O presente modelo de avaliação do desempenho docente enferma de múltiplos erros que se revelam quer a nível técnico quer a nível de concepção. Vários destes erros são, contudo, derivados de um problema anterior que os precede e que não foi, segundo parece, objecto de devida reflexão, por parte dos responsáveis do Ministério da Educação. Isto é, parece não ter havido grande preocupação em responder à pergunta: a nível do desempenho docente, que domínios e que práticas podem, com um mínimo de fiabilidade, ser objecto de avaliação?
Como o tempo dedicado a esta pergunta parece ter sido escasso, ficou por determinar a fronteira entre o que é e o que não é susceptível de ser avaliado. Esta indeterminação teve a consequência prática de se pretender avaliar tudo o que o delírio ou a obsessão avaliativa quiseram. É certamente por esta razão que, desde expressões que apontam para «alguma preocupação» até outras que requerem «profundidade de comprometimento», de tudo encontramos no meio da parafernália de indicadores e descritores que compõem o modelo de avaliação. Os seus autores definiram o perfil do que entendem ser um professor modelar, listaram-lhe as características e transformaram essa características em descritores pretensamente objectivos. Ou seja: idealizaram o (seu) professor e assumiram, ainda que sem fundamento, que o idealizável é avaliável.
Adicionalmente, confiaram, sem escrutínio e sem contextualização, na teoria avaliativa que defende o seguinte preceito: perante um objecto complexo, devem ser introduzidas múltiplas variáveis de modo a que, pelo cruzamento dessa variedade de factores, o resultado final global seja, estatisticamente, aproximado da realidade. Deste modo, mecanicamente e sem parcimónia, foram semeados pelo modelo os conhecidos 11 domínios de avaliação, os 39 indicadores e os 72 descritores. O problema é que, quando a quase totalidade das variáveis introduzidas apenas pode ser aferida a «olhómetro», ou por suposição, ou por palpite, os erros avaliativos têm um efeito multiplicador e o resultado final é um produto acumulado de inúmeros juízos incorrectos.
Este problema atravessa o modelo e inquina-o de uma ponta a outra.
Mas prossigamos a análise da segunda dimensão (iniciada em «Apontamentos sobre o desnorte de uma avaliação - 8»). O terceiro descritor do nível «Excelente» diz: «[O professor] promove consistentemente a articulação com outras disciplinas e áreas curriculares e a planificação conjunta com pares.»
Todos sabemos que alguns advérbios avaliativos são de objectivação particularmente difícil ou mesmo impossível. Apesar disso, os autores deste modelo de avaliação não se inibiram de os aplicar: são múltiplos os descritores com este tipo de advérbios. Este descritor é mais um exemplo. «Consistentemente» é um advérbio que nos obriga, novamente, a perguntar pelo modo de determinar a fronteira entre o «consistente» e o «não consiste». Que critério vai o avaliador utilizar para definir essa fronteira? Existe critério que ele possa utilizar e que não seja de formulação arbitrária? Se existe, qual é? Até hoje, ele não foi revelado. E se o avaliador não tiver um critério para definir essa fronteira, nunca poderá saber se um professor promove «consistentemente» isto ou aquilo.
O quarto descritor do nível «Excelente» enuncia: «[O professor] concebe e aplica estratégias de ensino adequadas às necessidades dos alunos e comunica com rigor e elevada eficácia.»
Este quarto descritor encavalita-se parcialmente no conteúdo do segundo descritor do mesmo nível. Não se compreende que aconteça, mas acontece.
Todavia o problema maior não está aqui. Está no seguinte: o descritor correspondente a este, mas respeitante ao nível «Muito Bom», prescreve: «[O professor] concebe e aplica estratégias de ensino adequadas às necessidades dos alunos e comunica com rigor e eficácia.» Isto é, desaparece o termo «elevada». O que deverá significar que um professor «Muito Bom» comunica com rigor e com eficácia, mas não com elevada eficácia. Já aqui voltaremos. Vejamos agora o que diz o descritor para o nível Bom: «[O professor] procura adequar as estratégias de ensino às necessidades dos alunos e comunica com rigor.» Aqui, introduz-se o «procura adequar» e faz-se desaparecer a «eficácia».
