No texto da semana passada, procurei fazer uma aproximação (seguindo o mais fielmente possível o Guia de Operacionalização dos Cursos de Educação e Formação de Adultos) ao interior labiríntico do mundo dos cursos EFA - nível secundário. Vimos, a esse propósito, muitas siglas, muitas designações, muitas interações, muitas relações, muitas interdependências. Hoje vamos tentar aproximar-nos do que se passa a nível do trabalho directo com os designados formandos, isto é, proponho uma breve incursão em alguns conteúdos de formação e em alguns dos designados resultados de aprendizagem, que os formandos supostamente deverão alcançar.
Para cada unidade de formação de curta duração (UFCD), com 50 horas, estão definidos quatro resultados de aprendizagem (RA), que os formandos devem atingir, e é pela verificação desses resultados de aprendizagem que se consideram validadas as suas competências.
Vejamos alguns exemplos concretos — antes disso, porém, chamo a atenção para o facto de uma parte significativa dos designados formandos do nível secundário ainda revelar dificuldades no domínio do português básico. Agora sim os exemplos.
Na UFCD 4, de CLC, ou seja, na unidade de formação de curta duração n.º 4, de Cidadania, Língua e Comunicação, estão enunciados (como em todas as UFCD) quatro resultados de aprendizagem. Detenhamo-nos no conteúdo de um desses resultados de aprendizagem, para podermos saber de que estamos a falar: «[O formando] compreende e aplica os princípios de funcionamento dos sistemas monetários e financeiros, enquanto elementos de configuração cultural e comunicacional das sociedades actuais». Este é um dos resultados de aprendizagem que se espera que os formandos sejam capazes de obter.
Recordo o que disse dois parágrafos acima: uma parte significativa dos formandos do nível secundário ainda revela dificuldades no domínio do português básico. Contudo, apesar da realidade do público alvo ser esta, enuncia-se como resultado de aprendizagem que os formandos, ao fim de 50 horas, sejam capazes de compreender os princípios de funcionamento dos sistemas monetários e financeiros; que sejam capazes de compreender esses princípios como elementos de configuração cultural e comunicacional das sociedades actuais e que, para além disso, também sejam capazes de aplicar tais princípios.
Foi com perplexidade que li este resultado de aprendizagem, e foi com preocupação que não pude deixar de pensar o quão distante da realidade está quem definiu e previu esta aprendizagem. Na verdade, parece não existir a mais leve noção do que se pede e a quem se pede.
Foi com perplexidade que li este resultado de aprendizagem, e foi com preocupação que não pude deixar de pensar o quão distante da realidade está quem definiu e previu esta aprendizagem. Na verdade, parece não existir a mais leve noção do que se pede e a quem se pede.
Todavia, a minha perplexidade não ficou por aqui. Quando iniciei a leitura dos conteúdos desta mesma UFCD, a perplexidade voltou. Alguns exemplos desses conteúdos:
A influência da Cultura nos modelos de organização, orçamentação e gestão financeira
— Dimensão económica da Cultura e da Arte. Propósitos dos investimentos financeiros (públicos e privados) na Arte, Cultura e Lazer. Papel das instituições no desenvolvimento de estratégias de sustentabilidade financeira das actividades culturais— Paradigmas organizacionais das empresas e instituições e suas implicações na comunicação nas/entre as organizações. Vectores de percepção de uma cultura do rigor, cultura de cooperação, cultura de ambição, cultura de participação, cultura de inovação - consequências nas necessidades e características da comunicação— Vivência egotista e em diferido, ou vivência partilhada e em tempo real: uma opção macro-estrutural de gestão da comunidade global
Paro aqui, para não maçar, e porque estes exemplos são por si suficientemente ilustrativos. Não é pois necessário transcrever os trinta e um enunciados que constituem os conteúdos desta UFCD. O que foi transcrito não carece de grande análise. Parece ser evidente a total desadequação destes enunciados, relativamente à realidade a que se dirigem e aos objectivos definidos. Mesmo que o nível de uma parte significativa dos formandos não fosse tão baixo, estes conteúdos continuariam a ser desadequados. É inaceitável, seja qual for o ponto de vista a partir do qual se proceda ao escrutínio destes enunciados, que haja quem tenha tido a irresponsabilidade de os elaborar e quem tenha tido a ainda maior irresponsabilidade de os validar como documentos oficiais sobre os quais se pretende edificar uma formação massificada de adultos.
Ou a intenção destes documentos é um incompreensível exercício de gongorismos ou o que na realidade é proposto é que os formandos, sem se saber bem como, façam uma incursão na complexa vertente económica da Cultura e da Arte, quer através da análise dos propósitos dos investimentos financeiros, que Estado e empresas privadas realizam nos domínios da Arte, da Cultura e do Lazer; quer através do estudo da actuação das instituições no desenvolvimento de estratégias de sustentabilidade financeira das actividades culturais.
Ou a intenção é propagandear um discurso afectado e vazio de conteúdo ou o que na realidade é proposto é que os formandos, sem se saber bem como, façam uma análise dos diferentes modelos organizacionais das empresas e instituições e uma análise das implicações de cada um desses modelos a nível da comunicação interna e externa das empresas.
Ou a intenção é apenas dar vazão público a um discurso arrebicado ou o que na realidade é proposto é que os formandos façam, sem se saber bem como, uma abordagem do complexo mundo das percepções, neste caso, das percepções culturais do rigor, da cooperação, da ambição, da participação e da inovação.
Fico-me por estas observações, porque vou resistir à tentação de comentar os outros conteúdos acima citados, aqueles que nos reportam para umas «vivências egotistas em diferido», ou para umas «vivências partilhadas em tempo real», ou ainda para uma «opção macro-estrutural de gestão da comunidade global».
Seja o que for e como for, estamos sempre perante um desmedido e incompreensível autismo que tem, no mínimo, duas funestas consequência: o de ser um discurso que se descredibiliza a si próprio; e o de ser um discurso que conduz à absoluta desorientação de quem tem a tarefa de concretizar um projecto inconcretizável. O resultado é que, sem referencial credível e com a enorme pressão política e mediática que durante anos os governos de Sócrates realizaram sobre a Iniciativa Novas Oportunidades, estes cursos, em muitos sítios, entraram em roda livre.