«Faz hoje parte do senso comum a ideia de que todos os portugueses, sem excepção, andaram a viver acima das suas possibilidades. [...]
[Esta ideia] não só não é verdadeira, como não é inócua. Ela contribui, intencional ou inadvertidamente, para a aceitação de que é chegada a hora de pagarmos a factura da nossa irresponsabilidade, individual e colectiva. [...]
Embora a dívida das famílias portuguesas seja muito elevada quando medida em percentagem do PIB, o valor do crédito total concedido às famílias portuguesas corresponde a menos de metade do valor médio do crédito concedido na UE (137 967 e 284 842 mil milhões de euros, respectivamente), o que equivale a uma dívida de 12 962 euros per capita (para uma média de 15 455 euros na UE dos 27 países).
O endividamento das famílias portuguesas é o resultado das políticas monetárias e financeiras das duas últimas décadas que promoveram a desregulamentação do sistema financeiro português com vista à criação de uma união monetária entre países muito diferentes, da qual Portugal faz parte desde o início. Assistiu-se desde então à abolição de barreiras legais, o que tornou mais fácil a concessão de crédito por parte das instituições bancárias, e uma intensa inovação financeira que permitiu potenciar o nível de crédito para uma mesma captação de depósitos. [...]
O endividamento está também directamente relacionado com a política habitacional pública, considerando que os empréstimos à habitação representam cerca de 80% do total das dívidas das famílias. Com efeito, a política habitacional concentrou-se quase exclusivamente no apoio à compra ou construção de habitação própria, através de um sistema de crédito bonificado e de um conjunto de incentivos fiscais favoráveis (por exemplo, deduções fiscais das contas poupança habitação). [...] Segundo dados do Eurostat, cerca de 75% de famílias portuguesas são hoje proprietárias da habitação onde residem [...].
Em suma, a evolução da dívida das famílias portuguesas é, em grande medida, o resultado de uma política europeia de liberalização dos mercados monetários e financeiros nacionais, que tornou o crédito mais acessível para a generalidade das famílias europeias, e de uma insuficiente política habitacional nacional, que tornou a aquisição da casa própria com recurso ao crédito a opção viável para uma parte das famílias portuguesas.» [Continua]
Ana Cordeiro Santos, «Temos Vivido Acima das Nossas Possibilidades?», Le Monde Diplomatique - edição portuguesa, n.º 57 (Julho/2011).