sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Pausa

Durante uns dias, este blogue vai fazer uma pausa — os seus leitores merecem que lhes seja dado algum descanso…

Independentemente das motivações religiosas ou laicas com que cada um vive esta época, desejo, aos generosos leitores deste bloque, que, apesar da grave crise que vivemos, seja possível encontrar forma de fruir sabores, odores, afectos, aconchegos… que, nesta altura do ano, parecem estar mais à mão. Desejo sinceramente que a todos seja possível aproveitá-los.

Recebam o meu abraço e uma sugestão musical:



Até 2 de Janeiro.

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Quinta da música - Tchaikovsky

Trechos - Hervé Juvin

«Estamos próximos do momento em que cada um vai medir que as condições do exercício dos direitos do homem, da não-discriminação, da igualdade de homem-mulher são extraordinariamente exigentes, e muito raramente reunidas, ao preço de um esforço colectivo, de um capital estrutural e de uma moral colectiva e individual sustentada pelas instituições, consideráveis. E estamos próximos de poder descobrir que são reversíveis, mesmo quando as temos por adquiridas, exposto à descivilização que implica toda a sociedade que não sabe o que deve. O retorno da escravidão, o retorno da violência nas relações sociais e humanas, o retorno de expressões brutas do poder ligado à riqueza ou à força, vão levar ao regresso aos direitos afirmados sem qualquer consideração por tudo o que lhes deu origem. O tempo da violência sem projecto, das guerras sem exércitos e dos conflitos sem limites, porque sem fronteiras, chegou. As tensões que se desenvolvem opõem grupos que não sabem geri-las, porque consideraram, desde há muito tempo, que já não havia motivos legítimos para o conflito ou para a guerra, porque foram formados para considerar toda a violência ilegítima, porque toda a experiência humana foi reduzida ao racional, à organização, ao divertimento. Se a cultura-mundo é bem o lugar do vazio sonhado pelo liberalismo, o lugar de onde todo o julgamento, toda a afirmação, toda a singularidade são excluídos, ela é o lugar que torna tudo possível — e que tornará o efectivo pior.»
Hervé Juvin
Gilles Lipovetsky, Hervé Juvin, O Ocidente Mundializado, Edições 70.

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Às quartas

A VOZ DA ÁGUA

Tão delicada
É a voz
Da água
E os seus cálices
Que não contêm nada


Eu direi
Que é a luz da luz
A nudez do silêncio
Ouves?
O centro é branco
O ar é ar


Ouves?
Ninguém canta
As veias da montanha são claras
O vaso na limpidez desaparece.


António Ramos Rosa

Uma revisão inédita (2)

1. Como referi no texto da semana passada, este processo de revisão curricular começou com uma sequência inédita: iniciou-se com a distribuição das horas por cada disciplina e há-de continuar, segundo foi anunciado, com a definição das metas de aprendizagem disciplinares e com a elaboração de novos programas. É uma sequência sui generis de proceder a uma revisão curricular: sabe-se que determinada disciplina vai ter, por semana, x horas de leccionação, mas não se sabe qual o fundamento pedagógica pela qual vai ter essas x horas de leccionação, nem se sabe qual foi o processo de natureza pedagógica que permitiu calcular a determinação dessas horas — tudo isto porque as novas metas de aprendizagem e os novos programas ainda não foram feitos...
Um exemplo: História e Geografia, no 3.º ciclo — a proposta de revisão curricular atribui, no conjunto dos três anos deste ciclo, mais 2 tempos de 45 minutos à «parelha» História e Geografia. 
Apesar de eu ser um dos que defendem a História como disciplina obrigatória até ao 12.º ano (esclareço que não sou professor desta disciplina...), com programas adequados a todos os cursos, não posso deixar de interrogar: não estando ainda definidas as novas metas de aprendizagem nem os novos programas, como é possível apurar que estas duas disciplinas necessitam de ter mais 2 tempo lectivos, no 3.º ciclo? Porquê mais 2 e não mais 3? Ou apenas mais 1, ou menos 1, ou...? 
O discurso da defesa do rigor, que este ministro permanentemente profere, não tem, desgraçadamente, nenhuma correspondência com a sua prática política. É confrangedor constatar isto.

2. Para além da distribuição dos tempos de leccionação pelas disciplinas, esta primeira etapa da revisão curricular também consistiu na enunciação de algumas ideias gerais, mas sem que nenhuma delas esteja fundamentada.
Um exemplo: o ministério da Educação diz, na proposta, que «a revisão agora apresentada reduz a dispersão curricular, centrando mais o currículo nos conhecimentos fundamentais e reforçando a aprendizagem nas disciplinas essenciais». Todavia, não é dita uma única palavra a fundamentar por que razão se considera que os conhecimentos x, y e são fundamentais e por que razão se considera que as disciplinas a, b e c são essenciais. Ficamos sem saber se a consideração de que determinados conhecimentos são fundamentais resulta de uma concepção de ser humano e de um perfil de cidadão (se sim, qual é a concepção e o perfil? E que relação têm com esses conhecimentos considerados fundamentais?) ou se resulta de aceitação acrítica de um amontoado de clichés em moda.

