sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Nacos

«O Sr. Napumoceno dedicou saborosas páginas do seu testamento à sua estada naquela ilha e falou do privilégio que fora ter pessoalmente conhecido o distinto Sr. David Ben'Oliel, pessoa de trato fino e dono não só da maior casa comercial da ilha como também de quase todos os botes da vila. Disse do êxtase que lhe causara o luar na areia branca e da festa que fora um baile no Rabil onde o Sr. David era tratado como se fosse um rei. Mas do que ainda sentia uma melancólica saudade era de um violão perdido na praia de João Cristão numa noite de lua cheia e maré tão seca que ele e os seus ilustres anfitriões, Sr. David e D. Bibi, podiam passear sobre a areia dura da maré rasa sem molhar os pés. Aliás, por feliz coincidência, passava igualmente férias na Boa Vista uma irmã da D. Bibi normalmente residente na América do Norte. Vivendo na mesma casa, pois que o Sr. Napumoceno era hóspede dos Ben'Oliel, fora forçoso travarem relações de amizade e na verdade os dois sozinhos passearam as praias da ilha e tiveram longas horas de conversa a sós. Na época o Sr. Napumoceno andaria entre os 45 e os 50 anos e não poderia dizer que não ambicionasse casar, ter família, uma esposa, um lar. E ouvindo aquele violão distante, ele com os pés naquela areia de prata queimada, o mar docemente marulhando perto deles, sentiu que invejava aquele senhor que soubera fugir à confusão das terras distantes e abrigar-se naquela paz de que era rei e senhor, com cemitério familiar exclusivo e capela própria. Mas num momento do passeio e em que D. Jóia falava da América, da constante confusão e azáfama, nem tempo para coçar na cabeça uma pessoa tinha, uma ondinha aproximou-se ameaçando perigosamente os seus sapatos. Rindo alto e em gargalhadas argentinas e chamando à onda de ondinha atrevida, D. Jóia, para não molhar os sapatos, pulou para o Sr. Napumoceno passando-lhe os dois braços pelo pescoço. O Sr. Napumoceno confessaria depois ter aspirado aquele perfume suave e ao mesmo tempo forte para os seus sentidos e cambaleando menos pelo peso dela que por ela sentiu que uma palavra, que felizmente ela não ouviu, lhe escapava da boca. Porque D. Jóia, já entrada nos 40 mas conservando uma juvenil frescura, os seus seios opulentos como que em constante oferta de carícias, podia ser considerada uma senhora bem apetecível, e se fosse modernamente, assim como chamariam a sua atitude para com os pobres de solidariedade, chamariam à D. Jóia de um bom pedaço de fêmea. Mas deteve-o o respeito aos seus anfitriões e apenas no baile que lhe fizeram em despedida no Rabil se atreveu a dizer-lhe, mas lá pelo meio da noite e dançando uma morna, que tinha valido a pena conhecer Boa Vista.»
Germano Almeirda, O Testamento do Sr. Napumoceno da Silva Araújo, Editorial Caminho.