É notória a desigualdade em que se desenvolve o confronto de ideias entre os que defendem o actual statu quo social e os que procuram alternativas a este nosso modo de viver. O facto é que, como todos sabemos, a liberdade, só por si, não garante condições de igualdade num debate. Para que isso acontecesse, seria necessário que os vários intervenientes tivessem idêntico acesso aos meios de comunicação social. Ora não sendo esta prerrogativa algo que se possa alcançar por decreto, e sendo óbvio que a grande maioria dos opinantes dos meios de comunicação social assume a defesa do statu quo, temos, como consequência, o terreno de jogo claramente inclinado a favor de uma das partes. Deste modo, aquilo que é apenas uma opinião, aquilo que é apenas uma leitura da realidade assume, junto do auditório, o estatuto de verdade, o estatuto de evidência, atendendo ao número quase esmagador daqueles que opinam em prol da manutenção do actual modo de vida.
Isto é de tal forma assim que, neste momento, é possível ver proferidas, com assinalável naturalidade, afirmações que de natural nada têm, e ver, com idêntica naturalidade, essas afirmações não serem submetidas a exame crítico.
São múltiplos os exemplos que ocorrem diariamente. Recordo-me de um recente. Ricardo Espírito Santo (RES) disse, há dias, algo que, não sendo uma tese nova, perturba pela facilidade com que foi dito e aceite (exceptuando, que eu conheça, uma breve crítica de Nicolau Santos, no Expresso). Disse o banqueiro: «o sistema capitalista é amoral, tem de produzir resultados.»
Certamente, não foi intenção de RES intrometer-se no debate filosófico em torno da possibilidade do amoralismo — questão antiga e filosoficamente já não muito atractiva. RES pretendia, com certeza, uma coisa mais simples: genericamente, afirmar que o sistema capitalista não deve ser objecto de juízo moral, e, particularmente, justificar por que razão é aceitável que as empresas fujam legalmente a pagar impostos (como foi recentemente o caso da PT, da qual o BES é accionista de referência).
Isto é, o capitalismo deveria ficar isento de escrutínio moral, porque esse não é o terreno em que ele se move. Ninguém deveria dirigir críticas morais ao sistema e aos seus agentes e só pelos resultados eles poderiam ser julgados. Assim, o capitalismo viveria e perduraria numa espécie de limbo amoral. Para o sistema capitalista, isso seria óptimo, e, para RES, em particular e enquanto banqueiro, seria provavelmente magnífico.
Mas se não pode ser criticado do ponto de vista moral, de que ponto de vista poderá o capitalismo ser criticado? De que ponto de vista, verdadeiramente pertinente para a sociedade, poderá o capitalismo ser criticado, sem que esse ponto de vista não comporte, em si, juízos morais?
É possível sustentar que os sistemas económicos são moralmente neutros? Isto é, os fundamentos em que assentam e os resultados que produzem, para a sociedade, não têm de ser julgados, entre outros, do ponto de vista moral? A legitimação (ou não legitimação) do lucro não tem de ter, entre outras, uma justificação moral? A legitimação (ou não legitimação) da propriedade privada não tem de ter, entre outras, uma fundamentação moral?
Pretender separar a actividade económica da moral é o mesmo que pretender separar a intenção da acção humana. Ou seja, não é possível. A actividade económica é uma actividade humana e, como tal, tem associada a ela uma intenção, e essa intenção pressupõe necessariamente juízos de valor morais: quer relativamente ao modo como achamos bem viver em conjunto, quer relativamente ao tipo de relações comerciais que achamos bem desenvolver, quer relativamente às regras sociais que achamos bem estabelecer, etc. Da moral/ética social não há modo de fugir.
Compreende-se, contudo, que se pretenda isentar o sistema capitalista da avaliação moral. Isso possibilitaria duas coisas: possibilitaria incluí-lo na categoria dos objectos e/ou dos acontecimentos naturais, esses sim, desprovidos de moralidade; e, consequentemente, possibilitaria que passássemos a aceitar as regras do sistema capitalista da mesma forma que aceitamos as leis da natureza: isto é, da mesma forma que aceitamos que a Terra gira à volta do Sol, ou que temos de nos alimentar para sobreviver. Deveríamos, deste modo, achar natural, como o cair da chuva, que uma empresa, por exemplo, a France Telecom, exerça uma tal pressão psicológica sobre os seus empregados, que os conduza ao suicídio. Como essa pressão não é ilegal e como moralmente a empresa não deve ser julgada, nada haveria a dizer ou a fazer. Também deveríamos achar natural que as empresas trabalhem com falsos recibos verdes, que explorem a mão-de-obra barata, etc., etc. Como nada disto é ilegal e como moralmente as empresas não podem ser julgadas, nada haveria a dizer ou a fazer.
O curioso é observar que Ricardo Espírito Santo e, como ele, muitos outros sendo, em regra, conservadores do ponto de vista dos costumes, publicamente defensores de elevados valores morais (alicerçados, quase sempre, numa assumida religiosidade) isentem com assinalável facilidade, as actividades que exercem, os processos que utilizam e os extraordinários ganhos que obtêm do exame moral. Exame que, em nome de uma coerência mínima, deveria ser feito à luz desses valores (alguns deles de pretensa inspiração cristã) que a sua moral pessoal e social defendem.
