A quarta e última dimensão dos Padrões de Desempenho — «Desenvolvimento e formação profissional ao longo da vida» deveria ser, pela substância a que se reporta, relativamente pacífica. Mas a obsessão em realizar uma (pseudo) avaliação atomística — que pretende medir a metro, à força e sem jeito, todo e qualquer movimento, intenção, estado de alma, ou bocejo — conseguiu, até neste domínio da formação contínua, inquinar o processo avaliativo. O fundamentalismo avaliativo tem, manifestamente, várias semelhanças com o fundamentalismo religioso.
Vejamos ao que a ablepsia fundamentalista conduz.
O primeiro descritor do nível «Excelente» enuncia: «O docente toma a iniciativa de desenvolver, de forma sistemática, processos de aquisição e actualização do conhecimento profissional». O que distingue este descritor do primeiro descritor do nível «Muito Bom» é apenas a ausência, neste último, da expressão adverbial «de forma sistemática». A obsessão avaliativa pretende, pois, que se determine uma pretensa filigrana fronteira que distinga entre «tomar a iniciativa de forma sistemática» e «tomar a iniciativa» de forma não sistemática. E porque não há forma séria de fazer objectivar essa diferenciação, o grotesco e a arbitrariedade vão ser dominantes nos (pretensos) critérios de diferenciação entre o sistemático e o não sistemático que cada escola, ou departamento, ou relator vierem a estabelecer. E no momento em que se começarem a fazer comparações nacionais entre os critérios estabelecidos, o grotesco e a arbitrariedade serão de tal monta que a vergonha não será apenas local, será também nacional.
Mas a cegueira fundamentalista continua.
A destrinça entre o primeiro descritor do nível «Muito Bom» e o descritor do nível «Bom» reside no seguinte: o professor «Muito Bom» «toma a iniciativa de desenvolver processos de [...]»; o professor «Bom» «desenvolve processos de [...]».
À primeira vista, poder-se-ia ter a ideia de que o descritor do nível «Bom» se refere a quem apenas cumpre as acções de formação legalmente obrigatórias, distinguindo-se, assim, do nível «Muito Bom» em que o professor, por sua iniciativa, desenvolveria outros processos de formação contínua. Todavia, o descritor do nível «Regular» desfaz-nos logo essa ideia, porque, de modo claro, diz: «O docente participa em processos de actualização do conhecimento profissional apenas quando formalmente exigido». Isto é, aquilo que se pensaria ser respeitante ao nível «Bom», afinal é para o nível «Regular.» Deste modo, ficamos sem saber concretamente a que se refere o nível «Bom», que não seja passível de confusão com nível «Muito Bom». Estes dois níveis, na prática, distinguem-se como?
Simultaneamente, uma outra questão se levanta: a legislação obriga a que cada professor frequente, no mínimo, 50 horas de formação em cada biénio. Ora, o nível «Bom» é o nível classificativo mínimo exigido para que o professor não fique sujeito a possíveis penalizações. Mas, como acabamos de ver, quem cumprir o que a lei determina é penalizado com a classificação de «Regular». Neste indicador, só quem faça mais do que a legislação exige é que pode ascender ao nível Bom/Muito Bom (refiro os dois, porque, como vimos, a diferenciação entre um e outro ainda está por esclarecer...). Portanto, quem cumprir a lei é penalizado!
Mas as extravagâncias e as incongruências não encerram aqui. Continuam e agravam-se! Para terminarmos, por hoje, vejamos o absurdo a que o fundamentalismo avaliativo chega. Comparemos o conteúdo dos descritores dos níveis «Regular» e «Insuficiente».
Relembremos o «Regular»:«O docente participa em processos de actualização do conhecimento profissional apenas quando formalmente exigido».
Vejamos agora o «Insuficiente» (o nível classificativo mais baixo): «O docente não revela interesse em actualizar o seu conhecimento profissional, fazendo-o apenas quando formalmente exigido.»
Onde está a diferença? A diferença está em «revelar interesse» ou em «não revelar interesse»!!
O caricato desta situação é tão explícito que torna o comentário difícil e provavelmente inútil. Por isso, finalizo apenas com um desabafo: para além extravagância que é pretender avaliar emoções, e para além da aberração legal e ética que é pretender penalizar alguém que cumpre a lei (porque ambos os descritores enunciam que os professores cumprem o formalmente exigido), como é possível que haja gente que ainda pretende instituir uma penalização suplementar para quem cumpra a lei, mas que o faça sem revelar que tal cumprimento é feito com «interesse»?!
Confesso que não imaginei vir um dia a ler semelhante coisa.
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