Tópico 2 - Avaliação como meio de premiação do mérito.
O actual modelo define como um objectivo da avaliação docente a premiação do mérito. Penso que isso é um erro.Vou tentar explicar porque penso assim.
Começo por uma observação geral.
Enunciar que o mérito deve ser universal e formalmente reconhecido e premiado voltou a ser moda. Ciclicamente, como todas as modas, a ideia de premiar o mérito regressa, dissemina-se, apropria-se das mentes como uma evidência e, progressivamente, domina os discursos. Praticamente todos os discursos. Hoje em dia, a propósito de quase tudo, o reconhecimento do mérito é referido, é elogiado, é mitificado. Surge como algo de fundamental, de adquirido, de consensual, de obviamente justo. Em alguns fóruns, tem estatuto de palavra mágica, quer pelo poder de persuasão que revela, quer pelo estatuto de irrefutabilidade que atingiu. Actualmente, quase tudo é justificado à luz do mérito, ou, melhor, à luz do designado justo prémio que deve ser atribuído a quem o manifestar.
A ligeireza e o propósito com que tudo isto é dito e divulgado têm uma consequência: transformam aquilo que idealmente seria um acto de justiça numa fonte de vis tropelias e de satisfação de interesses que nada têm que ver com méritos ou deméritos.
O mérito suscita um problema sério. Não digo que seja um problema idêntico ao problema do «Tempo» enunciado por Agostinho de Hipona: «Se ninguém me perguntar eu sei [o que é o Tempo], se quiser explicar a quem me perguntar, já não sei». Na verdade, o problema do mérito não está na elucidação do conceito, na sua formulação abstracta, está, sim, na sua verificação. Isto é, a dificuldade que o mérito coloca reside na fiabilidade do seu reconhecimento e, consequentemente, da sua premiação.
Vejamos. Uma consulta a dicionários dá mais ou menos este resultado, para o contexto que aqui está em análise: «Mérito – 1. O que torna alguém digno de aprovação ou consideração ou recompensa. 2. Bons serviços prestados.»
O problema não é, pois, a compreensão do conceito. Ele é facilmente inteligível e não projecta sombras interpretativas. A questão que se coloca é a de saber se é possível apurar, de forma universalizada, ou seja, independentemente da natureza da actividade, aquilo que «torna alguém digno de aprovação ou consideração ou recompensa», aquilo que define um «bom serviço prestado». O problema está no apuramento do aquilo. E este problema é omitido, sempre que nos é proposta a universalização do reconhecimento formal do mérito — proposta que nos é apresentada como uma inquestionável evidência de inquestionável aplicação. Daqui parte, depois, a propagação da ideia de uma sociedade meritocrática, a sociedade que seria idealmente justa, que premiaria quem o merece. Todavia, e muito curiosamente, «meritocracia» é uma palavra que não existe em nenhum dos cinco dicionários da língua portuguesa (feitos por portugueses), que consultei, nem mesmo no mais recente, o da Academia das Ciências de Lisboa. Só o dicionário elaborado pelo brasileiro Antônio Houaiss possui a entrada: Meritocracia – 1. Predomínio numa sociedade, organização, grupo, etc. Daqueles que têm mais méritos (os mais trabalhadores, os mais dedicados, os mais dotados intelectualmente). 2. Sistema de recompensa e/ou promoção fundamentado no mérito pessoal.
Mas regressemos ao ponto: como se apura aquilo que torna alguém digno de recompensa? Ou seja: como se apura o mérito?
Em algumas actividades será relativamente fácil apurar esse mérito, refiro-me a actividades que têm por único objectivo alcançar resultados exclusivamente quantitativos e em que só isso importe — ex.: venda de materiais, fabrico de peças, aquisição de produtos, a maioria das actividades desportivas, etc. Nestes casos, é possível apurar o mérito com objectividade, desde que, repito, se considere que o mérito reside apenas nas quantidades alcançadas: número de vendas ou lucro proporcionado pelas vendas; número de peças produzidas; poupança na aquisição de produtos; número de vitórias obtidas, número de recordes alcançados, etc.