3. A proposta de revisão curricular enuncia que «aposta no conhecimento estruturante, mantendo o reforço da Língua Portuguesa e da Matemática».
Todos sabemos que existem disciplinas que são mais instrumentais e outras mais estruturantes. O peso de cada uma destas vertentes varia: têm uma função mais instrumental, quando servem principalmente de instrumento para algo, e mais estruturante, quando ajudam a organizar de determinado modo e em determinado sentido a nossa mente. 
A língua portuguesa é, obviamente, as duas coisas. É um conhecimento instrumental, porque tem uma serventia (ler, escrever, comunicar...); mas, para uma criança portuguesa, é fundamentalmente um conhecimento estruturante porque estrutura essa criança a pensar em português (o que, em termos formais, é diferente de pensar em alemão ou, presumo, em mandarim) e porque a impregna da cultura específica que a língua portuguesa simultaneamente transporta e constitui. O mesmo não acontece, por exemplo, com a língua inglesa. Para uma criança portuguesa, com cinco anos curriculares de inglês, a sua aprendizagem tem uma natureza fundamentalmente instrumental e só muito residualmente é um conhecimento estruturante — a não ser que se pretenda que os alunos portugueses passem a pensar em inglês e se tornem culturalmente anglo-saxónicos, mas a este ponto parece que (ainda) não chegámos.
Agora, considerar o ensino da Matemática equiparávelenquanto conhecimento estruturante, ao ensino da Língua Portuguesa, parece-me um erro.
É verdade que a Matemática é também um conhecimento instrumental (tem uma serventia) e estruturante (pelas implicações que tem no desenvolvimento das capacidades cognitivas e no desenvolvimento do pensamento — na organização e na disciplina dos raciocínios). Todavia, isto não significa que todos os conteúdos da Matemática sejam instrumentais e estruturantes. Tenho sérias dúvidas de que alguns dos conteúdos constantes dos programas da disciplina de Matemática, no ensino básico, devam lá estar.
Do ponto de vista instrumentalno contexto do ensino básico, os conhecimentos que a Matemática deve ministrar são aqueles que têm uma função operativa na vida presente e futura de uma criança ou de um jovem que venha a ter uma opção de vida desligada dos conhecimentos matemáticos. Neste nível de ensino, desenvolver conhecimentos matemáticos aprofundados não é justificável. Sê-lo-á, se forem necessários do ponto de vista estruturante, isto é, na perspectiva da organização e desenvolvimento do raciocínio, mas é muito duvidoso que todos os conteúdos que actualmente são ensinados até ao 9.º ano sejam os mais adequados para o cumprimento dessa função de estruturação.
Temos, pois, na Matemática, um precioso exemplo de como deveria ter começado a ser feita a revisão curricular: por uma clara definição de quais são, a nível do ensino básico, os conhecimentos instrumentais e os conhecimentos estruturantes e, em consonância com a definição das metas de aprendizagem, elaborar posteriormente os programas. Por fim, proceder à distribuição dos tempos necessários à leccionação.
É essencial submeter todas as disciplinas a este escrutínio, mas, de modo particular, a Matemática. A Matemática foi colocada num pedestal que a tem tornado isenta de escrutínio alargado. Sei que esse debate tem existido no seio de alguns professores desta disciplina, mas a Matemática é demasiado importante para que o seu debate seja deixado apenas ao cuidado dos matemáticos — a discussão sobre o lugar que a Matemática deve ocupar no currículo dos ciclos de ensino não é sequer uma discussão matemática.
Contudo, para Nuno Crato, a Educação é uma coisa mais prosaica, resume-se essencialmente a umas contas de mercearia inseridas numa tabela de Excel.

Continua na primeira semana de Janeiro.

Para clicar


terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Bonecos de palavra

Quino, Bem, Obrigado. E Você?, Pub. Dom Quixote.

Nacos

«A velha maman fingia não reparar nas nossa negociações e estava envolvida num debate profundo consigo mesma, colocando um saco numa divisão e indo buscá-lo de novo, a debater-se com a tela enrolada, a fazer tinir e chocalhar aqueles tachos amolgados e escurecidos que tinha trazido do outro lado do mar como se fossem napoleões de ouro. Com acenos de cabeça e cotoveladas, deu-me a entender que a única coisa que eu tinha a fazer era abraçar a filha desfeita em soluços, e o meu coração ficou a transbordar, em parte de raiva, em parte de prosápia, tudo isso a inundar, gorgolejar e esguichar pelas minhas câmaras interiores. 
— Acho que lhes vou perguntar onde fica o mercado — anunciou essa velhinha adorável, Deus abençoe o seu rosto de avelã e os seus dedos dos pés deformados. Fechou a porta atrás de si. Deu uma volta à chave. Já as mãos da filha me estavam a puxar a roupa e no seu rosto virado para cima se estampavam a doçura de uma pomba e a cólera de um tigre. A boca dela estava inundada de lágrimas. Comi-a, bebi-a, fervi-a, acariciei-a até ela ficar como um peixe encantador a espadanar, com o cabelo encharcado, e nós, com os olhos fixos e as peles a escorregarem uma na outra, a cheirarmos a  animais de quinta, a algas e à fábrica de curtumes a montante do rio.»
Peter Carey, Parrot e Olivier na América, Gradiva.

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Indignados nas escolas: protesto dia 21


Comentário de segunda

Horta Osório tem sido apresentado como um gestor modelo. Dos melhores do mundo. Como o exemplo a seguir. Como a corporização do que a excelência da gestão pode alcançar. Tem sido venerado pelos iniciados, pelos leigos, pelos jornalistas «económicos», pelas revistas cor-de-rosa e pelo «novo-riquismo» político, que vê sempre em cada gestor um protótipo de uma «liderança forte».
Mas, em Outubro último, Horta Osório teve aquilo que, em terminologia usual, se designa por esgotamento nervoso — em terminologia aplicada a gestores, administradores e homens da finança, a designação é um pouco diferente: teve «alguns problemas de saúde relacionados com a exaustão». Se se preferir uma terminologia ainda mais depurada, Horta Osório falhou «num teste de stresse».
Um anónimo cidadão que sofra de um esgotamento nervoso, é enviado para casa com vários medicamentos que, entre outras coisas, o põem a dormir muitas horas durante vários dias. No caso de gestores, administradores e homens da finança, procede-se a um retiro para repouso. Foi o que o nosso gestor fez. O retiro foi realizado numa clínica especializada em «recuperação do sono». 
Esta semana, saiu a notícia de que Horta Osório vai regressar, no próximo dia 9 de Janeiro, ao seu posto de CEO do Lloyds Bank, em Londres.

Pondo de lado o folclore em torno da dicotómica e caricata terminologia jornalística, vale a pena observar agora como em torno da auréola da «excelência», da «eficácia» e de «competência» da classe dos gestores se constrói uma mitologia, de origem ideológica, que o escrutínio da realidade desmente. 
Na verdade, a recorrentemente elogiada gestão superlativa de Horta Osório, se for submetida a avaliação segundo os parâmetros do bê-á-bá da gestão, sai reprovada:
i) Horta Osório falhou uma regra elementar de um gestor: ser capaz de se gerir a si próprio;
ii) Horta Osório falhou uma outra regra elementar da gestão: as consequências da acção de um gestor não podem induzir incertezas e/ou imprevistos no sistema — ora, a repentina saída de Horta Osório, em Outubro, trouxe imediata desestabilização interna e externa ao banco;
iii) Horta Osório falhou uma terceira regra básica: o trabalho e o lazer têm de ser equilibrados — mas o gestor-modelo tinha o hábito de marcar reuniões de trabalho para os domingos, porque, no seu entendimento, é o dia em que se tem mais «tempo para pensar nas nossas reais dificuldades».
Agora, depois do «incidente», Horta Osório pensa de outra forma: «O meu estilo de gestão vai ter de mudar. Vai tornar-se menos focado na gestão do dia a dia e terá mais a ver com a liderança». A administração do banco confirma: «Horta Osório vai ter de descentralizar tarefas e de dar mais poder à sua equipa de gestão».
Como se pode ver, os erros cometido por Horta Osório são básicos, são erros de palmatória, mas foram cometidos. E foram cometidos por um dos designados gestores de topo, que, apesar de assim ser considerado, não sabia coisas elementares como: liderar não é gerir os pormenores do dia-a-dia; ou os dias de descanso são tão necessários como os dia de trabalho (mesmo pelo estrito critério dos interesses empresariais). Aquilo que qualquer aprendiz de empregado de escritório sabe, Horta Osório não sabia, ou, pior ainda, se sabia, agiu como se não soubesse. A terceira hipótese, alternativa ou cumulativa, é a de Horta Osório ter sucumbido à voracidade mortífera da necessidade de mostrar «resultados».