Avançando por partes:
1. Se, nestes descritores, a diferença entre um professor «Excelente» e um professor «Muito Bom» reside no facto de um comunicar com «elevada eficácia» e o outro comunicar apenas com «eficácia», isto pressupõe afirmar que é possível determinar, com clareza, a diferença entre uma eficácia «elevada» e um eficácia «não elevada». Todavia, não chega pressupor uma possibilidade, é necessário demonstrar que ela existe. É preciso demonstrar como se opera essa destrinça. É preciso mostrar qual é o critério de avaliação que o avaliador pode utilizar, de modo fiável, para determinar se uma comunicação é feita com «elevada» eficácia ou não. Sem a definição do critério, tudo que for feito é leviano e irresponsável.
2. Para além disto, como poderia ser aferida, em apenas duas aulas, a suposta elevada eficácia? Que instrumentos sérios existem que possibilitem essa medição? Quais são?
3. Por fim, o caricato. Com o descritor do nível «Bom», ficamos a saber duas coisas:
a) Para os autores deste modelo de avaliação um «Bom» professor não precisa de adequar as estratégias de ensino às necessidade dos alunos, a um Bom professor basta «procurar adequar». Pode nunca o conseguir, mas desde que procure é considerado um Bom professor;
b) Para os autores deste modelo de avaliação um «Bom» professor é aquele que comunica com rigor, mas sem eficácia. Pergunta óbvia: em contexto educativo, porque é conveniente não esquecer que é deste contexto que estamos a falar, para que serve uma comunicação rigorosa, se for ineficaz?
Tentar, à força e sem bom senso, construir um modelo de avaliação dá nisto: um rol infindável de incongruências e de dislates.
Ligações a posts anteriores relativos a este assunto:
. Acerca da simplicidade de um modelo de avaliação e da seriedade da sua concretização
. Apontamentos sobre o desnorte de uma avaliação - 1
. Apontamentos sobre o desnorte de uma avaliação - 2
. Apontamentos sobre o desnorte de uma avaliação - 3
. Apontamentos sobre o desnorte de uma avaliação - 4
. Apontamentos sobre o desnorte de uma avaliação - 5
. Apontamentos sobre o desnorte de uma avaliação - 6
. Apontamentos sobre o desnorte de uma avaliação - 7
. Apontamentos sobre o desnorte de uma avaliação - 8
Como o tempo dedicado a esta pergunta parece ter sido escasso, ficou por determinar a fronteira entre o que é e o que não é susceptível de ser avaliado. Esta indeterminação teve a consequência prática de se pretender avaliar tudo o que o delírio ou a obsessão avaliativa quiseram. É certamente por esta razão que, desde expressões que apontam para «alguma preocupação» até outras que requerem «profundidade de comprometimento», de tudo encontramos no meio da parafernália de indicadores e descritores que compõem o modelo de avaliação. Os seus autores definiram o perfil do que entendem ser um professor modelar, listaram-lhe as características e transformaram essa características em descritores pretensamente objectivos. Ou seja: idealizaram o (seu) professor e assumiram, ainda que sem fundamento, que o idealizável é avaliável.
Adicionalmente, confiaram, sem escrutínio e sem contextualização, na teoria avaliativa que defende o seguinte preceito: perante um objecto complexo, devem ser introduzidas múltiplas variáveis de modo a que, pelo cruzamento dessa variedade de factores, o resultado final global seja, estatisticamente, aproximado da realidade. Deste modo, mecanicamente e sem parcimónia, foram semeados pelo modelo os conhecidos 11 domínios de avaliação, os 39 indicadores e os 72 descritores. O problema é que, quando a quase totalidade das variáveis introduzidas apenas pode ser aferida a «olhómetro», ou por suposição, ou por palpite, os erros avaliativos têm um efeito multiplicador e o resultado final é um produto acumulado de inúmeros juízos incorrectos.
Este problema atravessa o modelo e inquina-o de uma ponta a outra.
Mas prossigamos a análise da segunda dimensão (iniciada em «Apontamentos sobre o desnorte de uma avaliação - 8»). O terceiro descritor do nível «Excelente» diz: «[O professor] promove consistentemente a articulação com outras disciplinas e áreas curriculares e a planificação conjunta com pares.»
