Dando continuidade a alguns apontamentos que aqui tenho deixado sobre o modelo de avaliação docente, passo, agora, a fazer algumas observações sobre os descritores da segunda dimensão («Desenvolvimento do Ensino e da Aprendizagem).
O primeiro descritor do nível «Excelente» diz: «O docente evidencia elevado conhecimento científico, pedagógico e didáctico inerente à disciplina/área curricular.»
Um sistema de avaliação, seja ele qual for, tem de ter como primeiro requisito ser exequível na realidade específica em que vai ser aplicado. Um sistema de avaliação que apresente enunciados não operativos tem pouca ou nenhuma serventia. Ora, é recorrente neste modelo de avaliação enunciar-se descritores comportamentais que, a nível do senso comum, parecem pacíficos, mas que, submetidos a um escrutínio um pouco mais detalhado, se revelam desastrosos e incompetentes para a finalidade que têm.
O descritor acima referido é mais um exemplo do que acabei de dizer. Neste descritor, levantam-se dois problemas:
i) Qual é a definição do conceito: «elevado conhecimento científico»? O que se entende por «elevado conhecimento científico»? Qual a fronteira entre um conhecimento científico elevado e um conhecimento científico não elevado? É claro para todos que não é possível avaliar da existência de um conceito sem a sua prévia definição, sem sabermos, com rigor, a que quadro conceptual ele nos reporta. Consequentemente, não é possível pensarmos em avaliar algo se não soubermos definir as fronteiras que distinguem esse algo de outro algo. Ora, não só o conceito de «elevado conhecimento científico» está por definir como não vejo que, no contexto específico em que se processa a avaliação do desempenho docente do ensino não superior, seja possível defini-lo de modo razoável. E não estando este problema resolvido, toda a avaliação que for feita a partir de um vazio conceptual será sempre uma inaceitável brincadeira.
ii) Todavia, vamos fazer de conta que o problema anterior não existe, vamos fazer de conta que todos sabemos o que é um «elevado conhecimento científico». Vamos fazer de conta que só existe um outro problema: no contexto real das nossas escolas e da sua orgânica, de que modo é que os professores podem revelar possuir «elevado conhecimento científico»?
Vamos por partes. Só há dois modos de se evidenciar ser detentor de conhecimento científico: através de texto escrito e/ou através de texto oral.
Comecemos pelo texto oral. Em que circunstâncias pode um professor, através do texto oral, evidenciar «elevado conhecimento científico»? Em que circunstâncias pode um avaliador certificar-se, com fiabilidade, com credibilidade, que um professor possui «elevado conhecimento científico», através do texto oral?
Vejamos a situação do professor que vai ter aulas observadas: pode um professor evidenciar, em duas aulas observadas, um «elevado conhecimento científico»? Não pode, é impossível, em duas aulas, um professor revelar que possui um «elevado conhecimento científico» e é impossível o avaliador avaliar se o professor é detentor desse «elevado conhecimento científico» — recorde-se que estamos a falar de algo que é adjectivado de «elevado» (seja o que for que isso queira dizer, será sempre o nível máximo de algo). A aula não é um lugar adequado para se revelar possuir um «elevado conhecimento científico»; quando muito, na aula, o professor pode e deve revelar um correcto e adequado conhecimento científico para o nível etário dos alunos e para os objectivos do programa disciplinar que está a leccionar. A aula (do ensino básico ou do ensino secundário) não é um local para profundas exposições nem para demonstrações científicas que permitam aquilatar da elevação de um conhecimento.
E os professores que vão ser avaliados no mesmo item, mas que não vão ter qualquer aula observada? Que se faz com eles e com a pretensa avaliação do seu «elevado conhecimento científico»?
Afastada a hipótese, a nível do texto oral, de ser a aula o local destinado à avaliação do elevado conhecimento científico, o que resta? Deverão os professores realizar conferências para apresentar comunicações científicas, de modo a que o avaliador possa avaliar do seu «elevado conhecimento científico»? Para além da excentricidade da ideia (imaginarmos os professores, em fila, a marcar conferências e colóquios para poderem evidenciar os seus conhecimentos), nas escolas grandes ou nos agrupamentos de escolas, todos os dias do ano não seriam suficientes para tanto evento científico. Não sendo isto aceitável nem possível, que deverão os professores fazer para evidenciar o seu «elevado conhecimento científico»? Deverão, em reuniões de departamento, fazer a apresentação de dissertações científicas? Ou em reuniões de grupo? Ou em frente-a-frente, com o avaliador?
Entendamo-nos: onde, quando e em que circunstâncias podem/devem os professores evidenciar, através de texto oral, o seu elevado conhecimento científico?
Vistas as dificuldades de se avaliar, através de texto oral, o «elevado conhecimento científico» de um professor, resta-nos o texto escrito.
Que textos escritos deve o professor elaborar para demonstrar o seu «elevado conhecimento científico»? Escrever livros? Redigir ensaios? Publicar artigos em revistas da especialidade? Fazer um trabalhinho de meia dúzia de páginas sobre um determinado assunto? E depois discuti-lo com o avaliador, de modo a que se possa obstaculizar a tentativa de fraudes do género copy and paste? E quantos livros deve escrever e/ou quantos ensaios deve redigir e/ou quantos artigos deve publicar para que atinja a fronteira do «elevado»? E é apenas a quantidade que conta ou também conta a qualidade da sua produção científica?
Entendamo-nos: se o texto oral levanta os problema que levanta, se o texto escrito suscita as dúvidas que suscita, afinal que pode/deve o professor fazer para demonstrar possuir um «elevado conhecimento científico»? E como é que o avaliador avalia essa elevação do conhecimento científico?
The last but not the least: quem é possuidor de autoridade e de credibilidade científica para avaliar o elevado conhecimento científico de alguém?
Do ponto de vista formal, para que o processo não seja inquinado, logo à partida, é consensual que o avaliador deve ter uma habilitação académica superior ao avaliado — tanto mais que será chamado a avaliar do elevado nível de conhecimento científico do seu avaliado. Isto é consensual, mas não é real. Na realidade, vamos ter milhares de casos de professores licenciados a avaliar professores licenciados e vamos ter muitas centenas de casos de professores com licenciatura a avaliar professores com mestrado e a avaliar professores com doutoramento. A legislação permite-o.
Isto é aceitável? Não é. Isto é impossível de ser aceite.
Todavia, quando não há seriedade nos propósitos, quando o que se pretende, na realidade, é somente montar um gigantesco circo de faz-de-conta que se avalia, então, tudo vale, tudo é permitido. É nisso que estamos.
Do ponto de vista formal, para que o processo não seja inquinado, logo à partida, é consensual que o avaliador deve ter uma habilitação académica superior ao avaliado — tanto mais que será chamado a avaliar do elevado nível de conhecimento científico do seu avaliado. Isto é consensual, mas não é real. Na realidade, vamos ter milhares de casos de professores licenciados a avaliar professores licenciados e vamos ter muitas centenas de casos de professores com licenciatura a avaliar professores com mestrado e a avaliar professores com doutoramento. A legislação permite-o.
Isto é aceitável? Não é. Isto é impossível de ser aceite.
Todavia, quando não há seriedade nos propósitos, quando o que se pretende, na realidade, é somente montar um gigantesco circo de faz-de-conta que se avalia, então, tudo vale, tudo é permitido. É nisso que estamos.