Na minha opinião, um dos principais problemas da Iniciativa Novas Oportunidades — em particular, dos cursos EFA — é o de assentar numa construção teórica autodeslumbrada, sem capacidade de auto-escrutínio e, simultaneamente, muito afastada da realidade. Escrevi, num dos textos anteriores, que o discurso presente em quase todos os documentos que procuram fundamentar teoricamente este projecto é um discurso que parece desenvolver-se em roda livre, ou seja, é um discurso que, imbuído de um elevado deslumbramento por si próprio e explanando-se em girândola argumentativa, não se auto-avalia e facilmente se afasta da realidade sobre a qual pretende agir.
Vejamos alguns exemplos.
Na página 43, do Guia de Operacionalização dos Cursos de Educação e Formação de Adultos, lê-se: «A complexidade deste modelo formativo obriga a um grande domínio dos referenciais de formação, tanto da formação de base como da formação tecnológica, numa lógica de entendimento abrangente do percurso formativo. [...] Dar respostas pedagógicas adequadas, no âmbito dos cursos EFA, é pois um desafio imenso para as equipas pedagógicas que terão a seu cargo a função de operacionalizar o modelo de formação, ajustando as suas práticas a cada grupo e, por vezes, a cada formando.»
Começo por registar o aparente reconhecimento da «complexidade do modelo formativo». Todavia, este reconhecimento não produz consequências, não é propedêutico em relação a nada, porque dele não se retiram quaisquer ilações. Provavelmente porque o termo «complexidade» é aqui utilizado para enfatizar o virtuosismo do modelo, pretensamente porque o modelo terá uma complexidade adequada à complexidade do ser humano... Todavia, em educação, como em outros domínios, a fronteira entre uma suposta «complexidade» e um efectivo «emaranhamento labiríntico» é muito ténue, e, com facilidade, aquilo que nós designamos de «complexo» não passa afinal de um eufemismo, que se reporta normalmente a uma realidade «embrulhada em si mesma».
Noto ainda um outro reconhecimento: «Dar respostas pedagógicas adequadas, no âmbito dos cursos EFA, é um desafio imenso para as equipas pedagógicas». Eu acrescento que, conforme o modelo conceptualmente está delineado, não se trata apenas de um «desafio imenso», trata-se, se me for permitida alguma ironia, de um desafio homérico. São várias as razões porque utilizo esta ironia — tentarei, no que a seguir digo e em textos posteriores, justificá-la e ilustrá-la.
Começo pelo que é dito sobre a constituição da equipa pedagógica (vou referir-me somente aos designados mediadores e formadores, deixando de lado a figura do tutor, que é uma figura que pode incluir a equipa pedagógica, quando existe formação prática em contexto de trabalho):
«Qualquer que seja a metodologia que se adopte na construção e desenvolvimento curricular de um curso EFA, implica que todos os elementos da equipa pedagógica tenham:
- Conhecimento dos formandos que constituem o curso, no que diz respeito ao seu percurso social, profissional e escolar, às suas motivações para a aprendizagem naquele momento específico da sua vida, aos seus modos e ritmos de aprender e às dinâmicas que estabelecem quando estão em grupos de trabalho.»
Pressupondo que o texto não foi elaborado com a intenção de causar boa impressão a leigos, procuremos atentar na sua substância. Assim, é suposto ou exigido que os formadores conheçam — com propriedade e não superficialmente, como é óbvio — sobre cada um dos formandos, o seguinte:
1. O seu percurso social; 2. O seu percurso profissional; 3. O seu percurso escolar; 4. As suas motivações para querer aprender; 5. Os seus modos de aprender; 6. Os seus ritmos de aprendizagem; 7. As suas dinâmicas quando trabalha em grupo.
Se um formador tiver cinco grupos de formandos (mas pode ter mais), com vinte e cinco elementos cada, significa que deverá conhecer o percurso social, profissional e escolar, assim como as motivações, os modos de aprender, os ritmos de aprendizagem e as dinâmicas de cento e vinte e cinco pessoas. Ora, recolher e trabalhar de modo competente — repito: de modo competente — informações precisas sobre cada um destes sete itens, relativamente a cento e vinte e cinco pessoas, seria, na realidade, um trabalho que poderia caber na categoria de homérico. Todavia, o irrealismo destas indicações atinge o absurdo, se tivermos presente que vários formandos frequentam só uma UFCD (Unidade de Formação de Curta Duração), cuja duração é apenas de 50 horas. Isto é, quando se começam a conhecer os seus modos de aprender, os seus ritmos de aprendizagem e as suas dinâmicas de trabalho em grupo, esses formandos estão de saída.
Na próxima semana, procurarei desenvolver um pouco mais este ponto, que, no fundo, se refere ao irrealismo e à desadequação de que este modelo enferma, a diferentes níveis.