sábado, 17 de setembro de 2011

Ao sábado: momento quase filosófico

O problema do ponto de vista

Quando o Egipto estava sob o domínio do terrível tártaro Tamerlão, que era coxo, vesgo, horrivelmente feio e tinha um pé de ferro, mandou este chamar Gohâ [personagem muitas vezes presente nas histórias tradicionais do Egipto, que se caracteriza por ser uma extraordinária mistura de ingenuidade, estupidez e máxima astúcia], de quem tinha ouvido falar. 
Enquanto Tamerlão conversava com Gohâ, o seu barbeiro cortava-lhe o cabelo, mas tanto lhe cortou que acabou por lhe rapar a cabeça. No final, deu um espelho a Tamerlão para ele se ver.
Ao ver-se, Tamerlão pôs-se a chorar. Gohâ também chorou, gemeu e bateu no chão com as mãos durante duas ou três horas. Tamerlão já há muito tempo tinha acabado de chorar. Mas Gohâ continuava a chorar, sem descanso.
Tamerlão perguntou-lhe:
— Mas que tens tu? Eu estou a chorar porque me vi ao espelho desse barbeiro desgraçado e achei-me verdadeiramente feio e horrível. E tu? A que se deve esse mar de lágrimas?
E Gohâ respondeu:
— Qual é o espanto? Tu viste-te ao espelho por um breve instante e choraste durante uma hora. Mas eu, que tenho que olhar para ti o dia inteiro, quanto tempo hei-de chorar?
In Jean-Claude Carrière, Tertúlia de Mentirosos, Teorema [adaptado].