É conhecido que o Estado disponibiliza um subsídio a governantes que tenham despesas adicionais de alojamento, decorrentes da circunstância de não possuírem residência na capital (ou num raio de 100 km). Também disponibiliza subsídio semelhante a magistrados, quando o exercício das suas funções ocorre em sítios distanciados das localidades onde habitam.
Em abstracto, a prestação deste subsídio é obviamente justa. O que já não é obviamente justo é este subsídio ser de atribuição selectiva. Na verdade, é incompreensível e inaceitável que umas funções públicas usufruam deste subsídio e outras não, como é o caso da função docente. No Estado, e perante as mesmas circunstâncias, não pode haver dois pesos e duas medidas. Se o Estado tem de exercer as suas funções em todo o território nacional, tem de o fazer segundo as mesmas regras, isto é, se existe um subsídio de alojamento para uns funcionários públicos, tem de existir subsídio de alojamento para todos os funcionários públicos. Se um subsídio é justo para uns, é justo para todos. Se existe uma impossibilidade financeira de universalizar o subsídio, então é essa impossibilidade que tem de ser universalizada e, consequentemente, ninguém tem direito a subsídio.
Desçamos agora ao concreto. Na semana finda, um jornal informou que havia dois membros do Governo — o ministro da Administração Interna, Miguel Macedo, e o secretário de Estado das Comunidades Portuguesas, José Cesário — que, apesar de terem casa em Lisboa, estavam a usufruir desse subsídio de alojamento. Confrontados com o facto, o argumento de defesa utilizado por ambos foi: «é legal, é um direito conferido pela lei» (porque têm uma outra casa fora de Lisboa, e essa é que é a residência oficial...).
Recordo-me que até há pouco tempo era legal um funcionário público reformar-se com 55 anos de idade e 36 de trabalho, com a pensão completa, se daí não resultasse prejuízo para o serviço. Recordo-me que até há pouco tempo era legal um aumento salarial todos os anos. Recordo-me que até há pouco tempo era legal progredir na carreira. Como me recordo que era legal ter direito a receber o vencimento por inteiro e o subsídio de Natal por inteiro (o que deixou de acontecer em 2011). E, para não ser exaustivo, uma última recordação: era legal receber, todos os anos, os subsídios de férias e de Natal.
Era legal, mas vai deixar de o ser. E deixa de o ser porquê? Porque o Governo, a que Miguel Macedo e José Cesário pertencem, decidiu que esses subsídios tinham de terminar, para os funcionários públicos e pensionistas, porque o país está a viver uma grave crise financeira, porque estamos a viver acima das nossas possibilidades e, por conseguinte, torna-se obrigatório cortar nas despesas.
O estranho é um mesmo governante ter considerado que determinados subsídios legais tinham de deixar de o ser, por estarmos a viver acima das nossas possibilidades, e não ter considerado que um determinado subsídio legal, de que ele próprio usufrui, já não devia deixar de o ser, porque... «é legal», e porque, certamente, o problema de estarmos a viver com subsídios acima das nossa possibilidades aplica-se a todos, excepto ao próprio.
Mas a gravidade do comportamento do ministro e do secretário de Estado não é apenas de natureza política, é fundamentalmente de natureza moral, porque eles, consciente e deliberadamente, utilizavam um subterfúgio legal para usufruírem de um subsídio de que, na verdade, não deveriam usufruir. Eles sabem que o facto de terem casa própria em Lisboa os isenta de despesas de aluguer de apartamento ou de quarto de hotel, ao contrário do que acontece com os seus colegas de Governo que, de facto, não têm casa na capital e têm de pagar esses alugueres. Apesar disto, Miguel Macedo e José Cesário recebiam, mensal e tranquilamente, o subsídio como se tivessem essa despesa.
Agora, anunciaram que, a partir de hoje, prescindem de receber esse subsídio. Mas anunciam-no com enfado e como se estivessem prestar um favor ao país.
É esta a elite que os portugueses elegem para seus governantes e a quem, complementarmente, ainda lhes paga subsídios ilegítimos.