Ainda que não seja exactamente assim, vamos aceitar que, em actividades básicas que visam alcançar resultados quantitativos, o mérito é facilmente apurado e, como consequência, facilmente reconhecido e premiado (eu não chamaria a isto mérito, mas adiante). Porém, se observarmos outras actividades que igualmente têm como objectivo último alcançar resultados quantitativos, mas que já envolvem componentes de natureza qualitativa, a avaliação do mérito é profundamente alterada, ou, melhor, deveria ser profundamente alterada. Um exemplo: um presidente de um conselho de administração de uma grande empresa cujos resultados nos últimos dois anos ultrapassaram todas os objectivos enunciados e que, no ranking da sua actividade, é a mais cotada e a mais lucrativa é um gestor com mérito? Do ponto de vista quantitativo, é, objectivamente. Deve-lhe ser reconhecido o seu mérito? Deve. Deve ser premiado? Deve.
Acrescente-se, agora, a seguinte informação: nesses dois anos, nessa mesma empresa, 35 trabalhadores suicidaram-se, pelas condições de trabalho que lhes foram impostas pela gestão. Continuamos a considerar que o presidente do conselho de administração deve ser premiado? Continuamos a considerar que lhe deve ser reconhecido mérito? Ele é um gestor com mérito? Apesar de ainda estarmos situados apenas no domínio de uma actividade centrada na obtenção de resultados quantitativos, a introdução de elementos qualitativos (neste caso, a vida humana) altera profundamente os critérios de avaliação do mérito e a dificuldade do seu apuramento aumenta significativamente.
Se sairmos do domínio das actividades centradas na obtenção de resultados quantitativos e entrarmos em actividades de natureza essencialmente qualitativa, o problema do reconhecimento e da premiação do mérito agrava-se muito mais. É o caso da actividade educativa.
De forma breve: o acto de educar é, em primeiro lugar, uma acto relacional — professor-aluno — em que o aluno não é um meio para atingir um fim (como acontece na relação vendedor-cliente, em que o cliente é o meio para o vendedor atingir o fim, que é a venda do produto). O aluno é um fim em si mesmo, não é um ponto intermédio. O acto de educar, enquanto relação entre seres humanos, é de natureza qualitativa, não é susceptível de quantificação. Contar aprovações e reprovações, obter médias de classificações, fazer gráficos estatísticos, são quantificações úteis, mas muito incompetentes para traduzir a qualidade do trabalho desenvolvido pelo professor. Não traduzem, não medem, não avaliam o seu mérito.
Qualquer professor sabe isto. Muitos alunos sabem isto. Em particular, aqueles alunos que em determinado momento do seu percurso escolar tiveram um professor que até os pode ter reprovado, mas que lhes explicou, lhes fez tomar consciência daquilo que não estava bem, lhes fez tomar consciência de que era preciso mudar, e que os levou a mudar e que transformou essa circunstância num ponto de viragem das suas vidas. A relação professor-aluno é muitas vezes de uma riqueza incomensurável e, por isso, não há régua nem esquadro nem calculadora que a meça. Por mais voltas que o mundo dê e por mais que isso custe às cabeças formatadas em Excel, é assim, e felizmente que é assim.
Não é possível determinar de modo objectivo e por método universal o mérito de um professor. É por isso que, como vimos no post anterior (Erros a não repetir - 2), ainda ninguém conseguiu definir o que é um «Bom professor», ainda ninguém elaborou o paradigma de professor.
Um modelo de avaliação docente não pode, pois, enunciar como finalidade reconhecer e premiar o mérito dos professores. Se o fizer está a mentir, está a enganar: professores, alunos, pais, opinião pública. É uma ideia falsa que induz comportamentos desadequados e expectativas infundadas (assunto que procurarei analisar na próxima semana).
Temos de assumir que problemas de natureza diferente não podem ser tratados como se fossem de natureza idêntica. Não podem ser trasladados, acriticamente, objectivos e métodos de avaliação, entre áreas de natureza completamente diversa — como é a importação de metodologias de avaliação do âmbito empresarial para o âmbito educativo. É uma tentação fazê-lo, mas é perigoso, desadequado e injusto. Temos pois de ter cuidado, muita parcimónia, muita reserva quando falamos de mérito, em contexto educativo.
A avaliação docente não pode enunciar como um dos seus objectivos premiar o mérito, porque não o consegue fazer, de modo sério, fiável e credível. A avaliação deve apresentar como sua primeira finalidade contribuir para a melhoria do desempenho docente, melhoria da qualidade do processo de ensino-aprendizagem. E se o conseguir fazer, já está a fazer muito e está a fazer o principal.
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