Prometeram um pano novo. Deram-nos o mesmo pano velho e enodoado. Ainda que agora mais remendado.
Afinal eles não sabiam fazer o pano novo. Afinal eles não faziam ideia de como poderia ser feito um pano novo. Afinal eles não sabiam sequer que pano novo queriam.
Hoje olha-se para o trabalho produzido nos últimos dois meses sobre o modelo de avaliação dos professores e facilmente se constata a falta de preparação, a nível de ideias e a nível técnico, do ministro da Educação e do seu staff.
É o preço que se paga por se convidar para ministro quem, no domínio do discurso educativo, nunca tinha ultrapassado, e continua a não ultrapassar, o patamar do senso comum ligeiramente ilustrado.
Sabemos todos que para se construir um modelo de avaliação, seja em que domínio for, existem três perguntas a que é necessário responder: «Avaliar para quê?», «Avaliar o quê?» e «Avaliar como?» (deixo de lado a pergunta «Avaliar porquê?», mais estritamente de natureza filosófica, porque este não é o espaço próprio para o seu desenvolvimento e porque pressuponho que quando alguém decide avaliar já terá certamente pensado na razão que sustenta essa decisão...).
«Avaliar como?» é uma pergunta que evidentemente só pode ser respondida depois de respondidas as duas anteriores, e é uma pergunta essencialmente de natureza técnica.
«Avaliar o quê?», só pode ser respondida depois de respondida a pergunta que logicamente a precede («Avaliar para quê?»), e é uma pergunta de natureza híbrida, simultaneamente política e técnica.
«Avaliar para quê?» é a primeira e fundamental pergunta, e é essencialmente de natureza política (ainda que a sua resposta definitiva também possa ser condicionada por questões de natureza técnica).
Penso, deste modo, que enquanto não se responder séria e fundamentadamente à pergunta «Avaliar para quê?», não sairemos da actual situação: sucessivos modelos que encenam uma avaliação do desempenho dos professores, mas que, de facto, não a realizam. «Avaliar para quê?» é a questão primeira e cuja resposta determina a orientação e a credibilidade do modelo de avaliação que se pretender construir.
Curiosamente, parece haver, no projecto agora em discussão, um progresso na resposta a esta pergunta, mas, na realidade, trata-se de um progresso meramente formal, inconsequente e já desmentido pelo discurso oral do ministro. Refiro-me ao seu Artigo 3.º (Objectivos da avaliação) — Artigo que responde à pergunta «Avaliar para quê?». No conteúdo deste Artigo, finalmente desapareceu (comparando com os Artigos similares dos modelos anteriores) a expressão «reconhecer e premiar o mérito». (Como já tenho afirmado, defendo que a avaliação do desempenho docente não deve ter como objectivo «premiar o mérito», porque tecnicamente não o consegue fazer de modo sério, fiável e credível, e porque eticamente tem a consequência de degradar a cultura do dever e da responsabilidade — fundamentei esta afirmação aqui). Mas a omissão deste objectivo (tão enfatizado, formal e discursivamente, nos modelos anteriores), ocorreu, com toda a certeza, por lapso, porque o restante articulado ignora completamente essa omissão e desenvolve-se como se aquele objectivo lá estivesse, mantendo-se fidelíssimo ao dogmático reconhecimento e premiação do mérito/excelência. Por outro lado, o ministro continua oralmente a afirmar que o mérito deve ser «medalhado». Só pode, pois, ter sido por lapso que aquela expressão desapareceu do Artigo 3.º. E daqui resulta uma dupla desconformidade: o articulado do texto do projecto é incoerente entre si, e também não há coerência entre a oralidade do ministro e o Artigo 3.º do seu projecto.
Deste modo, o remendado projecto de modelo avaliativo enferma da mesma falta de credibilidade dos seus antecessores, porque, ainda que não o assuma explicitamente, está, como os outros estavam, hipotecado à encenação da premiação do mérito. E este é o problema que, enquanto não houver coragem política para o resolver, inquinará sempre o processo avaliativo: é imperioso assumir que o reconhecimento e a premiação do mérito assentam numa impossibilidade técnica, para além de se sustentarem num sofisma ético.
Ainda que com sincero respeito por aqueles colegas que, de forma intelectualmente séria, parecem acreditar na possibilidade dessa premiação fiável e credível do mérito, distancio-me do seu pensamento, porque, como disse, não encontro sustentação técnica para essa crença e porque eticamente discordo dela. Considero mesmo, como se infere do que tenho escrito, um erro grave fazer de conta que este não é o problema fundamental da avaliação do desempenho docente ou que em duas penadas ele pode ser resolvido. Mesmo do ponto de vista exclusivamente técnico, o problema da fiabilidade e da credibilidade da premiação do mérito não fica resolvido apenas porque os avaliadores passam a ser de outra escola. Sinteticamente, por três razões: i) Não é possível ministrar formação séria, de longa duração, a milhares de avaliadores (por limitações temporais e financeiras e até de entidades capacitadas para o fazer); ii) Não é possível avaliar, com seriedade e credibilidade, a excelência científica e pedagógica de um professor através de duas aulas observadas; iii) E, por fim, mas não o menos importante: não existe formulado, com consenso mínimo, o conceito de «excelente professor».
Na minha opinião, como já o afirmei em outros textos, a resposta à pergunta: «Avaliar para quê?», deve ser esta: a avaliação do desempenho dos professores deve visar exclusivamente a melhoria das práticas lectivas, com vista ao desenvolvimento das aprendizagens dos alunos.
Esta avaliação deve estar centrada no Grupo Disciplinar, deve ser realizada em contexto de trabalho colaborativo, ou seja, deve ser realizada segundo as regras de funcionamento das equipas de investigação, com a clara definição de obrigações (horas de trabalho colaborativo a cumprir, relatórios a apresentar, etc.) e com a garantia de condições (horas destinadas a reuniões, horas destinadas a observação recíproca de aulas, etc.).
Este trabalho colaborativo, coordenado por um professor escolhido pelos pares, desenvolvido segundo as regras de funcionamento das equipas de investigação, exige um contínuo escrutínio do trabalho realizado por todos os membros da equipa. Este contínuo escrutínio constitui a forma séria, fiável e credível de gerar a melhoria da prática lectiva dos professores, com vista ao desenvolvimento das aprendizagens dos alunos.
E é isto que verdadeiramente interessa aos professores, aos alunos, aos pais dos alunos e ao país. O resto é folclore e pano velho remendado.
Nota: Esta é a questão que considero ser nuclear. Tentarei, na próxima semana, abordar outros aspectos do projecto de modelo de avaliação apresentado pelo Ministério da Educação.