cursos EFA da INO. Cerca de três meses decorridos, sem saber bem o que fazia nem o que fazer, suspendeu a suspensão e autorizou a abertura de novas turmas daqueles cursos. Incompreensivelmente, aconteceu que, durante algumas semanas, houve professores que queriam leccionar e não tinham alunos, e houve alunos, já matriculados, que queriam frequentar as aulas, mas não podiam porque o ministério não deixava. Neste espaço de tempo, a desorientação foi completa, toda a gente andou a perder tempo, e o país, salvo in extremis da bancarrota, dava-se ao luxo de esbanjar dinheiro.
Erros de principiante? Não, não são erros de principiante. São erros de quem critica sem previamente realizar um estudo sério e rigoroso que sustente a crítica e que o capacite a saber o que fazer no caso de assumir responsabilidades políticas. Nesta matéria, como em quase todas, Crato não estava preparado para ser ministro da Educação.
Volvido um ano, podemos dizer, aliviados, que Nuno Crato já se preparou minimamente, já sabe o que anda a fazer e para onde quer ir? Por exemplo, no caso concreto da INO, passados catorze meses, já há uma alternativa projectada e devidamente sustentada? Não há. Ou melhor, há um colossal vazio.
Há um colossal vazio e há uma tremenda confusão com os Centros Novas Oportunidades cujo encerramento foi primeiramente anunciado, segundamente prorrogado o seu funcionamento até Dezembro deste ano e terceiramente encerrados uns e mantidos abertos outros até clarificação anunciada para daqui a uns meses.
Há um colossal vazio e há uma (pseudo) avaliação da INO, mandada realizar por Nuno Crato. Em lugar de ordenar uma avaliação à qualidade da formação ministrada e à qualidade da formação recebida, Crato pediu que fosse feita uma avaliação ao grau de empregabilidade que os cursos da INO proporcionavam.  Mais uma vez perdeu-se tempo e dinheiro para ficarmos a saber o que já sabíamos antes da avaliação ser feita.
Finalmente, há um colossal vazio e há a manutenção de parte daquilo que se criticava de forma feroz: os cursos EFA de dupla certificação, por sinal, os culturalmente mais pobres. Misteriosamente, porque nada foi alterado, desapareceram as críticas ao facilitismo, à distribuição de diplomas de ignorância, à certificação da incompetência e outros conhecidos epítetos dirigidos à INO. 
No final do ano lectivo 2012-2013, contar-se-ão dois anos de governação do PSD/CDS — e, em particular, de Nuno Crato — em que foi dada alegre continuidade a algo — INO — que era apresentado como monstruoso.
Como já escrevi neste blogue, a INO é, na minha opinião, um erro técnico grave e uma intolerável obscenidade política — mantê-la será, por isso, incompreensível e inaceitável. Mas mais incompreensível e inaceitável é o facto de que a manutenção desta situação seja da responsabilidade precisamente de quem do modo mais grosseiro e acutilante se pronunciou contra este modelo de formação de adultos.

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Regressar

Uma conhecida afirmação de Nelson Mandela diz que: «não há nada como regressar a um lugar que está igual para descobrir o quanto a gente mudou.»
Provavelmente a sedução desta frase estará no contraditório jogo psicológico e estético das imagens que as palavras sugerem e simultaneamente na fidelidade do seu conteúdo. Na realidade, no decurso da vida, muitas pessoas já passaram, certamente que várias vezes, pela experiência que Mandela refere. Mas o líder sul-africano esqueceu-se dos portugueses e de Portugal. A verdade é que nós, enquanto portugueses, temos razões para contrariar a observação do líder sul-africano. De facto, regressar hoje a Portugal, depois de uns dias de férias, é regressar a um lugar que, para nossa infelicidade, está exactamente igual àquele que deixámos, todavia, o regresso a este lugar, que está igual, não nos faz descobrir, ao invés do que diz Mandela, que mudámos. Pelo contrário, descobrimos que, apesar do sítio (o país) estar igual, não temos outro remédio que não seja mantermos e reforçarmos a contestação ao que desgraçadamente se mantém igual. A afirmação de Mandela é bonita, mas não se aplica aos portugueses e a Portugal.

Regressar à nossa realidade é penoso. Dói ler as notícias, saber o que se passou e está a passar, constatar que os piores cenários de desemprego, de precariedade e de miserabilização se concretizam, confirmar que as nossa elites políticas e empresariais continuam a afundar o país e que nada de positivo se desenha no horizonte.
É muito mau sinal que o primeiro sentimento de quem regressa seja o de querer voltar a partir.