Mais uma vez temos um problema com a falta de precisão, de adequação e de substância dos enunciados.
Vejamos: o que significa uma planificação realizada com
«rigor»? A que rigor se está a fazer referência? A rigor científico? A rigor pedagógico? A rigor didáctico? Aos três?
O problema é que o termo «rigor» não é apropriado para se aplicar aos três domínios. É, com certeza, apropriado se aplicado ao domínio científico, mas já não é apropriado se aplicado ao domínio pedagógico ou a domínio didáctico.
Reportando-nos o domínio científico para um corpo de saber instituído e escrutinado — ainda que sempre com carácter provisório —, poder-se-á aferir se as referências ou as práticas relativas a esse corpo de saber são rigorosas ou não (mesmo que, em alguns saberes, existam limitações à fiabilidade dessa aferição). Podemos dizer que, no domínio científico, existe um
padrão a partir do qual será possível aferir do rigor das práticas ou das referências que lhe são feitas. Mas o mesmo não acontece a nível pedagógico nem a nível didáctico. Não só não existe o
padrão como a própria natureza deste dois domínios não permite que esse
padrão exista. Deste modo, parece-me desadequada a utilização do termo «rigor», no contexto em que está a ser utilizado, já que supõe uma superlativa exigência que a realidade do objecto em causa (uma planificação) não suporta. Significa isto que estamos no reino do vale tudo? Claro que não, como mais à frente iremos ver. Mas o que não pode acontecer é criarem-se descritores que são objectivamente inadequados para o objecto da sua avaliação e que artificialmente constroem cenários excêntricos.
Prossigo na análise, para fundamentar o que acabei de afirmar.
Uma planificação é simplesmente um plano de trabalho. Não é um tratado, não é uma dissertação, nem sequer um ensaio. Uma planificação é um documento que, na parte científica, depende, em muito, do programa disciplinar, e ao professor pode caber somente (se couber) a iniciativa de pequenas adaptações e/ou pequenos ajustes que, obviamente, têm de ser feitos com correcção científica, mas não mais do que isto. E isto, repito, se houver lugar, a essas pequenas adjacências. Aquilo que é verdadeiramente importante numa planificação é que cumpra o fim a que se destina: orientar de
forma adequada o processo de ensino-aprendizagem (a longo, médio ou curto prazo).
De forma adequada a quê? De forma adequada às características de quem vai aprender — sem adulterar a correcção científica do que está a ser ensinado ou as «competências» (termo idolatrado pela moda pedagógica, em vigor, inspirada em arquétipos empresariais) que se pretende desenvolver ou criar. Considero, por isso, que aquilo que é verdadeiramente importante numa planificação é, para além da óbvia correcção científica, a sua
adequação, no sentido que acabei de referir.
Não se trata pois de
«rigor», como o descritor enuncia. E melhor verificaremos ser inusitada a utilização do termo «rigor», se tivermos presente que as planificações de médio e de longo prazo são feitas conjuntamente pelos pares e aprovadas por todo o grupo disciplinar. Isto significa, em termos práticos, que o professor avaliador é
co-responsável pela planificação, porque é seu
co-autor e/ou porque a
aprovou. Nestas circunstâncias, que vai o professor avaliador avaliar?
Resta-nos a planificação de curto prazo (semanal ou diária/plano de aula), que é pensada/elaborada para uma turma específica. Neste âmbito, estamos a falar da elaboração de uma planificação que é especificamente pensada pelo professor para os «seus» alunos (ou, até, uma planificação individualizada, se for possível e necessária), para aqueles alunos que ele vai conhecendo cada vez melhor, cujas características e necessidades ele, melhor do que ninguém, sabe quais são, porque é ele que, diariamente, ou quase diariamente, convive e trabalha com eles. Ora, nestas planificações de curto prazo (formalmente subsidiárias das de médio e longo prazo) o que é que está realmente em questão? O que é verdadeiramente importante na planificação de curto prazo é a sua
adequação aos alunos específicos da turma X, Y ou Z. A adequação é o elemento decisivo, é o elemento diferenciador de uma boa ou menos boa planificação.
Deste modo, o que, em termos de avaliação do desempenho, poderia ser significativo avaliar seria se o professor, quando faz a sua planificação de aula, está a fazê-la para os
seus alunos (de modo a que essa planificação possa ser o mais
adequada possível a esses alunos), ou se, não pensando neles, elabora uma planificação para uma turma abstracta, sem características nem identidade própria, reduzindo, assim, as possibilidades de ser uma planificação adequada.
O descritor deveria, pois, falar de adequação e não de «rigor», como fala. É uma questão de
lana caprina? Seria, se se tratasse de um equivoco terminológico. Mas, desgraçadamente, não é um equívoco. Não é um equívoco, porque os autores deste modelo de avaliação acham mesmo que é assim: para eles, um professor «Excelente» e um professor «Muito Bom» planificam com
«rigor» e um professor simplesmente «Bom» planifica apenas de
«forma adequada» (cf. os descritores dos respectivos níveis, nesta dimensão).
É mais um grave dislate, a juntar a todos os outros que já vimos em anteriores
posts.
Finalmente, uma derradeira observação, porque a realidade não se molda a desejos e, menos ainda, a desvarios, de quem quer que seja. Mesmo que o descritor estivesse apenas formulado na base da «adequação» teríamos de ter presente o seguinte:
— verdadeiramente, a
adequação de uma planificação só é susceptível de ser avaliada
a posteriori. Só depois de aplicada é que o professor saberá se a planificação foi adequada, e, muitas vezes, não o consegue saber imediatamente após aplicação, e, outras vezes, nunca o virá a saber, com a certeza que gostaria de saber. Isto levanta um problema acrescido, que não podemos fazer de conta que não existe, só porque nos dá jeito, para continuarmos a fazer de conta que avaliamos. O problema é este: aquilo que poderia ser objecto de uma avaliação
a priori (que é disto que se trata no presente descritor, porque são outros os descritores que abordam a
prática) seria apenas o carácter
presumivelmente adequado da mesma, tendo em atenção as características conhecidas da turma. Ou seja, o que aqui poderia ser susceptível de avaliação seria a fundamentação que o professor apresenta para optar por determinada planificação, e não por outra, em função do conhecimento dos seus alunos. Ora, como o professor avaliador não conhece a turma (não conhece rigorosamente nada, nos casos em que não observa aulas; e pouco mais que nada conhece, nos casos em que observa duas aulas, conforme está previsto) não está em condições de avaliar se, em termos de planificação, o professor fundamenta com verdade, ou não, as suas opções.
Como este descritor dá «água pela barba», como o texto já vai longo, como já é quase noite de sexta-feira, e como, felizmente, existe mais (muito mais) vida para além da avaliação, vou ficar por aqui, e regressarei a ele (descritor) e a ela (avaliação) na próxima semana.
Ligações aos
posts anteriores relativos a este assunto:
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Acerca da simplicidade de um modelo de avaliação e da seriedade da sua concretização
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