Naturalmente, este comentário não visa Horta Osório, visa, sim, a mentira que o «novo-riquismo» político difunde e alimenta: a crença de que o presente e o futuro dependem da classe dos gestores. Horta Osório, sendo um gestor da mais elevada reputação, constitui um exemplo particularmente significativo de três coisas: de que a falibilidade da classe dos gestores é idêntica à de qualquer outra classe profissional; de que a gestão, seja ela qual for, tem de ser partilhada por uma equipa, que deve ser multidisciplinar; e, fundamentalmente, de que a voracidade dos «resultados» colide com o bem-estar humano.

domingo, 18 de dezembro de 2011

Rabih Abou-Khalil, Joachim Kühn, Jarrod Cagwin

Pensamentos de domingo

«Alguns homens vêem as coisas como são e dizem "Porquê?". Eu sonho com as coisas que nunca foram e digo "Porque não?".
Bernard Shaw

«O cérebro é um órgão maravilhoso. Começa a funcionar assim que você se levanta da cama e não pára até que chegue ao escritório.»
Robert Frost

«Pontual é alguém que resolveu esperar muito.»
Millôr Fernandes
In Paulo Neves da Silva, Dicionário de Citações, Âncora Editora.

sábado, 17 de dezembro de 2011

Ao sábado: momento quase filosófico

O problema da oração certa

Um homem pobre entrou numa mesquita e associou-se à oração colectiva, a que acrescentou uma oração particular, a chamada dua. Pediu a Alá que lhe desse alimento, que levasse para a sua casa vazia fruta, carne, legumes, sêmola e, sobretudo, que não se esquecesse de lhe levar um agarrafa de raki, bebida de que muito gostava.
O homem que estava à sua frente ouviu esta oração, voltou-se e disse-lhe:
— Em vez de pedires raki a Alá, não farias melhor em pedir-lhe que fortificasse a tua fé para te salvares no dia do juízo final?
— Mas não — respondeu o homem. — Pedi a Alá o que me faz falta na vida. E o que me falta não é fé, é comida e raki.
In Jean-Claude Carrière, Tertúlia de Mentirosos, Teorema (adaptado).

Uma fita engraçada: «Habemus Papam», de Nanni Moretti

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Apontamentos sobre um desastroso modelo de gestão -8

Ainda sobre o órgão director
O director é um órgão unipessoal. Na escola, este órgão unipessoal tem a competência de administrar e de gerir as áreas pedagógica, cultural, administrativa, financeira e patrimonial (Art.º 18.º). Deliberadamente, quis-se sinalizar que o poder era individual, que pertencia a uma só pessoa. Quis-se sinalizar que quem trabalha com o director é somente um auxiliar seu. É essa a sua função: ajudar — técnica e juridicamente a designação consagrada é a de coadjuvante (aquele que ajuda). O director e os seus ajudantes, em conjunto, não constituem qualquer órgão. Na legislação não existe o órgão direcção. Existe apenas o órgão director. 
A noção de equipa, a noção de projecto de equipa (projecto como fruto do trabalho de uma equipa, que se constitui e motiva para realizar algo que criou e em que acredita), a noção de vontade colectiva  (vontades que se unem e mobilizam para concretizar objectivos partilhados) constituem elementos de um paradigma conceptual estranho ao vocabulário e ao pensamento «novo-rico» dominante (de que de Sócrates e Rodrigues foram porta-vozes, durante os últimos anos). 
A ideia de equipa foi substituída pela ideia de indivíduo, a ideia de projecto comum pela ideia de projecto individual, a ideia de vontade colectiva pela ideia de desígnio individual. Pode-se ver como a categoria da personagem providencial ainda mantém, nos nossos dias, um razoável poder de sedução, e como vai sendo adaptada às diferentes escalas da realidade. À escala de uma escola, a figura do director é o resquício ou o descendente menor dessa categoria.
Todavia, é curioso observar que, e de forma paradoxal, os subscritores destas ideias são também os mesmos que a qualquer momento ornamentam o discurso com referências à necessidade de os jovens saberem laborar em equipa e com a  necessidade de as escolas os deverem treinar nesse sentido, porque, segundo eles, o presente e futuro assim o exigem. São também os mesmos que teorizam com evidente facilidade sobre as realidades interdependentes e as funções de complementaridade, sobre as organizações sistémicas, sobre a horizontalidade e a transversalidade funcionais, sobre os open spaces, sobre o tratamento por tu, sobre o conceito de colaborador, etc. Mas, chegados ao domínio que diz respeito à posse do poder, este pensamento, aparentemente democrático, aparentemente inter em tudo, torna-se repentinamente hierárquico, fechado, restritivo, impositivo. 

É pois este amontoado de ideias contraditórias, em que tudo se mistura sem nexo, sem ligação, que produz inevitavelmente dislates atrás de dislates. Quer a nível da conceptualização quer, depois, a nível da operacionalização.

Vejamos um exemplo, a nível da operacionalização, de como as confusões conceptuais têm consequências excêntricas.
Os candidatos ao cargo de director, quando apresentam as suas candidaturas individuais, têm de elaborar, para além do curriculum vitae, um projecto de intervenção na escola. Neste projecto de intervenção, os candidatos a directores têm de identificar os problemas da escola, de definir objectivos, de apresentar estratégias e de estabelecer a programação das actividades que se propõem realizar durante o tempo do seu mandato (4 anos). Trata-se de um projecto individual de cada candidato, que, após a escolha do conselho geral, se transforma em programa de governação. Por isso, o candidato eleito fica, obviamente, vinculado ao projecto que apresentou. 
Após a tomada de posse do director e depois de constituído o conselho pedagógico, este órgão deve elaborar o projecto educativo da escola. Pela sua natureza, o projecto educativo é um documento que deve resultar de uma ampla participação de toda a comunidade educativa. Professores, funcionários, alunos e pais (e, em alguns níveis de ensino, as próprias autarquias) devem envolver-se na elaboração do projecto educativo. Deste movimento de debate e de reflexão deve resultar o documento que vai definir, para um determinado período, as metas fundamentais que a escola assume como suas e nas quais se vai empenhar. O projecto educativo é, legal e substantivamente, o documento mais importante de uma escola e é o documento que consagra uma vontade colectiva
Ora, chegados aqui, levantam-se alguns problemas acerca da natureza, relação e poder legal dos dois projectos acima referidos: o projecto do director, apresentado aquando da sua candidatura e ao qual ele está vinculado, e o projecto educativo.

