segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Comentário de segunda

Sinceramente, penso que talvez haja algo de aproveitável no meio de tudo o que se está a passar à volta da colossal dívida portuguesa e da colossal dívida da Madeira, esta recentemente desocultada. O que pode ser aproveitável é isto: a situação a que se chegou obriga o cidadão a confrontar-se consigo próprio ou, se se preferir, a confrontar-se com as escolhas que faz e com as consequências que essas escolhas acarretam; por outro lado, esta situação traça, de forma nua e crua, um retrato particularmente fiel das nossas elites.
Foi com Sócrates que este confronto do cidadão eleitor consigo próprio começou a ser feito a doer, isto é, começou a fazer doer consciências. Sócrates foi demasiado mau, enquanto protagonista político e enquanto protagonista de políticas. Durante o primeiro mandato, foi reiteradamente prepotente, incompetente e irresponsável. Mas foi reeleito. Ano e meio depois, deixou o país à beira da bancarrota. Deixou-nos de rastos — financeira, economica e moralmente. Até Sócrates, estava generalizado o sentimento de que votar neste ou naquele era mais ou menos a mesma coisa. Depois de Sócrates, ficou bastante mais claro que votar não é um acto inconsequente. E no futuro sê-lo-á cada vez menos. O tempo do «tanto dá: são todos iguais...» terminou. Cada cidadão tem de ser responsabilizado por aquilo que faz no dia das eleições e por aquilo que civicamente faz (ou não faz) no período que medeia duas eleições. A culpa não é apenas «deles» (dos «tipos do poleiro», dos que «querem tacho») é também de quem lá os coloca e de quem se isenta dos deveres de cidadania.
Agora, de modo muito particular, chegou a vez dos madeirenses se confrontarem consigo próprios. Talvez seja melhor dizer de outro modo: deveria ser agora o momento de os madeirenses se confrontarem com as escolhas que têm feito, mas, lamentavelmente, isso é pouco provável que aconteça. Provavelmente, só quando começarem a pagar o preço da leviandade do seu voto — quando começarem a sentir no bolso, e depois na boca, e depois na saúde os resultados da sua escolha — é que perceberão que votar é muito mais do que assinalar ritual e irresponsavelmente uma cruz num quadrado.

Mas o que se está a passar não interpela só os eleitores; o que se está a passar traça um excelente retrato da qualidade das elites que dirigem o país nas diversas áreas: na política, na finança pública e privada, na economia, na comunicação social, etc. O verdadeiro problema não é Jardim, ele é apenas o espelho das nossas elites. 
Na realidade, não é só Jardim que é boçal. A boçalidade não se revela apenas no trato, como é o caso de Jardim, a boçalidade revela-se também nas decisões políticas que se tomam, revela-se no modo como se gere um país, no modo como se gere um banco, no modo como se gere uma empresa. Ora, e ao contrário do retrato público que fazem de si mesmas, as nossa elites são desgraçadamente boçais.
Tome-se como exemplo a nossa elite de banqueiros: Jardim Gonçalves ex-presidente do BCP e vários ex-administradores do mesmo banco foram punidos pelo Banco de Portugal e estão a ser julgados em tribunal; Oliveira e Costa, ex-presidente do BPN esteve preso e está a ser julgado; João Rendeiro, ex-presidente do BPP, vai ser julgado; Armando Vara, ex-vice-presidente do BCP, vai ser julgado; Dias Loureiro, ex-administrador da SLN/BPN, está a ser investigado. Estes são os casos de boçalidade que acabam na polícia. 
Depois temos os casos de boçalidade que, sem serem casos de polícia, levam os bancos à beira da falência e conduzem o país ao sobreendividamento. Ricardo Salgado, do BES, Fernando Ulrich, do BPI, Faria de Oliveira, da CGD, são exemplos de quem incentivou e tudo fez para que famílias e empresas se endividassem sem rei nem roque. Foram eles que promoveram gigantescas campanhas publicitárias a prometerem facilidades para todo o tipo de crédito (habitação, automóvel, pessoal, etc.), e foram eles, conjuntamente com as maiores empresas de construção civil, que mais incentivo prestaram e mais pressão fizeram para que o país gastasse vários milhares de milhões na construção de auto-estradas, de vias rápidas, de viadutos, de túneis, de pontes, de barragens, de TGV, de aeroportos e de tudo o mais que fosse necessário inventar para que desvairadamente se contraíssem empréstimos sobre empréstimos.
Esta não é pois a boçalidade do taberneiro sebento e fanfarrão, que esconde umas facturas na gaveta, esta é uma boçalidade diferente, é a boçalidade da incompetência, mascarada de eficácia, que predomina nas nossas elites e que arruína o país.