«"Eu sei, chefe. Se as coisas fossem feitas à sua vontade, o mundo estava melhor. Mas as coisas são como são", disse ainda Isaltino, voltando-se para o lago de onde fora retirado o corpo e sobre o qual uma estranha paz tinha descido, como uma neblina arrastada pela tarde. As lareiras acesas. O ruído das árvores. Cães que ladram entre as vinhas, rodeadas de muros em ruínas. Jaime Ramos não gostava do campo. Luzes acesas subitamente nas colinas, entre aldeias escondidas na serra — o bosque do Vidago era o último refúgio para quem queria refugiar-se. A última oportunidade. Reis, príncipes, actores de cinema, jornalistas, políticos transportados em carros negros, antigos, volumosos. Folheara o álbum do hotel, vira os rostos, as cores de fotos que perdiam a cor, alguém saltando para a piscina, uma família vestida para jantar, aguardando que o criado os acompanhe a uma mesa no terraço. Há velas acesas na mesa, uma jarra de flores, outras famílias sentadas a mesas iguais, um criado serve o vinho, Jaime Ramos imagina os ruídos da hora de jantar, uma espécie de murmúrio que não cessa enquanto não passar a hora de jantar, pessoas que se cumprimentam apesar de se conhecerem há pouco. Mas participam todos desse espectáculo, da grandiosidade do hotel, um monumento recuperado dos anos de ouro da velha burguesia do Porto, que gostava de termas, de médicos compreensivos e de bom serviço de piscina. Ou ingleses que reviviam o seu tempo, a memória dos grandes hotéis do passado, escondidos entre bosques, com salas de jogo, sofás, mesas de leitura, conhaque servido todas as noites a uma mesma hora, juntamente com uma caixa de charutos. Casais em lua-de-mel, tomando chá, vestidos para passeios pelos pinhais, a pé ou de bicicleta. Ou casais de idade avançada, a quem o porteiro ajuda a escolher uma mesa voltada para o lago e a quem chama o criado — pedem água mineral, café com leite, informações sobre o tempo de amanhã. Sol todo o dia, diz o criado, com um sorriso amável, o de quem conhece todos os clientes do ano, todos os hóspedes do Verão. E há crianças ruidosas que atravessam o pequeno campo relvado nas traseiras, ou brincam às escondidas entre os cedros à beira do lago.»
Francisco José Viegas, O Mar em Casablanca, p 37.