Quanto à natureza: um tem uma natureza individual, o outro tem uma natureza colectiva. O projecto do director é o projecto do órgão unipessoal director (nem sequer é o projecto de uma equipa directiva), o projecto educativo é o projecto da comunidade educativa.

Quanto à relação: entre o projecto do director e o projecto educativo pode não haver sintonia. Podem ser projectos consonantes, mas também podem ser dissonantes, podem ser complementares como podem ser conflituantes. Argumentar-se-á, como já ouvi algures: o director é quem preside ao conselho pedagógico e, desse modo, não permitirá que o conselho pedagógico elabore uma proposta contraditória com o seu projecto pessoal. Mas este argumento não resolve o problema, complica-o ainda mais:
i) o conselho pedagógico (ainda) é um órgão colegial. Se a vontade do director se impõe apenas porque é director e anula a vontade do conselho pedagógico, este órgão deixa de ter uma natureza colegial, perdendo autoridade e dignidade;
ii) por outro lado, o projecto do director foi sufragado por um núcleo muito restrito de pessoas (no máximo, vinte e uma, algumas delas total ou parcialmente alheias ao que é uma escola), o projecto educativo pode ser o resultado da participação de dezenas ou de centenas de pessoas. 

Quanto ao poder legal dos documentos: o projecto educativo está consagrado na lei como o documento que define a política educativa interna de cada estabelecimento de ensino, ao qual muitas dimensões da vida escolar estão vinculadas (como é o caso, por exemplo, da própria avaliação do desempenho docente); o projecto do director não tem, especificado na lei, nenhum poder formal.

Neste imbróglio acrescem ainda dois elementos:
— a composição do conselho conselho geral que acompanha a acção do director e que aprova o projecto educativo pode não ter nenhum membro em comum com a composição do conselho geral que escolheu o director;
— o projecto educativo saído da vontade colectiva da comunidade pode até ser mais consonante com um projecto apresentado por algum dos outros candidatos derrotados ao cargo de director.

É legislação desta, feita em cima do joelho e com uma impressionante confusão de ideias, que gere a vida das nossas escolas.

Continua na próxima semana

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Quinta da Música - Gabriel Fauré

Trechos - Hervé Juvin

«Nós somos os primeiros homens por toda a parte confrontados com a pequenez do mundo, com o esgotamento da natureza. É a  inversão inesperada do totalitarismo do crescimento. [...]
Mundo de retorno ao físico e ao real. Os automóveis têm carroçarias de metal, os plásticos são fabricados a partir do petróleo e as casas como os imóveis precisam de pedra, de areia, de madeira e de vidro. E o fogo mata. O regresso dos bens reais está escrito. A questão não é das conexões da Internet e do alto débito, do mundo virtual e dos avatares, é a da água, do arroz, da floresta, do ar. A escassez era o facto económico que a super abundância fez esquecer, ao gerar distribuições aberrantes de lucros e de património. A questão de acesso aos bens vitais vai dominar o mundo que está por vir, com a perspectiva razoável dos bens reais racionados e de uma explosão do preço da vida [...] A penúria alimentar é um dado provável nos próximos dez anos.»
Hervé Juvin
Gilles Lipovetsky, Hervé Juvin, O Ocidente Mundializado, Edições 70.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Às quartas

ABANDONO

No sofá debotado o romance inacabado
A rima imperfeita de um coração falido
No sofá
Tudo absolutamente tudo furiosamente inquieto
Folhas dispersas à espera do acaso
Parei-te romance para compor a história dum mundo
Não ouso a história do mundo ou dos mundos
Não sou poeta escritor pintor não sou
Essa história parou-me nas veias
Esgotou minhas artérias
Inundou-me de veneno
Talvez cicuta
Trouxe o Gólgota como a aurora desejada
Vi a História no olhar da criança moribunda
Uma lágrima a última lágrima caía
Uma mãe desconhecida agarrava o travesseiro
Aqui no Iraque
Aqui em nós

Álvaro José Ferreira Gomes

Para clicar

Uma revisão inédita (1)

O ministro da Educação apresentou a sua proposta-base de Revisão da Estrutura Curricular do Ensino Básico e Secundário. Nessa proposta, é explicado que se trata apenas da primeira etapa de uma reforma mais profunda. Depois desta, outras duas se seguirão: definição das metas de aprendizagem disciplinares e, posteriormente, reformulação dos programas. 
Algumas notas:

1. Não compreendo a racionalidade desta sequência. Não compreendo como se inicia uma reformulação curricular às avessas. Não compreendo como é possível proceder-se, de forma séria e fundamentada, a alterações da estrutura curricular e da carga horária sem primeiramente terem sido definidas as metas de aprendizagem disciplinares e sem terem sido delineados os novos programas. Que critérios científicos e pedagógicos estiveram na base destas alterações, se ainda não se sabe quais irão ser as novas metas de aprendizagem disciplinares e os novos programas? Não vislumbro como é possível apurar o número de horas semanais que uma dada disciplina necessita, para que o seu programa possa ser cumprido e as metas de aprendizagem alcançadas, se nem uma coisa nem outra estão definidas. A não ser que se pense, depois de se efectuar a definição das novas metas e dos novos programas, voltar a alterar tudo o que agora é proposto.
Se assim não for, não nos resta senão concluir que o critério mor desta revisão é o de fazer depender a definição das metas e o conteúdo dos programas do número de horas estipulado. Contudo, se assim é, conviria que existisse um mínimo de seriedade na apresentação da proposta: dever-se-ia assumir, com clareza, que o critério é, afinal, contabilístico e não pedagógico; dever-se-ia assumir que aquilo que está a ser pensado não é a qualidade da educação das gerações futuras, mas somente a quantidade de horas a leccionar; dever-se-ia assumir que é de contabibidade que se está a falar e não de educação.

