sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Apontamentos sobre o desnorte de uma avaliação - 1

A primeira dimensão sujeita a avaliação do desempenho docente é a designada «Vertente Profissional, Social e Ética» que se divide em 3 domínios. As ferramentas de avaliação do desempenho de um professor nesta vertente, com 3 domínios, são constituídas por 11 indicadores, 5 níveis e 13 descritores.
O Ministério da Educação diz que os indicadores traduzem a «operacionalização do desempenho docente em evidências nos domínios» e que os descritores fazem a descrição pormenorizada do desempenho para clarificar o que deve ser avaliado, a partir dos indicadores.
Assim sendo, daqui decorre uma primeira curiosidade: há um indicador que não é coberto por nenhum dos treze descritores. Ou seja, é definido um indicador, mas não há descritor que o especifique e que possibilite a sua inserção em nenhum dos cinco níveis. O indicador que não tem descritor é este: «Responsabilidade [do professor] na promoção de ambientes de trabalho seguros, exigentes e estimulantes.»
Pode tratar-se de uma involuntária omissão — o que é grave, porque denota falta de responsabilidade — ou de uma incapacidade para elaborar um descritor que abranja aquele indicador — o que é gravíssimo, porque denota não apenas falta de responsabilidade como de competência. Contudo, nenhuma destas hipóteses provoca admiração, sabendo nós qual é a habitual qualidade dos documentos produzidos pelo Ministério da Educação. Mas já haverá razão para admiração se for possível encontrar resposta à pergunta: o que é um «ambiente de trabalho seguro»?! «Ambiente de trabalho seguro» de que ponto de vista? Do ponto de vista do edifício, do mobiliário, do material de trabalho? «Ambiente de trabalho seguro» do ponto de vista da segurança das relações de trabalho: de não agressão física ou verbal? «Ambiente de trabalho seguro» do ponto de vista da segurança do emprego? O que é, exactamente, um «ambiente de trabalho seguro»?
Admitindo, com boa vontade, que será possível esclarecer o conceito,  coloca-se, então, uma outra questão: de que modo, na perspectiva do Ministério da Educação, pode um professor contribuir para um ambiente de trabalho seguro? Intervindo em quê? Fazendo concretamente o quê?

Outro indicador, dos onze acima referidos, é: «Atitude informada e participativa face às políticas educativas». Vou fazer de conta que as expressões «atitude informada» e «atitude participativa» são, tecnicamente, correctas. Na minha opinião, não são, mas adiante.
Este indicador fala, rigorosamente, de quê? «Atitude informada» face à política educativa imagino que deve significar que o professor tem de estar ao corrente das políticas educativas do Ministério da Educação. É algo que, do ponto de vista da saúde mental, não é aconselhável, mas aceita-se. Todavia, a dúvida instala-se quando se pretende entender o que é uma «atitude participativa face às políticas educativas». «Atitude participativa» é sinónimo de atitude colaborativa? Só participam nas políticas educativas aqueles que as apoiam? Ou o livre exercício crítico e de discordância aberta e pública das políticas educativas também se inscreve numa atitude participativa? Se não se inscreve, estamos, objectivamente, perante uma penalização grotesca do direito e do dever profissionais do exercício da crítica; se se inscreve, como é que, na prática, se avalia essa «atitude»? Quais são os critérios? É a qualidade dos argumentos de uns e de outros que é avaliada?  E quem mede a qualidade dessa argumentação? É óbvio que não é disto que o Ministério fala. Fala  sim do empenhamento na concretização dessas políticas, e quem critica essas políticas será penalizado neste indicador.

Um outro indicador é: «Reconhecimento do dever de promoção do desenvolvimento integral de cada aluno». O descritor deste indicador é: «Revela comprometimento na promoção do desenvolvimento integral do aluno» (se for do nível «excelente» ou «muito bom», antepõe-se ao substantivo «comprometimento» o adjectivo «profundo»). Falemos com seriedade e deixemos o repugnante jogo do  faz-de-conta, que está subjacente a esta legislação: quem pode e de que forma se pode avaliar, com propriedade, com objectividade, se um professor está «comprometido na promoção do desenvolvimento integral de um aluno»? Mesmo com duas aulas observadas, como pode isso ser verificado, em relação a «cada» aluno (conforme enuncia o indicador respectivo)? E em relação aos professores que não têm aulas observadas,  por maioria de razão, como pode isso ser verificado? E mesmo que tal fosse possível como é que se distinguia entre o estar «profundamente comprometido» e o estar apenas «comprometido»? Segundo que critérios se avalia o grau de um comprometimento? E como se avalia se o comprometimento  do professor é mesmo com o «desenvolvimento integral»? Onde está a fronteira entre o integral e o não integral?

Estes são alguns breves apontamentos em relação ao modo como o Ministério da Educação concebe a avaliação do desempenho no que diz respeito à primeira dimensão: a vertente profissional, social e ética.
Infelizmente, há muitos mais dislates a denunciar, mas fica para outra altura, que hoje é sexta-feira, a noite já caiu, e, se há vida para além do défice, também há vida para além da avaliação...