É difícil entender esta estranha contradição: moralmente, tão rígidos, e, economicamente, tão «libertinos». Parecem, pois, existir moralidades que a moralidade desconhece...
Em conclusão, «verdades» como esta, como a de Ricardo Espírito Santo, que têm como objectivo reforçar o statu quo, difundem-se, divulgam-se pela sociedade e entranham-se nas mentes, como se fossem evidências incontornáveis, como se fossem leis da natureza. Mas não o são. São apenas opiniões, algumas das quais muito carentes de boa fundamentação.
Certamente, não foi intenção de RES intrometer-se no debate filosófico em torno da possibilidade do amoralismo — questão antiga e filosoficamente já não muito atractiva. RES pretendia, com certeza, uma coisa mais simples: genericamente, afirmar que o sistema capitalista não deve ser objecto de juízo moral, e, particularmente, justificar por que razão é aceitável que as empresas fujam legalmente a pagar impostos (como foi recentemente o caso da PT, da qual o BES é accionista de referência).
Isto é, o capitalismo deveria ficar isento de escrutínio moral, porque esse não é o terreno em que ele se move. Ninguém deveria dirigir críticas morais ao sistema e aos seus agentes e só pelos resultados eles poderiam ser julgados. Assim, o capitalismo viveria e perduraria numa espécie de limbo amoral. Para o sistema capitalista, isso seria óptimo, e, para RES, em particular e enquanto banqueiro, seria provavelmente magnífico.
Mas se não pode ser criticado do ponto de vista moral, de que ponto de vista poderá o capitalismo ser criticado? De que ponto de vista, verdadeiramente pertinente para a sociedade, poderá o capitalismo ser criticado, sem que esse ponto de vista não comporte, em si, juízos morais?
É possível sustentar que os sistemas económicos são moralmente neutros? Isto é, os fundamentos em que assentam e os resultados que produzem, para a sociedade, não têm de ser julgados, entre outros, do ponto de vista moral? A legitimação (ou não legitimação) do lucro não tem de ter, entre outras, uma justificação moral? A legitimação (ou não legitimação) da propriedade privada não tem de ter, entre outras, uma fundamentação moral?
Pretender separar a actividade económica da moral é o mesmo que pretender separar a intenção da acção humana. Ou seja, não é possível. A actividade económica é uma actividade humana e, como tal, tem associada a ela uma intenção, e essa intenção pressupõe necessariamente juízos de valor morais: quer relativamente ao modo como achamos bem viver em conjunto, quer relativamente ao tipo de relações comerciais que achamos bem desenvolver, quer relativamente às regras sociais que achamos bem estabelecer, etc. Da moral/ética social não há modo de fugir.
Compreende-se, contudo, que se pretenda isentar o sistema capitalista da avaliação moral. Isso possibilitaria duas coisas: possibilitaria incluí-lo na categoria dos objectos e/ou dos acontecimentos naturais, esses sim, desprovidos de moralidade; e, consequentemente, possibilitaria que passássemos a aceitar as regras do sistema capitalista da mesma forma que aceitamos as leis da natureza: isto é, da mesma forma que aceitamos que a Terra gira à volta do Sol, ou que temos de nos alimentar para sobreviver. Deveríamos, deste modo, achar natural, como o cair da chuva, que uma empresa, por exemplo, a France Telecom, exerça uma tal pressão psicológica sobre os seus empregados, que os conduza ao suicídio. Como essa pressão não é ilegal e como moralmente a empresa não deve ser julgada, nada haveria a dizer ou a fazer. Também deveríamos achar natural que as empresas trabalhem com falsos recibos verdes, que explorem a mão-de-obra barata, etc., etc. Como nada disto é ilegal e como moralmente as empresas não podem ser julgadas, nada haveria a dizer ou a fazer.
O curioso é observar que Ricardo Espírito Santo e, como ele, muitos outros sendo, em regra, conservadores do ponto de vista dos costumes, publicamente defensores de elevados valores morais (alicerçados, quase sempre, numa assumida religiosidade) isentem com assinalável facilidade, as actividades que exercem, os processos que utilizam e os extraordinários ganhos que obtêm do exame moral. Exame que, em nome de uma coerência mínima, deveria ser feito à luz desses valores (alguns deles de pretensa inspiração cristã) que a sua moral pessoal e social defendem.
É difícil entender esta estranha contradição: moralmente, tão rígidos, e, economicamente, tão «libertinos». Parecem, pois, existir moralidades que a moralidade desconhece...
Em conclusão, «verdades» como esta, como a de Ricardo Espírito Santo, que têm como objectivo reforçar o statu quo, difundem-se, divulgam-se pela sociedade e entranham-se nas mentes, como se fossem evidências incontornáveis, como se fossem leis da natureza. Mas não o são. São apenas opiniões, algumas das quais muito carentes de boa fundamentação.