2. Não é, pois, possível realizar, de forma séria, uma discussão pública de uma proposta, se aquilo que deveria sustentar essa proposta ainda não é conhecido. Uma discussão pública não se faz a partir de meia dúzia de ideias avulsas genericamente alinhavadas, como acontece no documento agora proposto para debate.
Afirma-se, a dado passo do documento, que se trata de concretizar «medidas que ajustam os currículos às necessidades de um ensino moderno e exigente», todavia, não se esclarece minimamente o que se entende por «ensino moderno e exigente». Os termos «moderno» e «exigente» servem genericamente para tudo, e são utilizados, consoante as correntes pedagógicas e/ou os interesses políticos, com sentidos divergentes. Na realidade, estamos a falar de quê? E de que modo a alegada «modernidade e exigência» se reflecte na proposta de distribuição das horas curriculares? Qual é a relação de causa-efeito?
Diz-se que «os pressupostos que orientam as medidas propostas assentam na definição de objectivos claros, rigorosos, mensuráveis e avaliáveis, reorientando o ensino para os conteúdos disciplinares centrais». Quais são os pressupostos? Onde estão definidos os «objectivos claros, rigorosos, mensuráveis e avaliáveis» em que assentam as medidas propostas? Não se pode discutir, concordar ou discordar de algo que se ignora.
Anuncia-se a «substituição da disciplina de Educação Visual e Tecnológica pelas disciplinas de Educação Visual e de Educação Tecnológica, no 2.º ciclo, cada uma com programa próprio e cada uma com um só professor». É explicado o fundamento pedagógico desta substituição? Não. Ficamos sem saber das boas ou más razões porque se procede a esta substituição. Como se discute algo de que se ignora o fundamento? Como se concorda ou discorda?
Procede-se à «antecipação da aprendizagem das tecnologias de informação e comunicação». Porquê? Esta antecipação é aconselhável porquê? São apresentados os fundamentos desta opção? Não são. Como se discute então algo de que se ignora o fundamento? Como se concorda ou discorda?
Anuncia-se... procede-se... altera-se... mas sempre sem fundamentação minimamente rigorosa. Acrescentam-se e retiram-se horas sem se conhecer as novas metas e os novos programas. O critério é o palpite?
Nestas condições, como é que se faz um debate sério e profícuo?

Continua na próxima semana.

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Bonecos de palavra

Quino, Bem, Obrigado. E Você?, Pub. Dom Quixote.

Nacos

«Mais tarde, nessa noite, fui acordado no meu beliche e não tive alternativa senão fazer de público para a conversa de Mr. Peek com Lorde Enxaqueca no camarote do comandante, o que era o mesmo que passar-se dentro da minha cabeça.
PEEK: Mas, senhor, é costume no seu país permitirem que um criado fique a par dos vossos assuntos privados?
ENXAQUECA: Sim, depende do criado e dos assuntos. De uma forma geral, uma pessoa não deve ter vergonha da sua conduta. Qual a qualidade dos criados na América? Em comparação com os franceses?
Era de mim que falavam, uma coisa involuntária, soprada como uma semente ou uma pena dos palácios de Paris para as regiões selváticas da Terra.
PEEK: Oh, em geral muito fraca, diria, mas, pela parte que me toca, hesitaria em partilhar os meus sentimentos mais profundos com um dependente de qualquer tipo.
ENXAQUECA: Para nós isso não é diferente de sermos vestidos por um deles.
PEEK: Vestidos, senhor?
ENXAQUECA: Não é um costume vosso?
PEEK: Ficar nu? Senhor, eu nem me apresentaria nu à minha mulher.
ENXAQUECA: Com um criado não lhe chamamos estar nu.
PEEK: Então como lhe chamam?
ENXAQUECA: Chamamos-lhe vestirmo-nos.»
Peter Carey, Parrot e Olivier na América, Gradiva.

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Comentário de segunda

1. No domingo à noite, tive o privilégio de assistir à entrevista(?) dada pelo escritor Gonçalo M. Tavares a Rebelo de Sousa, na TVI. Infelizmente foram poucos minutos, mas foram saborosos minutos. Entre outras observações, Tavares falou sobre o poder mágico da palavra e sobre o actual domínio da quantidade sobre a qualidade. E fê-lo de forma magnífica. Fiquei impressionado.

2. Na sexta-feira, ouvi as conclusões da Cimeira dos chefes de Estado e de Governo da União Europeia. Também fiquei impressionado. Desta vez, com a mediocridade. Com a mediocridade de Merckel, de Sarkozy. Com a mediocridade de todos os outros chefes de Governo que não sabem ter voz própria e, menos ainda, pensamento próprio. Com a mediocridade de Cameron que tem voz própria, mas é a voz da insularidade política, a voz de quem não está nem nunca esteve interessado em uniões, menos ainda se forem europeias. A Europa caminha mesmo para o desastre. E com ela vamos todos.

3. No sábado, reparei na página 3 do Expresso. Numa altura em que a Europa está à beira do desmembramento e, potencialmente, à beira do regresso à barbárie; numa altura em que o país está desnorteado e o mundo também não anda lá muito bom; aquele jornal achou por bem colocar na sua página interior mais importante, com letras garrafais e ocupando mais de metade do espaço, a notícia de que Passos Coelho se tinha esquecido do iPad no avião, quando se deslocou a Angola. 
Voltei a ficar impressionado, desta feita, com os sempre misteriosos mas alegadamente sempre muito rigorosos «critérios jornalísticos».

domingo, 11 de dezembro de 2011

Milt Jackson

Pensamentos de domingo

«Fomos os últimos a entrar em crise e fomos os primeiros a sair dela.»
José Sócrates (Janeiro de 2010)

«Se formos Governo, posso garantir que não será necessário despedir pessoas nem cortar mais salários para sanear o sistema português.»
Passos Coelho (Maio de 2011)

sábado, 10 de dezembro de 2011

Ao sábado: momento quase filosófico

Os limites do tempo são ultrapassáveis

Uma história judia conta que um homem de certa idade, que se sentia muito cansado, marcou consulta num médico de renome.
O médico mediu-lhe a tensão, examinou-lhe o fundo dos olhos, os pulmões, a garganta. Mandou-o fazer um electrocardiograma, um encefalograma, diferentes testes e análises. Quando foram conhecidos os resultados das análises, o médico chamou o paciente, verificou certos pormenores, escreveu durante um bom quarto de hora e finalmente disse o seguinte:
— Escrevi tudo aqui. A partir de hoje, o senhor vai deixar de fumar e não bebe nem mais uma gota de álcool, sob pretexto nenhum. Vai suprimir o açúcar e todas as gorduras, até o óleo de girassol. Vai eliminar igualmente as batatas, o feijão e todas as féculas em geral. Abster-se-á de fazer amor. Tem aqui o que pode comer: saladas e peras cozidas, sem tempero, nabos cozidos em vapor, maçãs assadas, naturalmente sem açúcar, e duas vezes por semana cem gramas de carne grelhada. Uma vez por semana tem direito a um iogurte natural e um pouco de peixe cozido, sem azeite nem manteiga. Se não seguir as minhas instruções, restam-lhe três meses.
— E se as seguir posso ter esperança de viver mais tempo?
— Por certo que não — disse o médico. — Mas o tempo parecer-lhe-á mais longo.
In Jean-Claude Carrière, Tertúlia de Mentirosos, Teorema

Uma fita assim-assim: «Um Método Perigoso», de David Cronenberg

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Apontamentos sobre um desastroso modelo de gestão -7

Algumas notas mais sobre o órgão unipessoal designado de director.
Conceber o director como mandante e não como líder democraticamente reconhecido é, como vimos na semana passada, um dos principais traços característicos do actual modelo de gestão. Directamente derivada desta concepção, surgiu a ideia de atribuir ao director a competência de designar os coordenadores dos departamentos curriculares.
Nos anteriores modelos de gestão das escolas, os grupos disciplinares elegiam, de entre os seus membros, quem devia assumir as funções de coordenação pedagógica/científica e, simultaneamente, de representação institucional, no conselho pedagógico. Isto é, eram os profissionais de cada domínio curricular que determinavam quem, de entre eles, reunia as melhores condições para o exercício da coordenação e da representação.
O actual modelo de gestão deixou de atribuir esta competência aos professores e passou a atribuí-la ao director. Esta mudança é particularmente significativa e merece, na minha opinião, alguma atenção.

