«Mas ele, Ramos, não era um homem tranquilo. Inquietavam-no as certezas absolutas mas não sabia como contrariá-las. Aos vinte e um anos uma certeza absoluta é a coisa mais invejável que se pode ter, tal como a superioridade moral, uma camisa sem nódoas, o cabelo penteado, os vincos das calças, uma voz grossa, de tenor. Ele não sabia o que era uma voz de tenor, ligeiramente rouca, nunca tinha ouvido ópera, mas seria de um tenor que fumava Kart, os cigarros que dão quilómetros de prazer. Fontoura nunca repetia o prato às refeições, nunca tomava mais de um café, não ficava acordado até tarde. Jaime Ramos invejava essa disciplina, os sapatos engraxados para os domingos de dispensa de serviço, o pente escondido no bolso de trás das calças, os livros arrumados junto da cama, a caneta Bic Laranja no bolso da camisa branca, a escova de dentes limpa, a superioridade de um homem que raramente bebia mais de duas cervejas e que tinha um ascendente desconhecido sobre os milicianos que chegavam à Guiné para visitar uma guerra de que desconfiavam. Fontoura não desconfiava da guerra. Ao contrário de Ramos, que caíra em combate e passara um mês de baixa, primeiro no hospital, depois arrastando-se pelas duas esplanadas do centro de Bissau, Fontoura era um homem determinado com um horário preciso para as suas tarefas do dia-a-dia: escrever cartas, ler, sentar-se ao canto da parada, no quartel, observando como chegava até ali a luz do crepúsculo. Ele via-o, sentado, ao canto da parada — uma estátua, um perfil iluminado pela luz do crepúsculo, silencioso e superior diante dos seus vinte e um anos e daquela surdez prematura de que só despertava aos domingos, para escutar relatos de futebol na rádio.»
Francisco José Viegas, O Mar em Casablanca, pp. 71-72.