sábado, 13 de novembro de 2010

Ao sábado: momento quase filosófico

Acerca dos critérios divinos

«Sem surpresas, a grande maioria das pessoas que acreditam na existência do Céu também acreditam que atravessarão facilmente as Portas do Paraíso. Quarenta e três por cento estão convencidas de que poderão entrar porque "confessaram os seus pecados e aceitaram Jesus Cristo como seu salvador". Quinze por cento acreditam que poderão ter conseguido porque "tentaram obedecer aos Dez Mandamentos" e outros quinze por cento porque "são basicamente boas pessoas". Por fim, um grupo particularmente optimista acredita que irá para o Paraíso porque "Deus ama todas as pessoas e não as deixará perecer".
Quanto aos critérios de admissão inscritos na Bíblia — seja a admissão no Céu, seja a admissão na vida eterna —, tudo depende uma vez mais das pessoas a quem se pergunta. Ao analisar a Bíblia hebraica, os conservadores tendem a realçar a Lei: honra o teu pai e a tua mãe; não te excites muito com a mulher do teu vizinho; come sopa de beterraba, não comas marinada de mexilhões. Os liberais preferem os apelos impetuosos por justiça que abundam nos livros dos profetas. 
As exortações dos profetas não são específicas como a Lei, mas há quem diga que são ainda mais difíceis de cumprir. Essas exortações são ilustradas na perfeição pelo profeta Miqueias: "Já te foi revelado, ó homem, o que é bom, o que o Senhor requer de ti: nada mais do que praticares a  justiça, amares a lealdade e andares humildementee diante do teu Deus."
Quanto ao Novo Testamento, os seguidores da velha guarda realçam os adágios mais prescritivos de Jesus e de São Paulo — por exemplo, não ao divórcio —, ao passo que os liberais apontam o facto de tanto Jesus como São Paulo parecerem muito mais interessados no espírito da lei do que na sua forma. Por exemplo, quando um advogado do século I quer saber como alcançar a vida eterna, Jesus diz-lhe para amar a Deus com todo o seu coração, alma, mente e força, e para amar o próximo como a si mesmo. Aqui não há coisas proibidas ou reprováveis.
Para rematar, Jesus diz noutra passagem que de qualquer modo não deveríamos julgar ninguém. [...]
Não obstante, as comunidades cristãs falam muitas vezes como se houvesse um bloco de notas divino e apenas algumas pessoas pudessem entrar nas listas do reitor. E muitos cristãos acreditam que São Pedro — o responsável pelas Portas do Paraíso — foi nomeado para implementar a política de entrada e, como um porteiro num clube da moda, submete o candidato a um interrogatório [...]:
O Céu começou a ficar muito cheio, e por isso são Pedro decidiu aceitar apenas pessoas que tivessem tido um dia muito mau no dia em que tinham morrido. Na primeira manhã da nova política, São Pedro disse ao primeiro hoem da fila:
— Fala-me sobre o dia em que morreste.
O homem disse:
— Oh, foi horrível. Eu tinha a certeza de que a minha mulher andava a enganar-me, por isso voltei mais cedo a casa para poder apanhá-la em flagrante. Revistei o apartamento todo e não consegui encontrar o amante dela em parte alguma. Por acaso, fui à varanda e vi o homem pendurado pelas pontas dos dedos do lado de fora. Entrei, fui buscar um martelo e comecei a bater-lhe nas mãos. Ele caiu, mas aterrou nuns arbustos e sobreviveu. Fui para dentro, peguei no frigorífico e empurrei-o até à varanda. O frigorífico esmagou-o, mas o esforço provocou-me um ataque cardíaco e morri.
São Pedro não podia negar que tinha sido um dia horrível e um crime passional, por isso deixou o homem entrar no céu. Depois, perguntou ao homem seguinte como tinha sido o dia da sua morte.
— Bem, senhor, foi horrível. Eu estava a fazer aeróbica na varanda do meu apartamento quando escorreguei e caí. Consegui segurar-me na varanda do apartamento do andar de baixo, mas depois apareceu um doido e começou a martelar-me os dedos! Caí, mas aterrei nuns arbustos e sobrevivi! E depois o tipo veio novamente à varanda e atirou o frigorífico para cima de mim! E foi isso que me matou!
São Pedro riu-se à socapa e deixou-o entrar no céu.
— Fala-me sobre o dia em que morreste — pediu ao terceiro homem.
— Eu não sei. Eu estava nu, escondido num frigorífico...»
Thomas Cathcart, Daniel Klein, Heidegger e um Hipopótamo Chegam às Portas do Paraíso, pp.141-146 (Adaptado).