O anterior método de escolha do coordenador/delegado/representante curricular era um método que partia de um pressuposto: os mais capacitados para avaliar quem, em certo momento, possui as melhores condições para o exercício de determinado cargo são aqueles que, trabalhando juntos diariamente, melhor conhecem as qualidades humanas e profissionais dos membros que formam essa equipa de trabalho. Se aquilo que verdadeiramente se pretende é escolher quem, num determinado núcleo, pode cumprir melhor as funções de coordenação, não parece oferecer dúvidas de que a competência dessa escolha não deve recair sobre quem é exterior a esse núcleo.
Adicionalmente, a eleição interpares tem duas importantes virtudes: responsabiliza quem elege e possibilita que a autoridade do escolhido seja reconhecida pelos colegas, através do voto.
Ora, nada disto acontece quando a eleição é substituída por uma nomeação:
i) como acima referi, o director, porque é exterior aos núcleos curriculares, não é quem está nas melhores condições para, através de critérios profissionais sérios, saber quem deve assumir as funções de coordenação;
ii) a nomeação desvincula de qualquer responsabilidade os restantes professores do núcleo curricular;
iii) a autoridade do nomeado só por acaso será reconhecida pelos pares;
iv) os professores ficam sem um porta-voz, sem um representante, porque o nomeado pelo director passa a ser o representante, o porta-voz do director; isto é, o nomeado passa a representar precisamente aquele que, pela natureza do cargo que exerce, não necessita de se fazer representar. Inversamente, os professores sempre tiveram a necessidade de ser representados por alguém que levasse a conselho pedagógico problemas específicos de cada área curricular. Esta prerrogativa, que possibilitava análises e debates fecundos nas reuniões dos conselhos pedagógicos, na prática, findou, quer pela circunstância de terem acabado os representantes disciplinares, naquele órgão, quer pela esdrúxula concentração de cerca de dezena e meia de grupos disciplinares em quatro gigantescos departamentos (assunto sobre o qual darei a minha opinião quando abordar o órgão conselho pedagógico).
Todos estes aspectos configuram, no meu entendimento, erros grosseiros, seja qual for o modelo de gestão escolar em causa. Mas estes e outros erros, alguns dos quais já fiz referência em textos anteriores, têm a mesma origem: o fascínio provinciano pelo dominante modelo de gestão empresarial e a crença ingénua de que aquilo que alegadamente é bom nas empresas também o é nas escolas. Teimosamente, ignora-se que empresas e escolas perseguem fins diferentes e têm funções de natureza muito diversa e, em alguns casos, muito divergente. Teimosamente, persiste-se em prescindir de avaliar, com seriedade, o que a experiência de muitos anos revelou, em termos de gestão escolar, para irresponsavelmente se impor o que arcaísmos ideológicos reprimidos sempre desejaram.

Continua na próxima semana.

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Quinta da Música - Peter Tchaikovsky

Trechos - Hervé Juvin

«O número substitui o saber, o número mata o gosto e a aristocracia do julgamento. O exemplo é dado em Google-moi, de Barbara Cassin: a lógica invocada sob os gloriosos auspícios de "cultura e democracia" é uma lógica puramente quantitativa em que o número de cliques dita a qualidade, tanto da amizade como das obras. É a lei da Internet, os motores de busca como enciclopédias; o número dita a verdade, a quantidade assegura o belo, o bom e o verdadeiro. Não estamos longe do realismo socialista soviético: as massas nunca estão erradas, o artista só faz o que é belo e bom quando educa as massas. Chegaremos brevemente ao ponto em que, nos museus, se afixará o preço estimado do quadro para se situar o valor. De resto, nas grandes fundações americanas, publica-se o valor de compra do quadro. Homenagem aos doadores! A arte vale o seu preço. É um primeiro passo, que será seguido. Nas universidades americanas, os grandes e antigos exemplos são-no segundo a sua contribuição financeira. Aquele que paga tem sempre razão. Chegaremos brevemente ao ponto em que, nas universidades, se dirá quanto ganha um professor para saber se vale a pena ouvi-lo ou se se pode satisfazer ao ler a fotocópia. À força de saber bem fazer, mas não fazer bem, é necessário o quantitativo para apreciar o qualitativo. À organista que toca A Arte da Fuga, pergunta-se: "quantos tubos?", como Estaline perguntou ao papa: "quantas divisões?".»
Hervé Juvin
Gilles Lipovetsky, Hervé Juvin, O Ocidente Mundializado, Edições 70.

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quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Às quartas

UMA LIÇÃO DE SILÊNCIO

Quando uma borboleta
Batia suas asas
Forte de mais, gritavam-lhe:
Silêncio, por favor!

Se um pássaro assustado
roçava a pluma num
raio de sol, gritavam-lhe:
Silêncio, por favor!

Assim os elefantes
aprenderam a andar
sem som sobre o tambor —
os homens, sobre a terra.

As árvores nos campos
Se erguiam silenciosas
Como os cabelos quando
Se eriçam de terror.

