1. Como referi no texto da semana passada, este processo de revisão curricular começou com uma sequência inédita: iniciou-se com a distribuição das horas por cada disciplina e há-de continuar, segundo foi anunciado, com a definição das metas de aprendizagem disciplinares e com a elaboração de novos programas. É uma sequência sui generis de proceder a uma revisão curricular: sabe-se que determinada disciplina vai ter, por semana, x horas de leccionação, mas não se sabe qual o fundamento pedagógica pela qual vai ter essas x horas de leccionação, nem se sabe qual foi o processo de natureza pedagógica que permitiu calcular a determinação dessas x horas — tudo isto porque as novas metas de aprendizagem e os novos programas ainda não foram feitos...
Um exemplo: História e Geografia, no 3.º ciclo — a proposta de revisão curricular atribui, no conjunto dos três anos deste ciclo, mais 2 tempos de 45 minutos à «parelha» História e Geografia.
Apesar de eu ser um dos que defendem a História como disciplina obrigatória até ao 12.º ano (esclareço que não sou professor desta disciplina...), com programas adequados a todos os cursos, não posso deixar de interrogar: não estando ainda definidas as novas metas de aprendizagem nem os novos programas, como é possível apurar que estas duas disciplinas necessitam de ter mais 2 tempo lectivos, no 3.º ciclo? Porquê mais 2 e não mais 3? Ou apenas mais 1, ou menos 1, ou...?
O discurso da defesa do rigor, que este ministro permanentemente profere, não tem, desgraçadamente, nenhuma correspondência com a sua prática política. É confrangedor constatar isto.
2. Para além da distribuição dos tempos de leccionação pelas disciplinas, esta primeira etapa da revisão curricular também consistiu na enunciação de algumas ideias gerais, mas sem que nenhuma delas esteja fundamentada.
Um exemplo: o ministério da Educação diz, na proposta, que «a revisão agora apresentada reduz a dispersão curricular, centrando mais o currículo nos conhecimentos fundamentais e reforçando a aprendizagem nas disciplinas essenciais». Todavia, não é dita uma única palavra a fundamentar por que razão se considera que os conhecimentos x, y e z são fundamentais e por que razão se considera que as disciplinas a, b e c são essenciais. Ficamos sem saber se a consideração de que determinados conhecimentos são fundamentais resulta de uma concepção de ser humano e de um perfil de cidadão (se sim, qual é a concepção e o perfil? E que relação têm com esses conhecimentos considerados fundamentais?) ou se resulta de aceitação acrítica de um amontoado de clichés em moda.
3. A proposta de revisão curricular enuncia que «aposta no conhecimento estruturante, mantendo o reforço da Língua Portuguesa e da Matemática».
Todos sabemos que existem disciplinas que são mais instrumentais e outras mais estruturantes. O peso de cada uma destas vertentes varia: têm uma função mais instrumental, quando servem principalmente de instrumento para algo, e mais estruturante, quando ajudam a organizar de determinado modo e em determinado sentido a nossa mente.
A língua portuguesa é, obviamente, as duas coisas. É um conhecimento instrumental, porque tem uma serventia (ler, escrever, comunicar...); mas, para uma criança portuguesa, é fundamentalmente um conhecimento estruturante porque estrutura essa criança a pensar em português (o que, em termos formais, é diferente de pensar em alemão ou, presumo, em mandarim) e porque a impregna da cultura específica que a língua portuguesa simultaneamente transporta e constitui. O mesmo não acontece, por exemplo, com a língua inglesa. Para uma criança portuguesa, com cinco anos curriculares de inglês, a sua aprendizagem tem uma natureza fundamentalmente instrumental e só muito residualmente é um conhecimento estruturante — a não ser que se pretenda que os alunos portugueses passem a pensar em inglês e se tornem culturalmente anglo-saxónicos, mas a este ponto parece que (ainda) não chegámos.
Agora, considerar o ensino da Matemática equiparável, enquanto conhecimento estruturante, ao ensino da Língua Portuguesa, parece-me um erro.
É verdade que a Matemática é também um conhecimento instrumental (tem uma serventia) e estruturante (pelas implicações que tem no desenvolvimento das capacidades cognitivas e no desenvolvimento do pensamento — na organização e na disciplina dos raciocínios). Todavia, isto não significa que todos os conteúdos da Matemática sejam instrumentais e estruturantes. Tenho sérias dúvidas de que alguns dos conteúdos constantes dos programas da disciplina de Matemática, no ensino básico, devam lá estar.
Do ponto de vista instrumental, no contexto do ensino básico, os conhecimentos que a Matemática deve ministrar são aqueles que têm uma função operativa na vida presente e futura de uma criança ou de um jovem que venha a ter uma opção de vida desligada dos conhecimentos matemáticos. Neste nível de ensino, desenvolver conhecimentos matemáticos aprofundados não é justificável. Sê-lo-á, se forem necessários do ponto de vista estruturante, isto é, na perspectiva da organização e desenvolvimento do raciocínio, mas é muito duvidoso que todos os conteúdos que actualmente são ensinados até ao 9.º ano sejam os mais adequados para o cumprimento dessa função de estruturação.
Temos, pois, na Matemática, um precioso exemplo de como deveria ter começado a ser feita a revisão curricular: por uma clara definição de quais são, a nível do ensino básico, os conhecimentos instrumentais e os conhecimentos estruturantes e, em consonância com a definição das metas de aprendizagem, elaborar posteriormente os programas. Por fim, proceder à distribuição dos tempos necessários à leccionação.
É essencial submeter todas as disciplinas a este escrutínio, mas, de modo particular, a Matemática. A Matemática foi colocada num pedestal que a tem tornado isenta de escrutínio alargado. Sei que esse debate tem existido no seio de alguns professores desta disciplina, mas a Matemática é demasiado importante para que o seu debate seja deixado apenas ao cuidado dos matemáticos — a discussão sobre o lugar que a Matemática deve ocupar no currículo dos ciclos de ensino não é sequer uma discussão matemática.
Contudo, para Nuno Crato, a Educação é uma coisa mais prosaica, resume-se essencialmente a umas contas de mercearia inseridas numa tabela de Excel.
Continua na primeira semana de Janeiro.