sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Apontamentos sobre o desnorte de uma avaliação - 2

Prosseguindo nos apontamentos sobre o desnorte da actual avaliação dos professores, proponho que continuemos debruçados sobre primeira dimensão — «Vertente profissional, social e ética» — dos Padrões de Desempenho Docente. 
Para além dos indicadores já referidos, na semana passada, encontramos um outro cujo enunciado é o seguinte: «Responsabilidade na valorização dos diferentes saberes e culturas dos alunos.» Este indicador tem um conteúdo dúbio. Mas, para além deste indicador ser dúbio no seu verdadeiro significado, nenhum dos descritores o esclarece nem a ele se refere.  Se o objectivo do descritor é descrever de modo mais concreto e pormenorizado o que o indicador indica, então não podem existir indicadores que não sejam abrangidos por descritores. Mas é o que acontece repetidamente neste modelo de avaliação. Ora, tecnicamente, isto é inaceitável. Nesta dimensão, por exemplo, que tem a designação de «Vertente profissional, social e ética,» existem onze indicadores, todavia os descritores do nível «Excelente» só abrangem nove desses indicadores, e digo nove com muito boa vontade e grande elasticidade interpretativa. Ficam, pois, no mínimo, dois indicadores de fora («Responsabilidade no dever de promoção de ambientes de trabalho seguros, exigentes e estimulantes» e «Responsabilidade na valorização dos diferentes saberes e culturas dos alunos»). Estes dois indicadores não são para avaliar? Se não são, que estão lá a fazer?
Acresce a isto o facto de o conteúdo de alguns descritores ser tão genérico que não descreve nada em concreto, como lhe competiria fazer, segundo a lógica e a fundamentação teórica que antecede os quadros dos indicadores e dos descritores.

Mas regressemos agora ao indicador acima referido: «Responsabilidade na valorização dos diferentes saberes e culturas dos alunos.» Rigorosamente, o que significa «valorizar os diferentes saberes e culturas dos alunos»? Significa que o professor deve dar valor a todo e qualquer saber, que deve dar valor a todo e qualquer elemento cultural que os alunos revelem? E deve fazê-lo acriticamente? Atendendo ao modo como está enunciado o indicador, parece ser isto que se pretende. Ora isto é consensualmente inaceitável.  Pode, por exemplo, um professor valorizar a prática cultural da excisão feminina? Prática que não existe apenas nas longínquas terras africanas, existe também em Portugal, trazida por imigrantes de algumas das nossas ex-colónias e já denunciada publicamente  por várias instituições. Pode um professor valorizar a prática cultural de subserviência da mulher em relação ao homem, presente em várias comunidades muçulmanas existentes no nosso país? Pode um professor valorizar a prática cultural do «chefe de família», concepção ainda prevalecente em várias das nossas regiões? Os exemplos poderiam ser muitos.
Todavia, se não é acriticamente que essa valorização deve ser feita, quais são os critérios que devem conduzir o professor na crítica desses saberes e dessas culturas que os alunos trazem? Esses critérios são definidos por quem? Pelo professor? Nesse caso, segundo que critérios é que o avaliador vai avaliar os critérios desse professor no exercício crítico dos saberes e das culturas dos seus alunos? E esse exercício crítico feito pelo professor  não pode configurar uma desvalorização desses saberes e culturas dos alunos? Se configura uma desvalorização, o professor deve ser penalizado por isso, por não proceder à «valorização dos diferentes saberes e culturas dos seus alunos.»?

Finalmente, e para além do acima exposto, como é que se avalia, em duas aulas observadas, se um professor valoriza ou não valoriza os saberes e a cultura dos seus alunos? E como é que se avalia, sem aulas observadas, se um professor valoriza ou não valoriza os saberes e a cultura dos seus alunos?
Não conheço nenhuma resposta séria a nenhuma destas questões. Já as formulei em vários sítios e a várias interlocutores, alguns dos quais defensores desta avaliação. Obtive como resposta o silêncio ou o evasivo e repetitivo discurso de «na altura, logo se resolverá». É esta irresponsabilidade que preside e sustenta esta mentira avaliativa.
Para a semana, procurarei deixar mais alguns apontamentos sobre este assunto.