«Eucaliptos e zimbros, cedros, ciprestes, vinhas decepadas ou apenas aguardando a grande nudez do Inverno, giestas adormecidas, e a imagem do rio como um espelho luminoso — havia uma recordação infiel nestas coisas e Jaime Ramos não gostava de sentir pena de si mesmo, não gostava da melancolia. Acendeu uma cigarrilha e abriu um pouco a janela do carro para que o fumo iniciasse a fuga depois da primeira baforada. Muitos anos atrás, vinte talvez, ele percorrera aquelas estradas em busca de um assassino invisível que que matara à beira do rio e abandonara o corpo à podridão do porta-bagagens de um carro. Matar por amor, matar por desfastio, matar para mudar o destino. O seu sentido de justiça tinha-se alterado ao longo da vida e, sobretudo, ao longo da sua vida como polícia — houve assassinos misericordiosos, assassinos justos, por muito que um assassino fosse sempre um assassino, e tivesse de conservar um módico de moral e de disciplina. Os seus casos preferidos terminavam muito antes de desmontar o puzzle desenhado de um homicídio. Sou um biógrafo incompreendido, Isaltino. Interessam-me os desaparecidos que não deixam rasto e que nunca mais saem da lista de desaparecidos. De vez em quando vou lá, a essas listas, escolho um caso, imagino os primeiros passos do inquérito. Imagino as falhas. As peças que não encaixam. Sobretudo o lado de lá. Sou um biógrafo sem sorte. A ironia matou o resto de entusiasmo que havia em mim. Interessam-me as pessoas que não querem ser vistas, as pessoas que preferem a sombra, as que atravessam a noite pelas estradas secundárias. Onde se escondem as pessoas que não querem ser vistas? Interessam-me as pessoas que têm recordações dolorosas e passam em frente e não sucumbem, não choram, não se lamentam, não sofrem à vista dos outros. Interessam-me cada vez mais as pessoas de antigamente, quando havia um sentido de justiça que se resolvia na sombra. Sou um biógrafo preguiçoso, Isaltino.»
Francisco José Viegas, O Mar em Casablanca, pp. 86-87.