Todos sabemos que alguns advérbios avaliativos são de objectivação particularmente difícil ou mesmo impossível. Apesar disso, os autores deste modelo de avaliação não se inibiram de os aplicar: são múltiplos os descritores com este tipo de advérbios. Este descritor é mais um exemplo. «Consistentemente» é um advérbio que nos obriga, novamente, a perguntar pelo modo de determinar a fronteira entre o «consistente» e o «não consiste». Que critério vai o avaliador utilizar para definir essa fronteira? Existe critério que ele possa utilizar e que não seja de formulação arbitrária? Se existe, qual é? Até hoje, ele não foi revelado. E se o avaliador não tiver um critério para definir essa fronteira, nunca poderá saber se um professor promove «consistentemente» isto ou aquilo.
O quarto descritor do nível «Excelente» enuncia: «[O professor] concebe e aplica estratégias de ensino adequadas às necessidades dos alunos e comunica com rigor e elevada eficácia.»
Este quarto descritor encavalita-se parcialmente no conteúdo do segundo descritor do mesmo nível. Não se compreende que aconteça, mas acontece.
Todavia o problema maior não está aqui. Está no seguinte: o descritor correspondente a este, mas respeitante ao nível «Muito Bom», prescreve: «[O professor] concebe e aplica estratégias de ensino adequadas às necessidades dos alunos e comunica com rigor e eficácia.» Isto é, desaparece o termo «elevada». O que deverá significar que um professor «Muito Bom» comunica com rigor e com eficácia, mas não com elevada eficácia. Já aqui voltaremos. Vejamos agora o que diz o descritor para o nível Bom: «[O professor] procura adequar as estratégias de ensino às necessidades dos alunos e comunica com rigor.» Aqui, introduz-se o «procura adequar» e faz-se desaparecer a «eficácia».
Avançando por partes:
1. Se, nestes descritores, a diferença entre um professor «Excelente» e um professor «Muito Bom» reside no facto de um comunicar com «elevada eficácia» e o outro comunicar apenas com «eficácia», isto pressupõe afirmar que é possível determinar, com clareza, a diferença entre uma eficácia «elevada» e um eficácia «não elevada». Todavia, não chega pressupor uma possibilidade, é necessário demonstrar que ela existe. É preciso demonstrar como se opera essa destrinça. É preciso mostrar qual é o critério de avaliação que o avaliador pode utilizar, de modo fiável, para determinar se uma comunicação é feita com «elevada» eficácia ou não. Sem a definição do critério, tudo que for feito é leviano e irresponsável.
2. Para além disto, como poderia ser aferida, em apenas duas aulas, a suposta elevada eficácia? Que instrumentos sérios existem que possibilitem essa medição? Quais são?
3. Por fim, o caricato. Com o descritor do nível «Bom», ficamos a saber duas coisas:
a) Para os autores deste modelo de avaliação um «Bom» professor não precisa de adequar as estratégias de ensino às necessidade dos alunos, a um Bom professor basta «procurar adequar». Pode nunca o conseguir, mas desde que procure é considerado um Bom professor;
b) Para os autores deste modelo de avaliação um «Bom» professor é aquele que comunica com rigor, mas sem eficácia. Pergunta óbvia: em contexto educativo, porque é conveniente não esquecer que é deste contexto que estamos a falar, para que serve uma comunicação rigorosa, se for ineficaz?
Tentar, à força e sem bom senso, construir um modelo de avaliação dá nisto: um rol infindável de incongruências e de dislates.
Ligações a posts anteriores relativos a este assunto:
. Acerca da simplicidade de um modelo de avaliação e da seriedade da sua concretização
. Apontamentos sobre o desnorte de uma avaliação - 1
. Apontamentos sobre o desnorte de uma avaliação - 2
. Apontamentos sobre o desnorte de uma avaliação - 3
. Apontamentos sobre o desnorte de uma avaliação - 4
. Apontamentos sobre o desnorte de uma avaliação - 5
. Apontamentos sobre o desnorte de uma avaliação - 6
. Apontamentos sobre o desnorte de uma avaliação - 7
. Apontamentos sobre o desnorte de uma avaliação - 8