Falsa certeza n.º 10: A crise permitiu finalmente avançar para um governo económico e uma verdadeira solidariedade europeia.
A partir de meados de 2009 os mercados financeiros começaram a especular com as dívidas dos países europeus. Globalmente, a forte subida das dívidas e dos défices públicos à escala mundial não provocou (pelo menos ainda) uma subida das taxas de juro de longo prazo: os operadores financeiros estimam que os bancos centrais manterão, por muito tempo, as taxas de juro reais a um nível próximo do zero, e que não existe um risco de inflação nem de incumprimento de pagamento por parte de um grande país. Mas os especuladores aperceberam-se das falhas de organização da zona euro. Enquanto que os governantes de outros países desenvolvidos podem sempre financiar-se junto do seu Banco Central, os países da zona euro renunciaram a essa possibilidade, passando a depender totalmente dos mercados para financiar os seus défices. [...]
As instâncias europeias e os governos demoraram a reagir, não querendo dar a ideia de que os países membros tinham direito a dispor de um apoio ilimitado dos seus parceiros, e pretendendo, ao mesmo tempo, sancionar a Grécia, culpada por ter mascarado – com a ajuda da Goldman Sachs – a amplitude dos seus défices. Porém, em Maio de 2010, o BCE e os países membros foram forçados a criar com urgência um Fundo de Estabilização, capaz de indicar aos mercados que seria dado um apoio sem limites aos países ameaçados. Em contrapartida, estes deveriam anunciar programas de austeridade orçamental sem precedentes, que os condenam a um recuo da actividade económica no curto prazo e a um longo período de recessão. [...]
Contudo, globalmente, a oferta não é de nenhum modo excessiva na Europa. A situação das finanças públicas é melhor do que a dos Estados Unidos ou da Grã-Bretanha, deixando margens de manobra orçamental. É por isso necessário reabsorver os desequilíbrios de forma coordenada: os países excedentários do Norte e do centro da Europa devem encetar políticas expansionistas (com o aumento dos salários e das prestações sociais), tendo em vista compensar as políticas restritivas dos países do Sul. Globalmente, a política orçamental não deve ser restritiva na zona euro, tanto mais que a economia europeia não se aproxima do pleno emprego a uma velocidade satisfatória.
Mas, infelizmente, os defensores das políticas orçamentais automáticas e restritivas encontram-se hoje em posição reforçada na Europa. [...] Aqueles que aceitaram apoiar financeiramente os países do Sul querem impor [...] um endurecimento do Pacto de Estabilidade. A Comissão e a Alemanha pretendem obrigar todos os países membros a inscrever o objectivo de equilíbrio orçamental nas suas constituições e vigiar as suas políticas orçamentais por comissões de peritos independentes. A Comissão quer impor aos países uma longa cura de austeridade para que se regresse a uma dívida pública inferior a 60% do PIB. Se existe algum avanço em matéria de governo económico europeu, é um avanço em direcção a um governo que, em vez de libertar o garrote das finanças, pretende impor a austeridade e aprofundar as "reformas" estruturais, em detrimento das solidariedades sociais em cada país e entre os diversos países.
A crise oferece de mão beijada, às elites financeiras e aos tecnocratas europeus, a tentação de pôr em prática a "estratégia do choque", tirando proveito da crise para radicalizar a agenda neoliberal. Mas esta política tem poucas hipóteses de sucesso, uma vez que:
— A diminuição das despesas públicas comprometerá o esforço necessário, à escala europeia, para assegurar despesas futuras (investigação, educação, prestações familiares), apoiar a manutenção da indústria europeia e para investir nos sectores do futuro (economia verde);
— A crise permitirá impor reduções drásticas nas despesas sociais, objectivo incansavelmente perseguido pelos paladinos do neoliberalismo, comprometendo perigosamente a coesão social, reduzindo a procura efectiva, empurrando as famílias a poupar para as suas reformas e a sua saúde junto das instituições financeiras, responsáveis pela crise;
— Os governos e as instâncias europeias recusam-se a estruturar a harmonização fiscal, que permitiria um necessário aumento de impostos sobre o sector financeiro, sobre o património e sobre os altos rendimentos;
[...]
Para avançar no sentido de um verdadeiro governo económico e de uma verdadeira solidariedade europeia, propomos para discussão duas medidas:
Medida n.º 21: Desenvolver uma verdadeira fiscalidade europeia (taxa de carbono, imposto sobre os lucros, etc.) e um verdadeiro orçamento europeu, que favoreçam a convergência das economias para uma maior equidade nas condições de acesso aos serviços públicos e serviços sociais nos diferentes Estados membros, com base nas melhores experiências e modelos;
Medida n.º 22: Lançar um vasto plano europeu, financiado por subscrição pública a taxas de juro reduzidas mas com garantia, e/ou através da emissão monetária do BCE, tendo em vista encetar a reconversão ecológica da economia europeia.
Adaptado de Courrier internacional, n.º 177 e do blogue Luis Nassif Online.