terça-feira, 27 de setembro de 2011

Nacos

«O Fraca Figura ficou sem perceber se tinha ouvido bem. Olhou para o gordo e o gordo olhou para ele mas naquele instante entrou um preto muito catraio com uma caixa de engraxador debaixo do braço. Quase não deu palavra a ninguém porque foi logo agachar-se aos pés do encharutado e começou a dar à escova. Devia ser freguês certo, calculou o vendedor das leituras.
Escova que sacodes, paninho que espanejas, o homem estava de boca aberta com as habilidades do garoto. "Donde é ele?", perguntou ao gordo. "Angola?"
E o gordo, desinteressado:
"São Tomé."
"Conheço mas passei de largo", disse o Johnny. "Tubarões por toda a parte. Que idade tens tu, rapaz?"
"Onze anos."
O Johnny dos Sete Mares assoprou um sorriso desgostoso: "Onze anos." Então contou que aos onze anos, na América, toda a criança preta estava no liceu. "E ainda dizem que isto aqui não é África."
O gordo concordou, com o charuto.
"África e bem África", voltou a dizer o Johnny. "Na América um preto pode ser rico, pobre, o que quiser. O Joe Louis, não vamos mais longe. Pode ser milionário, pode ser artista de cinema, pode ser músico, tudo. E aqui? Aqui a que é que esta criança está destinada? Casa Africana, e é um pau. Engraxador ou mascote da Casa Africana. E é preciso que haja vaga, ainda há mais essa."
Enquanto o Johnny português falava para os dois homens do bar, o miúdo amochava no sapato do africanista. Estendia pomada, dava estalos com o pano para despertar o brilho, era um artista do cabedal apesar da sua pouca idade.
"Nesta nossa desgraçada terra não há meio de se convencerem que o preto é tão inteligente como nós, que se há-de fazer? Mais uma cerveja, tenha paciência."
A partir desta bebida o Johnny português amandou-se todo para a frente num discurso que ainda era mais errante do que os icebergs que tinha conhecido e as leituras que andava a distribuir. "Quantas brancas", perguntava ele às consciências que o ouviam, "quantas brancas, é um exemplo, vê a gente casadas com pretos? Raríssimas. Nenhumas. E é um erro, caraças. Um erro porque assim nunca mais se produz a raça universal."
No travo do arroto espalmou o peso dos anéis em cima do balcão e ficou-se a abanar a cabeça. Estava realmente desiludido com a estupidez do país.
"Ministros, ministros pretos, quantos ministros pretos tivemos nós na nossa história? Quantos juízes de cor? Quantos generais, quantos bispos, vamos lá? Eu sei, eu digo: nicles. Absolutamente nicles. Ao passo que na América houve de tudo. Senadores, banqueiros, ministros, tudo. Até presidentes pretos. Não me lembro em que época, mas houve."
O pequeno engraxador tinha acabado, só esperava que o cliente do charuto lhe pagasse para se pôr a andar.
"E aqui é isto", dizia o Johnny, apontando para ele, com a voz já muito enrolada. "Miséria ou Casa Africana. Aqui quem nasce preto morre preto."
O garoto recebeu o dinheiro e saiu sem fazer ondas. Mas assim que se apanhou na rua estendeu o pescoço para dentro do bar e gritou:
"Preta era a cona da tua mãe."
E pernas para que vos quero.»
José Cardoso Pires, O Burro-em-Pé, pp.171-173, Leya.