quarta-feira, 29 de junho de 2011

Dois pontos de vista sobre a não revogação

O desenlace que se adivinha relativamente ao actual modelo de (pseudo) avaliação do desempenho docente (ou seja, o Governo não revogar a legislação que o sustenta, e permitir que ele chegue ao fim, em Dezembro) é surpreendente?
É e não é. Depende do ponto de vista.
Se partirmos do ponto de vista da seriedade política, é surpreendente. Surpreendente e sórdido. Pode-se procurar virar o problema de pernas para o ar, de pernas para baixo ou para o lado, que não se encontra — dentro da seriedade política — uma razão que possa justificar a mudança radical de posição do PSD. O que era verdade há três meses não pode ser mentira hoje. A indistinção entre verdade e mentira poderá ser normal no domínio dos futebóis, mas não pode ser normal no domínio da política. Fazer política não é dar uns pontapés na bola, fazer política interfere com a vida de milhões de pessoas, por isso, o seu exercício não pode ser leviano nem pouco sério.
Ora a justificação (que se lê e ouve) de que agora não é adequado revogar o actual modelo de (pseudo) avaliação — porque o processo está no fim, e a sua revogação seria faltar ao respeito aos professores, já que implicaria anular o trabalho realizado — é, justamente, um exemplo de leviandade e de falta de seriedade, na política.
Vejamos.
1. O processo não está no fim: falta meio ano para ser concluído — só em Dezembro se encerra. (Aliás, em muitas escolas, o tempo que falta é superior ao tempo que até agora foi efectivamente dedicado ao processo pseudo-avaliativo). E o que falta para concluir o processo não é pouco importante, pelo contrário: será neste período que se  formalizará a gigantesca mentira, a incomensurável farsa, a que os professores têm estado sujeitos. Na realidade, do ponto de vista formal, o pior ainda está para vir.
Até aqui, viveu-se no faz-de-conta que se é avaliador e que se é avaliado — o que, só por si, já é grave e deontologicamente indigno; mas, a partir de agora, vai ter lugar a formalização do faz-de-conta, através da atribuição de classificações. Isto é, a encenação e a mentira avaliativas vão ser traduzidas em números, vão ser quantificadas e formalizadas, e, deste modo, a encenação e a mentira passarão a ter consequências na vida profissional de milhares de professores.
Não revogar é ser conivente e é validar esta encenação e esta mentira avaliativas.

2. É uma encenação e uma mentira avaliativas por duas razões de todos conhecidas:
i) Porque o modelo é tecnicamente incompetente e inexequível, numa palavra, ou, melhor, nas palavras de Passo Coelho: é um processo monstruoso e kafkiano.
Não revogar é, pois, ser conivente e é validar um processo monstruoso e kafkiano;
ii) Porque, mesmo que o processo não fosse incompetente (e mesmo que não fosse um processo kafkiano), ele seria sempre (e é) uma gigantesca farsa: mais de 90% dos professores que exercem a função de avaliadores não tiveram nem têm qualquer formação ou preparação para o exercício dessa função. E a maioria dos professores que está a cumprir esta função fá-lo por uma única razão: porque foi feita a ameaça de processos disciplinares.
Não revogar é validar esta farsa avaliativa e é ser conivente com esta indignidade profissional.

3. Dias antes das eleições, o PSD votou a revogação do processo (pseudo) avaliativo. Com esse acto e com os discursos então proferidos, expressou com absoluta clareza a sua total oposição a esse processo. Durante a campanha eleitoral não anunciou que tivesse mudado de posição. Pelo contrário, reafirmou publicamente essas posições, quer pela palavra escrita, quer pela palavra oral: foi através da palavra escrita que o líder do PSD classificou a avaliação do desempenho docente como um «caso revoltante» (in prefácio de O Ensino Passado a Limpo, de Santana Castilho, p. 9); foi através da palavra oral que o líder do PSD, quer na apresentação pública desse livro, quer em entrevistas, quer em discursos de campanha eleitoral, repetidamente chamou de kafkiana essa avaliação.
Deste modo, não é sério que, após contados os votos, se proceda de forma inversa à que anteriormente se anunciou. Um homem de palavra, como Passos Coelho diz ser, não se comporta assim. Assim comporta-se Sócrates.
Não revogar é, pois, faltar à palavra.

Conclusão.
Se nos colocarmos do ponto de vista da seriedade política, a não revogação do modelo (pseudo) avaliativo é surpreendente. Repito: surpreendente e sórdida.
Se nos colocarmos do ponto de vista da falta de coragem política, da falta de palavra, da falta de consistência na fundamentação das ideias, do ponto de vista do oportunismo e da trapaça política, a não revogação não é surpreendente nem é sórdida. É normal.