Os exames nacionais do 4.º ano começaram hoje.
1. Não vou gastar muitas palavras a comentar a balbúrdia que foi movimentar 107 mil crianças de umas escolas para outras. Vou apenas notar que à deslocação dos milhares de alunos que foram fazer o exame deve ser acrescentada a deslocação de outros milhares de alunos que tiveram de ir fazer visitas de estudo, durante o período em que os seus colegas mais novos prestavam provas, nas salas onde eles deveriam ter aulas, e deve ainda ser acrescentada a não deslocação de uns outros milhares de alunos que tiveram de ficar em casa, porque as visitas de estudo não chegavam para todos, e as suas salas de aula estavam ocupadas com a realização daqueles exames. E na próxima sexta-feira o carrossel vai repetir-se. Curiosamente, esta gigantesca operação que teve custos financeiros passou imune ao argumento da crise, da contenção e da austeridade, que tem justificado todo o tipo de cortes. Como também passou imune ao problema da objectiva desigualdade que foi criada entre os alunos que tiveram de se deslocar para realizar provas e aqueles que não se deslocaram, porque as realizaram nas salas onde diariamente têm as suas aulas.
2. Agora o que importa verdadeiramente saber é a resposta a esta pergunta: o que se ganha realmente com isto? De outro modo: o que ganham realmente as crianças que foram submetidas a estes exames? É isto que é necessário saber.
A esta questão o ministro da Educação respondeu dizendo o seguinte:
i) «Com este exame os alunos cumprem uma etapa crucial»;
ii) «Este exame permite fazer um diagnóstico preciso sobre o 1º ciclo de escolaridade, para identificar áreas em que os alunos tem mais dificuldade e perceber o que podemos fazer para que possam entrar mais bem preparados no 2º ciclo».
A primeira parte da resposta diz o mesmo que nada: o exame constitui o cumprimento de uma etapa crucial para o aluno porquê? O que é que o exame tem substantivamente de crucial para a criança? O que ganha ela com o exame? Era precisamente isto que se pretendia saber. Responder a uma interrogação transformando-a numa afirmação, deixa a interrogação por responder.
A segunda parte da resposta assenta numa proposição falsa. Na realidade, se o objectivo é «fazer um diagnóstico preciso», o exame nacional é, comparativamente, um instrumento avaliativo menos fidedigno do que uma prova de aferição. Comparativamente, uma prova de aferição tem maiores possibilidades de fazer um diagnóstico mais preciso, mais real das aprendizagens e das dificuldades dos alunos. É a prova de aferição que, não tendo associada a si nenhuma pressão nem nenhuma preparação especiais — ao contrário dos exames, que conduzem a focalizações/sobrevalorizações de conteúdos e de aprendizagens e a restrições pedagógicas e didácticas alegadamente mais eficazes para a obtenção de melhores resultados em provas desta natureza — pode diagnosticar com maior aproximação o que realmente os alunos aprenderam e as dificuldades que evidenciam. Comparativamente, a prova de aferição produz resultados mais honestos e deste modo mais significativos para a regulação do sistema.
Portanto, se o verdadeiro objectivo é a realização, como diz Nuno Crato, de um diagnóstico preciso sobre o 1.º ciclo de escolaridade, então deveria ter investido o seu tempo e o dinheiro dos portugueses em melhorar as provas de aferição, para se poder aproximar desse objectivo. E aí, sim, com proveito colectivo, poupávamos na despesa e no espalhafato.
3. Lamentavelmente, o problema é outro: aquilo que move Crato e muitos dos seus apoiantes é uma crença ideológica — em alguns casos, é mesmo um fanatismo ideológico assente em grosseiras banalidades que ouvimos e lemos repetidamente: «É preciso preparar a criança desde muito cedo para a vida»; «É preciso ela saber que vai fazer muitos exames no futuro, e quanto mais cedo se habituar melhor»; «A criança tem de aprender a viver com o stress, senão torna-se uma inadaptada»; «Não lhe faz mal nenhum sentir o nervoso miudinho, nem um bocadinho de ansiedade»; «Ah pois é, assim é que elas aprendem»; etc. A este engarrafamento de trivialidades, juntam-se outras proposições pretensamente mais «sérias»: «Os exames representam uma escola exigente»; «Os exames são um sinal de rigor», etc.
Se os exames fossem sinónimo de exigência e de rigor, eu estaria aqui a defendê-los convictamente. Na verdade, não dou mas também não recebo lições de rigor e de exigência. Combato diariamente, com os meus alunos, o facilitismo, o «desenrascanço» e o «chico-espertismo», prática muito difundida entre nós e, como se sabe, com adeptos ao mais elevado nível.
Se houvesse estudos sérios que demonstrassem existir, com a realização de exames nacionais no 4.º ano de escolaridade, ganhos objectivos na qualidade das aprendizagens dos alunos e na qualidade da sua preparação e formação para a vida, eu estaria aqui a defendê-los. Mas estudos credíveis que façam essa demonstração não há, porque uma coisa é demonstrar, outra é fazer uma profissão de fé.
A exigência e o rigor desenvolvem-se com uma Cultura de exigência e de rigor, que tem de começar com os exemplos a virem de cima. Desenvolve-se com uma Cultura de Valores que pressuponha o exercício da exigência e do rigor, em todas as instâncias do Estado. A exigência e o rigor não se desenvolvem através de folclore e de alarde, como está a acontecer com os exames do 4.º ano de escolaridade.
Confundir a forma com a substância é típico da mediocridade, não da exigência e do rigor.