sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

Apontamentos sobre o desnorte de uma avaliação - 6

Apresentados alguns apontamentos sobre a primeira dimensão da avaliação do desempenho, passo agora à segunda dimensão: «Desenvolvimento do ensino e da aprendizagem». Esta dimensão é composta por 4 domínios, 14 indicadores e 33 descritores divididos em 5 níveis.
1. O documento começa por enunciar e distinguir, com clareza, quatro domínios — Preparação e organização das actividades lectivas; Realização das actividades lectivas; Relação pedagógica com os alunos; Processo de avaliação das aprendizagens dos alunos —, contudo, logo a seguir, quando se passa à leitura dos indicadores e dos descritores, verifica-se a existência de sobreposições, de misturas, entre domínios. Esta sobreposição não pode ser justificável com a complexidade dos desempenhos avaliados. Neste caso, facilmente se distingue entre «preparar/organizar actividades lectivas» e «realizar actividades lectivas», mas, apesar desta óbvia diferenciação, alguns descritores juntam inexplicavelmente estes dois domínios. O que, para além de ser contraditório num modelo que aposta, e se delicia, na analítica comportamental, é grave, no contexto da mecânica avaliativa desta dimensão, pois dois dos quatro domínios (o segundo e o terceiro) só são sujeitos a avaliação nos casos dos professores terem aulas observadas. Ora, se se apresentam descritores que sobrepõem o primeiro e o segundo domínio, significa que se estão a arranjar, para o processo avaliativo, mais problemas, mais indefinições, mais situações dúbias, a juntar a todas as outras que já vimos existirem na primeira dimensão.
2. Dos catorze indicadores, dois deles («Promoção do desenvolvimento cognitivo e da criatividade dos alunos e incorporação dos seus contributos» e «Comunicação com rigor e sentido do interlocutor») não têm correspondência com nenhum dos descritores. Mas era obrigatório que tivessem. Se os níveis e os descritores têm «por objectivo a descrição pormenorizada do desempenho docente por forma a clarificar o que deve ser avaliado», não se compreende que se deixem dois indicadores abandonados à sua sorte, sem «descrição pormenorizada do desempenho» correspondente. Ou aqueles indicadores não eram enunciados, ou, se se enunciam, devem ter descritor, como acontece (melhor ou pior) com os restantes doze indicadores.
3. Julgo que compreendo a dificuldade dos autores deste modelo de avaliação em conseguirem arranjar descritores para toda a panóplia de indicadores que eles próprios criaram. Uma das dificuldades reside, certamente, no facto de o conteúdo de alguns indicadores ser indecifrável, inexpugnável, como é o caso de um dos dois que na nota anterior referi: «Comunicação com rigor e sentido do interlocutor». O que é que isto efectivamente quer dizer: comunicação com rigor e sentido do...?! A hipótese de gralha não se põe, pois esta parte do texto manteve-se inalterada, desde a versão inicial à versão final (ao contrário de outras partes do texto). Resta-nos pensar que o enunciado deve querer dizer algo, que a nossa fraca perspicácia não alcança. 
Assim, torna-se compreensível que não tenham conseguido formular um descritor para este indicador. Também, quem é que o teria conseguido? Para além do lado burlesco, isto revela, uma vez mais, a ligeireza que esteve presente na elaboração de várias secções deste documento.
4. Mas, se neste modelo avaliativo se encontram indicadores indecifráveis e indicadores sem descritores, o que não se esperava de todo encontrar era um descritor sem ligação específica a nenhum indicador. Isto é, há um descritor que veio não se sabe de onde e está lá não se sabe a fazer o quê, porque não se relaciona com nenhum dos catorze indicadores. Refiro-me ao último descritor do nível «Excelente»: «Constitui uma referência para o desempenho dos colegas com quem trabalha». Para além do problema de se saber como se avalia, de modo fiável, se fulano ou sicrano é uma referência, pergunta-se, neste caso: constitui uma referência em quê? Na primeira dimensão, também se enuncia, para o nível «Excelente», que o professor deve ser uma figura de referência, mas aí, pelo menos, houve a preocupação mínima de dizer em quê: diz que deve ser referência no trabalho colaborativo, no apoio aos colegas e no desenvolvimento de projectos. Todavia, nesta segunda dimensão, remata-se o assunto, como se houvesse pressa em terminar o documento, com um generalíssimo e vaguíssimo: «constitui uma referência». Mas constitui uma «referência» por atacado? Ou seja, o professor deve ser, genericamente, uma «referência» nos catorze indicadores? Acaso poder-se-á sustentar que um descritor abranja por atacado catorze indicadores, e que isto configure uma avaliação minimamente séria, fiável, credível?  O descritor não tem de descrever em que consiste ser «referência»? Não tem de fazer (como enuncia o texto do despacho): «a descrição pormenorizada do desempenho docente por forma a clarificar o que deve ser avaliado»? É claro que teria de o fazer, mas, mais uma vez, não o faz.
Para a semana, continuaremos a analisar a segunda dimensão.