Tymoteusz Karpowicz
(Trad.: Nelson Ascher)

Sob revisão

Li hoje que Sócrates falou numa conferência em Paris (no pólo da Universidade de Poitiers). Há umas semanas,  Teixeira dos Santos já tinha falado numa conferência na Faculdade de Economia do Porto. Ambos falaram de Economia, de Finanças, do que se deve e não deve fazer nestes domínios e que caminho o país deve seguir.
Sou ateu. Não acredito no divino, e, naturalmente, menos acredito em intervenções divinas na vida terrena. Mesmo que fosse teísta teria como excluída a possibilidade desse género de intervenções. Dito isto, sinto a obrigação de acrescentar que, por vezes, ocorrem situações que abalam não só a minha descrença no sobrenatural como também a descrença na possibilidade dele intervir nos nossos mais prosaicos assuntos. A realização destas duas conferências, com os dois citados protagonistas, inscreve-se nesse tipo de ocorrências.
Na realidade, aquelas conferências são acontecimentos de difícil explicação. Mais precisamente: são acontecimentos de dificílima explicação. Não me refiro à circunstância de os dois protagonistas em causa se disponibilizarem para discursar sobre Economia e Finanças, depois de tudo o que fizeram ao país e aos portugueses — há muito que os seus comportamentos já perderam a capacidade de me espantar; refiro-me, e isso é que suscita a possibilidade de eu admitir a intervenção de algo aproximado do género sobrenatural, à circunstância de haver quem os convide para conferenciar e de haver quem se disponha a ouvi-los. A credibilidade que Sócrates e Teixeira dos Santos possuem para conferenciar sobre Economia e Finanças é mais ou menos idêntica à credibilidade que um pai tirano possui para conferenciar sobre tolerância familiar. Não vejo, pois, modo razoável de explicar o fenómeno de haver quem se desloque para os ouvir discursar, se não me socorrer da hipótese de acção do sobrenatural.
Neste momento, coloquei o meu ateísmo sob revisão.

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Bonecos de palavra

Quino, Bem, Obrigado. E Você?, Dom Quixote.

Nacos

«Ela cheirava a jasmim, muito ligeiramente. Disse-lho. Estendeu a mão e tocou-me no cabelo, afastando-me um pouco para o lado o caracol da testa, e depois, sempre franzindo o sobrolho, mergulhou a ponta do pincel nos diferentes pigmentos, não apenas num e noutro como seria de esperar, mas movendo-se de um para o seguinte, leve como uma abelha a recolher pólen apoiada nas patas traseiras e descrevendo círculos rápidos. Parecia não conseguir decidir de que cor precisava, mas era uma sensualista moderna que tinha de provar um golinho de cada.
Só posso suspeitar do que aconteceu — as três ou quatro pinceladas rápidas criando uma velatura de azul a fim de permitir que a aragem brincasse em redor do meu cabelo, o fulgor quente e acetinado da minha face, a sombra profunda sob os meus olhos a transbordar, para a qual ela misturou vermelho-acastanhado com ocre-queimado. Juro que senti o verdadeiro pincel passar sob as minhas pálpebras.
Não irei perder tempo com o que aconteceu na tela. O que aconteceu com os meus outros sentidos embriagou-me. Enquanto as horas passavam deliciosamente, as gotas de suor acumulavam-se na testa dela e entre os seus seios. Trabalhava com um brilho misterioso nos olhos, fazendo pequenos movimentos convulsivos e depois acalmando-se, vertendo-se em longas pinceladas lentas e ondulantes.»
Peter Carey, Parrot e Olivier na América, Gradiva.

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Vale a pena ler

Comentário de segunda

1. A recente aprovação do Orçamento Geral do Estado para o ano 2012 erigiu em lei a escandalosa depradação de dois meses de salários aos profissionais do Estado e de empresas públicas e dois meses de pensões aos reformados e pensionistas. Para além do generalizado aumento dos impostos de que todos sofrerão as consequências, aqueles trabalhadores e pensionistas serão objecto de uma especial penalização, sem que até hoje se conheça uma justificação plausível para o facto.
Ninguém consegue explicar por que razão o ano de 2012 é, para uns, o ano de todos os sacrifícios e, para outros, o ano em que os rendimentos sobem. Na verdade, quem pertence ao sector privado terá um aumento nos seus rendimentos, porque, em 2012, não só não é abrangido pelo corte de dois salários como ficará isento da taxa que este ano paga (em sede de IRS) sobre o subsídio de Natal. No privado, os rendimentos, em 2012, serão, pois, superiores aos rendimentos de 2011. Enquanto, no sector público, os cortes rondam os 23% dos vencimentos líquidos, de milhares de funcionários.
A responsabilidade desta iniquidade é de quem governa o país com absoluta indiferença em relação às pessoas e com a obsessão ideológica de atacar o sector público.

2. A desonestidade política de Passos Coelho constitui uma outra marca de água da sua governação. A juntar a tantas «malabarices» que já fez, em menos de meio ano de poder, soube-se, agora, durante o fim-de-semana, que surgiram 2 mil milhões de euros a mais, nas contas do Estado. Estes módicos 2 mil milhões vão permitir duas coisas, segundo o primeiro-ministro: alcançar um défice substancialmente abaixo dos 5,9% prometidos à troika e pagar dívidas a fornecedores do Estado.
Deste dinheiro, Passos Coelho nunca falou, apesar de saber que o iria receber, porque já há muito que estava em negociação com os bancos a transferência dos seus fundos de pensões para os cofres do Estado. Deste dinheiro, Passos Coelho nunca falou, mas soube falar de um alegado desvio colossal, desvio colossal cujo montante foi variando consoante os gostos e as necessidades que a desonestidade política exigia. E exigia para quê? Para poder subtrair quase 50% do subsídio de Natal aos portugueses, apesar de saber que iria ter um excedente de milhões, e apesar de ter prometido que nunca mexeria no subsídio de Natal de ninguém.
Passos Coelho engana os portugueses como Sócrates o fazia.

domingo, 4 de dezembro de 2011

Zakir Hussain & Eric Harland

Pensamentos de domingo

«Nada provoca mais danos num Estado do que homens astutos a quererem passar por sábios.»
Francis Bacon

«Cada idade tem os seus desprazeres.»
Henry Bataille
In Paulo Neves da Silva, Dicionário de Citações, Âncora Editores.

«Tenho celulite no rabo e detesto isso.»
Kelly Rowland
In Revista Única (3/12/2011)

sábado, 3 de dezembro de 2011

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Ao sábado: momento quase filosófico

Que responder?

Uma história sufi.
Um dervixe [monge] seguia pensativo ao longo de um rio quando ouviu uma voz humana a cantar um hino sagrado. Mas em vez de pronunciar correctamente as sílabas YA HU, a voz pronunciava U YA HU.
O dervixe achou ser seu dever corrigir esta imperfeição. Alugou um barco e remou até uma ilhota no meio do rio, de onde provinha a voz do cantor. Numa cabana de junco encontrou um homem pobremente vestido que salmodiava as suas orações e se enganava.
O dervixe corrigiu-o com amabilidade. O outro agradeceu-lhe humildemente.
Separaram-se. O dervixe voltou para o seu barco e remou para a margem. Tinha a alma satisfeita, consciente de ter realizado uma boa acção. Com efeito, diz-se que o homem que canta correctamente os textos sagrados pode caminhar sobre as águas. Toda a vida o dervixe ansiou poder realizar tal façanha. Mas em vão.
Quando se encontrava no meio do rio, a voz do cantor, por momentos interrompida, elevou-se de novo na pequena ilha. Mas o homem persistia na pronúncia incorrecta e cantava U YA HU.
Na barca, o dervixe deixou cair os remos, sentindo-se desencorajado, e pôs-se a reflectir sobre a perversidade da natureza humana. Ouviu então uma voz que o chamava. Voltou-se. Viu o cantor solitário que gritava:
— Espera por mim! Espera por mim! Tenho uma pergunta a fazer-te!
O homem saiu da ilhota e lançou-se à água do rio. Para perplexidade do dervixe, o homem caminhava verdadeiramente sobre as águas. Chegou até junto do barco e disse ao outro:
— Meu irmão, perdoa-me. A minha memória está fraca. Já esqueci a pronúncia correcta. Rogo-te, podes tu ensinar-ma outra vez?
In Jean-Claude Carrière, Tertúlia de Mentirosos, Teorema (adaptado).

