sábado, 25 de junho de 2011

Examinemos o Crato — A opinião de Miguel Reis

O colega Miguel Reis enviou-me este texto por e-mail, que agora publico. 
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Examinemos o Crato

O novo Ministro da Educação (e da Ciência e do Ensino Superior) despreza a escola progressista e as “pedagogias modernas”. Diz que um dos principais problemas da escola portuguesa é a falta de exames. O seu discurso fácil deve ser examinado.
Nuno Crato desconfia dos métodos pedagógicos não directivos e prefere a escola da transmissão de conhecimentos[1]. Eriça-se contra o “eduquês” e deleita-se com os modelos de ensino chinês e japonês[2]. Lembra que primeiro é preciso saber os nomes das capitais e as linhas de caminho de ferro[3] e só depois pensar. Sublinha que a política educativa deve servir para seleccionar e não para incluir[4]. Diz ainda que em Portugal não há exames[5] e que isso é uma pena porque a fazer exames aprende-se mais do que a estudar de forma calma e descontraída[6]. Mais: rejeita a “pedagogia romântica e construtivista” até porque “Rousseau não era um homem das luzes”[7]. Diz que nunca ouviu falar da escola de Summerhill[8], talvez porque prefira a autoridade explícita à “motivação e disciplina interior”[9]. Para Crato “desaprende-se com as ciências da educação”[10] e até nem era mal pensado “implodir o Ministério”[11].
O cardápio de disparates é longo. Mas tudo é dito do alto da cátedra, qual D. Quixote a combater inimigos imaginários. A culpa da falência da escola é a sua contaminação pelos métodos activos, pelas pedagogias não directivas, pelo “aprender a aprender”, pelo ensino “centrado no aluno”, ou pela “aprendizagem por competências”. Ignora Crato que as únicas escolas ou grupos de professores que aprofundaram estes métodos – como a Escola da Ponte[12] ou o Movimento Escola Moderna[13] – obtêm excelentes resultados ao nível da preparação dos alunos. Ignora Crato que na maior parte das salas de aula deste país prevalece ainda o ensino centrado no discurso do professor. Ou talvez não ignore. Talvez pretenda apenas agitar um fantasma que poucas vezes saiu dos sótãos para assim legitimar um regresso ao passado e à matriz conservadora. Mas se queremos uma escola de massas ela não pode ser livresca e directiva, pois assim rapidamente deixará de ser para todos. O projecto de Crato é por isso elitista. 
Compreende-se o equívoco. O livro que popularizou Crato e as suas ideias chama-se “O Eduquês em Discurso Directo: Uma Crítica da Pedagogia Romântica e Construtivista". Ora, se Crato se levasse a sério assumiria que a Pedagogia Romântica e Construtivista nunca passou, salvo honrosas excepções, disso mesmo, de discurso directo. “Eduquês” foi a palavra utilizada pela primeira vez por Marçal Grilo para criticar o discurso hermético dos documentos do Ministério da Educação, uma reacção contra o ininteligível. Em boa verdade é até uma crítica justa. A pedagogia, em vez de passar para as salas de aula, passava apenas para os papéis com uma linguagem muitas vezes anti-pedagógica porque nada queria dizer. Naturalmente, um discurso que não tem nenhuma relação com a prática só pode aparecer aos olhos dos professores como um balão cheio de ar, uma bula incompreensível. Por isso este “eduquês”, sem porta por onde entrar nas salas de aula, transformou-se num “burocratês”, numa parafernália de reuniões, de planos de recuperação, de projectos educativos e projectos curriculares de turma, que raramente têm algum significado para o trabalho de alunos e professores, dada a gritante falta de meios humanos e materiais. Com um corpo docente precarizado, e salas a abarrotar, sem equipas multidisciplinares e apoios educativos que dispensem as explicações privadas, seria difícil esperar a “massificação” da tão necessária “pedagogia moderna”. 
O equívoco ajuda a explicar a popularidade de Crato no seio dos professores. É um discurso que agrada tanto aos adeptos da escola antiga como aos que estão fartos do autoritarismo burocrático que tem passado pelo Ministério. Rodrigues e Alçada deixaram-lhe o terreno fértil. Quiseram fazer do sucesso escolar um desejo estatístico, culparam os professores pelos fracos resultados sem lhes dar os meios. Facilitaram a vida ao discurso anti-“facilitismo”. Colaram o sensato objectivo do fim dos chumbos a uma espécie de atribuição de diplomas à ignorância. Souberam queimar uma ideia e abriram caminho aos espinhos de Crato. 
O pior é que o pensamento do Ministro Independente cola às mil maravilhas com o programa neoliberal da troika e do governo: despedimentos em massa de professores, cortes orçamentais draconianos em cada escola, turmas maiores, menos apoios educativos. Talvez nesta altura os docentes que se deixaram encantar pelo discurso da sereia compreendam o desenho por inteiro. Afinal, a escola autoritária e livresca sempre é mais barata do que a tal escola moderna. É uma escola mais fácil porque será mais elitista. 
Ser exigente não é pedir mais exames, porque eliminar, seriar e avaliar é muito fácil. A dificuldade, a exigência, o combate contra o facilitismo, é a construção de uma escola democrática, de qualidade, de massas, e que dá tudo por tudo para que cada aluno/a cresça, aprenda, saiba, seja, critique, pense. Para este trabalho tão trabalhoso já sabemos que não podemos contar com o esforço e o mérito de Nuno Crato. Nesse exame chumbará por falta de comparência.
Miguel Reis


