terça-feira, 20 de setembro de 2011

Nacos

«Numa das visitas em que, vamos lá, o negócio não lhe correu mal de todo, o vendedor das leituras sentiu-se tão apertado com o calor que resolveu fechar a livralhada entre parênteses e foi espairecer para a mata. Já se via de papo para o ar à sombra duma mimosa mas ao passar pelo Bar Quibala deixou-se tentar e entrou. Dias não são dias e muito menos aquele que era o de São Nunca e que nem todos os anos entra no calendário do cidadão avulso. De maneira que: Uma cerveja.
Do lado de cá do balcão estava o gordo do costume, pendurado no charuto nevoento; do outro lado, o Fraca Figura que bem sabemos. Um pouco por toda a parte andava o corvo Vicente, a apanhar ar.
O Johnny ambulante, com o nome bordado no coração, perguntou aos ali presentes se eram servidos. Nenhum era. Em vistas disso bebeu mais uma cerveja à conta ou, antes, duas: uma por cada convidado porque tinha a mania da contabilidade. A seguir mandou vir outra para rebater e mais outra para aliviar e, no crescer da espuma, abriu o parágrafo declarando que se encontrava na nossa pátria por muita infelicidade dele, uma vez que tinha sido marinheiro e conhecia a costa da América desde o tufão ao iceberg. Se a santa velhinha o não tivesse chamado à hora da morte nunca teria encalhado na terra que o viu nascer. Ou ele não se chamasse Johnny, garantiu.
"O que tem de ser tem muita força", disse o gordo encharutado.
"E quando a moral se mete na pessoa, então é que não há nada a fazer. A moral dum filho, se é realmente moral", disse o Johnny português, "não olha a coisa nenhuma." Apontou para o corvo Vicente: "Aquele animal come-se?"»
José Cardoso Pires, O Burro-Em-Pé, pp. 170-171, Leya.