Tópico 2 - Avaliação como meio de premiação do mérito (continuação)
No post da semana passada, fiz, a partir de um consensualizado conceito de mérito, que os dicionários consagram, algumas observações acerca da dificuldade/impossibilidade do mérito docente ser avaliado de modo credível, fiável e universal.
No post da semana passada, fiz, a partir de um consensualizado conceito de mérito, que os dicionários consagram, algumas observações acerca da dificuldade/impossibilidade do mérito docente ser avaliado de modo credível, fiável e universal.
Hoje proponho que, independentemente das dificuldades/impossibilidades técnicas relativas à definição e à avaliação do mérito de um professor, se faça uma breve incursão ao próprio conceito.
A acção de promover uma sociedade meritocrática, isto é, uma sociedade que tem como uma das suas principais metas a promoção e a premiação do mérito, é apresentada, no meio de outras razões, como um imperativo da ordem da moralidade: incentivar e premiar o mérito surge como uma acção indubitavelmente justa e inquestionavelmente boa. Daí se retira, como consequência natural, que a avaliação do desempenho, neste caso, docente, deve estar fundada neste pressuposto: é necessário e justo incentivar e premiar o mérito.
Aparentemente, este pressuposto é óbvio. Mas, na minha opinião, apenas aparentemente.
No séc. XVIII, Kant defendeu que, no domínio da moral, o verdadeiro mérito consistia no cumprimento do dever pelo dever, isto é, no cumprimento do dever de forma desinteressada — cumprimos um dever apenas por uma razão, porque o consideramos isso mesmo: um dever.
Se cumprirmos um dever a pensar na recompensa que daí possa advir, essa acção, para Kant, já não é meritória. É certo, acrescentava ele, que se cumpre na mesma o dever, mas esse cumprimento já não tem mérito, porque aqui não é verdadeiramente o cumprimento do dever que nos move, mas sim aquilo que interesseiramente poderemos ganhar com esse cumprimento (bens materiais, honrarias, etc.).
Socorro-me deste filósofo, não porque seja um defensor da moralidade kantiana, mas porque, neste estrito domínio do dever, considero particularmente pertinentes vários passos do seu pensamento e potenciadores de uma reflexão séria sobre os conceitos de dever e de mérito.
Penso, seguindo, neste ponto, Kant, ser de muito duvidosa sustentação moral instituirmos um sistema (seja ele de que natureza for) assente no pressuposto de que quem cumpre o dever deve ser premiado. Este pressuposto não só subverte a noção de dever, como leva à sua degradação. (E, consequentemente, inquina a relação que, depois, se tem de estabelecer entre deveres e direitos — o que é um tema igualmente interessante, mas que não é o assunto deste post).
Independentemente do desenvolvimento que este filósofo dá a esta matéria, há aqui um elemento que me parece de particular relevância, e que é: para haver mérito, aquilo que fazemos (cumprir o nosso dever) tem de ser feito como um fim em si mesmo e não como um meio para atingir um fim. Ora, esta cultura de dever e de mérito tem consequências nos padrões de comportamento cívico e profissional: uma coisa é agir por dever, pelo respeito que se tem a esse dever, e outra coisa, bem diferente, é cumprir um dever que está associado ao recebimento de um prémio.
Em Portugal, não existe uma cultura de dever e de mérito dissociados da premiação, mas ela existe em países do norte da Europa. Provavelmente, um dos factores que explica um certo nosso comportamento desleixado, por vezes pouco exigente connosco próprios e com os outros, outras vezes pouco assertivo, é a ausência deste elemento cultural. Todavia, a assimilação desta cultura, de modo a que haja uma duradoira melhoria dos nossos desempenhos enquanto cidadãos e/ou enquanto profissionais, não se alcança pela cultura do «prémio». A cultura do «prémio» não se pode constituir como um princípio ético sobre o qual assenta a moral social. Essa cultura já conduziu, por exemplo, algumas sociedades a premiar com dinheiro os alunos que não faltam às aulas, isto é: por cumprirem o seu dever de assiduidade, os alunos recebem um prémio monetário. Assim se desenvolve uma completa e perigosa inversão de valores.
A cultura do «prémio» deve, pois, ser comutada por uma cultura da responsabilidade/dever. A cultura em que o «fazer bem» é assumido como um dever de cada um, sem direito a prémio.
Neste sentido, os sistemas de avaliação do desempenho não devem ser pensados para premiar o mérito, como explicitamente o enuncia o actual modelo de avaliação docente e como enfaticamente o discurso político o publicita.
Neste sentido, os sistemas de avaliação do desempenho não devem ser pensados para premiar o mérito, como explicitamente o enuncia o actual modelo de avaliação docente e como enfaticamente o discurso político o publicita.
A avaliação dos professores deve ser pensada, isso sim, com a finalidade de melhorar o desempenho docente, de modo a que os alunos possam ter melhores aprendizagens.
Vemos assim que:
i) do ponto de vista técnico — pelas dificuldades/impossibilidades que a definição do mérito e a sua verificabilidade suscitam (cf. post da última semana), associada à impossibilidade de ser definido um paradigma de professor (cf. post da penúltima e antepenúltima semanas) — é isto (melhorar o desempenho) que, na minha opinião, uma avaliação do desempenho docente pode fazer, de modo sério e credível;
ii) do ponto de vista ético/moral, pelas razões acima resumidamente expostas, é isto (melhorar o desempenho) que, na minha opinião, uma avaliação do desempenho deve fazer.
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ii) do ponto de vista ético/moral, pelas razões acima resumidamente expostas, é isto (melhorar o desempenho) que, na minha opinião, uma avaliação do desempenho deve fazer.
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