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Apontamentos sobre um desastroso modelo de gestão -6

Depois de termos visto, nos textos anteriores, alguns dos graves problemas de concepção e operacionalização de que o conselho geral enferma, proponho que dediquemos agora alguma atenção ao órgão que, dentro do organograma do actual modelo de gestão das escolas, surge na segunda posição hierárquica: o director. 
Esta segunda posição na hierarquia é segunda apenas no plano formal, porque, pelas razões já apontadas (composição do conselho geral e ausência de condições para a plena assunção das suas competências), o director ocupa, de facto, a primeiríssima posição na hierarquia. Resulta daqui uma situação particularmente perigosa e inaceitável:
 — devido à incapacidade efectiva do conselho geral exercer as suas funções, as competências de direcção que lhe estão atribuídas são, na prática, exercidas pelo director, acumulando-as, assim, com as competências de administração e gestão que a lei já lhe confere.
Deste modo, uma só pessoa passa a ter o poder efectivo de dirigir, de administrar e de gerir uma escola em todas as áreas: pedagógica, cultural, administrativa, financeira e patrimonial.

Mas comecemos pelo princípio, comecemos pela concepção que sustentou a opção política de se criar um órgão unipessoal (director) em substituição de um órgão colectivo (conselho executivo/directivo).
Quando este modelo foi discutido na Assembleia da República, Sócrates e Rodrigues não se cansaram de dizer, com desmedida ênfase, que a introdução de um órgão unipessoal na gestão das escolas iria permitir criar «lideranças fortes». Assim mesmo: «lideranças fortes». Diziam que, com a institucionalização da figura do director, passaríamos a ter boas lideranças e eficazes lideranças. (É impressionante a facilidade com que o mais grosseiro senso comum sobe à tribuna política, se faz ideologia e se impõe a um país).

A propósito desta noção de liderança forte e de como ela se alcança, é oportuno recordar uma afirmação atribuída a Lao-Tsé: «Quando um verdadeiro líder dá o seu trabalho por terminado, as pessoas dizem que tudo aconteceu naturalmente». Sócrates e Rodrigues não faziam, e certamente continuam a não fazer, a mais pequena ideia do que isto significa. Pensavam, e certamente continuam a pensar, que as lideranças fortes podem ser instituídas por decreto, que basta anunciar «quem manda é só um» para que esse um se transforme em líder. Na verdade, para Sócrates e Rodrigues, líder forte é sinónimo de mandante. Mas esta é a concepção provinciana, medíocre, parola de liderança.
Deste modo, e mais uma vez, a partir de ideias amontoadas e mal pensadas, implementou-se uma solução híbrida: colocar um só homem, um executivo, um CEO a gerir — satisfazendo, assim, a crença naïf e o desígnio ideológico de equiparar a escola a uma empresa — concedendo-se, por outro lado, mas a contragosto, que esse órgão unipessoal (ainda) fosse ocupado por um professor. Contudo, esta concessão foi feita somente porque não existiam condições políticas para levar até ao fim a ideia inicial de criar uma carreira à parte da carreira docente: a carreira de gestor — algo que, curiosamente, está previsto no programa eleitoral do PSD.
Assim, com pressupostos falsos e sem fundamento sério, foram realizadas alterações radicais na natureza do órgão de gestão e administração das escolas.

Na realidade, é falso que, mesmo do ponto de vista formal da assunção de responsabilidades, não existisse, nos anteriores modelos de gestão, um rosto, não existisse um primeiro responsável a quem pedir contas. Esse rosto e esse responsável sempre existiu e sempre foi o presidente do conselho executivo (ou, na versão anterior, o presidente do conselho directivo). Em nenhuma circunstância existiram dúvidas sobre isto, nem da parte dos professores nem da parte do ministério da Educação. Aliás, sempre que foi necessário instaurar processos disciplinares por negligência na gestão, o ministério da Educação nunca teve dúvidas sobre quem deviam recair esses processos: os presidentes dos conselhos executivos/directivos. Sempre que o ministério da Educação quis apurar responsabilidades nunca teve dúvidas sobre a quem as devia pedir: aos presidentes dos conselhos executivos/directivos.
O problema da inexistência de um primeiro responsável é, pois, um problema falso assente numa  proposição mentirosa.

Por outro lado, se o que verdadeiramente se pretendia era a promoção de lideranças fortes, o que deveria ter sido feito era precisamente o oposto: não adulterar a natureza do órgão que geria e administrava as escolas, mas enaltecer e desenvolver as suas potencialidades.
É em contexto de trabalho de equipa que se vê quem é naturalmente líder. Uma liderança, para o ser, de facto, não se impõe de cima para baixo, revela-se e é reconhecida, pela forma como é exercida e pelo projecto que a anima. Liderança quer dizer capacidade de persuasão, capacidade de mobilização de vontades e de coordenação de equipas.
Ninguém é líder porque passou a ter o estatuto de director, esse estatuto, só por si, a única coisa que pode propiciar é a categoria de mandante, mas isso nada tem que ver com liderança.

Continua na próxima semana.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

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Quinta da Música - Reinhold Glière

Trechos - Hervé Juvin

«Quem é que ainda acredita que viajar o expõe à diferença? As viagens multiplicam-se entre lugares sempre idênticos, dramaticamente cada vez mais idênticos. Agitamo-nos freneticamente para ir a qualquer parte que nunca seja outro lugar; já não há outro lugar. Nós somos os primeiros a viver um universo sem exterior; [...]. Nós somos a primeira sociedade que se quer mundial e que já não aceita o exterior; com que arrogância, com que meios e, sobretudo, com que ausência total de dúvida, a religião do desenvolvimento se entrega a liquidar as civilizações, as crenças, as organizações políticas e sociais construídas durante milénios, arruinando à sua passagem um património essencial da humanidade! A cultura já não é o meio de relação com o outro [...]; a cultura-mundo é o meio de ser os mesmos e de reduzir os outros.»
Hervé Juvin
Gilles Lipovetsky, Hervé Juvin, O Ocidente Mundializado, Edições 70