[1] “A nossa escola deveria assegurar a transmissão de conhecimentos e, às vezes, o que se passa é que, com pretextos muito grandiosos, de criar cidadãos críticos, jovens cientistas, escritores activos, eleitores activos, com esses slogans grandiosos, esquece-se aquilo que é fundamental na escola, que é transmitir conhecimentos básicos.”
[2] “Olhamos para a China ou para o Japão e eles não têm estes problemas. Têm um ensino muito tradicional, por vezes até demasiado no meu entender, mas que funciona (…) Vou-lhe contar uma história que se passou comigo nos EUA, onde vivi muitos anos. Quando fui para lá, como estudante estrangeiro de doutoramento, tive um mês de lavagem ao cérebro por pedagogos modernos. Uma das coisas de que eles queriam convencer-nos era: enquanto nos países de onde nós vínhamos o mestre sabia e o aluno aprendia, ali não, ali todos aprendiam. Recordo um aluno chinês, a olhar para um desses lavadores de cérebros, completamente boquiaberto, e apreensivo, perguntando se ali não eram as pessoas que sabiam que ensinavam as outras...”
[4] “A Ministra disse que a política da educação é para inserção, não é para selecção. Concorda? Não. Se queremos todos os carros a andar à mesma velocidade, só temos uma maneira de o fazer: é fazer com que o BMW ande à velocidade do fiat 600, não conseguimos pôr o fiat 600 à velocidade do BMW”
[8] Idem. Para conhecer esta escola consulte o seu site: http://pt.wikipedia.org/wiki/Summerhill_School
[9] “A ideia também de que tudo vem da motivação, de que toda a disciplina deve ser interior, de que a avaliação não é necessária porque o que interessa é o gosto pelo saber, etc.” http://dererummundi.blogspot.com/2009/01/entrevista-de-nuno-crato-ao-notcias.html
[11] "Acho que o Ministério da Educação deveria quase que ser implodido, devia desaparecer, devia-se criar uma coisa muito mais simples, que não tivesse a Educação como pertença mas tivesse a Educação como missão, uma missão reguladora muito genérica e que sobretudo promovesse a avaliação do que se está a passar." http://www.agencia.ecclesia.pt/cgi-bin/noticia.pl?id=84407
[13] http://www.movimentoescolamoderna.pt/


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Comentário:
Este texto de Miguel Reis é crítico e certeiro relativamente a alguns elementos do discurso de Nuno Crato, nomeadamente, afirmações que revelam uma significativa ignorância sobre aspectos elementares do sistema educativo, dos processos de ensino-aprendizagem, da avaliação, etc. — a que eu próprio também já fiz algumas referências no post «Notas breves e introdutórias acerca do novo ministro da Educação»; contudo, é acrítico relativamente às designadas pedagogias «modernas» — das quais o «eduquês/burocratês» emanado do M.E. é filho directo ou indirecto, e que, do meu ponto de vista, tanto mal tem feito à Educação em Portugal. 
Mas, acima de tudo, é um bom (pre)texto para debate, e agradeço ao Miguel Reis a iniciativa de mo ter enviado.