quinta-feira, 28 de julho de 2011

Até Setembro

Neste momento, partir de férias para fora do país corresponde, grosso modo, a uma partida para o paraíso, seja qual for o destino e seja o que for que se entenda por paraíso.
Sair daqui vale sempre a pena, mesmo que a alma seja pequena. Seja Tui, Verin, Fuentes de Onõro, Badajoz, Ayamonte, Tanger, Ceuta, seja qual for o local, por mais próximo que seja daqui, mas desde que não seja aqui, será sempre um paraíso. 
Vá-se a pé ou de bicicleta, ou à boleia; coma-se uma só vez por dia ou dia sim dia não; durma-se na tenda ou ao relento; tome-se banho de dois em dois dias ou uma vez por semana; tudo é preferível a ficar. Ficar faz mal a tudo: à bolsa, à paciência, à sanidade mental.

Este blogue vai de férias, eu aproveito e também vou. Não sei para onde ele vai, mas eu sei para onde vou. Vou até a um dos sítios onde o deserto se encontra com o oceano, isto é, onde o sublime deserto se encontra com o oceano sublime. E onde não há jornais, não há rádios nem televisões, onde não há notícias de Cavacos, nem de Passos, nem de Cratos, nem de deputados que hipotecam a seriedade política. Onde há, sobretudo, areia — areia linda, fina, carinhosa, que se oferece em dunas belas, harmoniosas, majestosas — e água salgada — água que convida a mergulhar e a nadar e a nadar... E onde há muito pouca gente, e a pouca que há é boa, simples e generosa. Vou até ao paraíso.

Todavia, antes de partir, quero agradecer aos leitores deste blogue a gentileza que têm tido, sempre que por aqui passam para espreitar o que por cá se vai dizendo; quero também agradecer a enorme generosidade de alguns comentários; e, acima de tudo, quero desejar que, nestas férias, todos possam ir até ao seu paraíso...

Em Setembro o blogue regressa, e eu também.
Boas férias.

Quinta da música - Antonio Martin y Coll

quarta-feira, 27 de julho de 2011

A validação do monstro

Tive hoje a oportunidade de conhecer, pela tv, o deputado Amadeu Albergaria, do PSD, e o deputado Michael Seufert, do CDS. Tive essa oportunidade, porque estes deputados intervieram, no Parlamento, para explicar as razões que levaram os seus partidos a não votar favoravelmente os Projectos de Resolução apresentados pelo PCP e BE, com vista à suspensão do actual modelo de (pseudo) avaliação do desempenho docente. Refiro o facto de os ter conhecido hoje, apenas para assinalar a circunstância de os partidos que apoiam o Governo terem colocado figuras secundárias a falar de um assunto a que outrora (antes das eleições) tinham atribuído importância prioritária.
Contudo, para não correr o risco de falar em vão, fui consultar as biografias destes dois deputados, na página electrónica da Assembleia da República — poderiam eles ter um currículo que os capacitasse especialmente para falar da avaliação do desempenho docente, e eu não o soubesse. 
Mas, afinal, não, eu não poderia desconhecer uma coisa que não existe. 
Na verdade, o deputado Amadeu Albergaria, para além de ser advogado, para além de  ter pertencido à Assembleia de Freguesia de São João de Ver, de ter sido vereador do pelouro da Educação, Cultura, Desporto e Juventude da Câmara Municipal de Santa Maria da Feira e de ter feito parte de organismos locais, não revela nada no seu currículo que justifique a sua escolha para porta-voz do PSD, na Educação. (A propósito: que é feito de Pedro Duarte — um dos deputados que prometeu formalmente a revogação desta (pseudo) avaliação, caso o PSD vencesse as eleições?)
Por sua vez, o currículo do deputado Michael Seufert é, deve ser salientado, particularmente sui generis. Ao lê-lo, verifiquei que, quanto a habilitações literárias, este representante da Nação possui o 1.º Ciclo, mas também possui o 2.º Ciclo, o 3.º Ciclo e o Ensino Secundário — confesso que só depois de continuar a leitura do currículo de Michael Seufert é que pude perceber a razão que o levou a considerar particularmente pertinente e necessário descriminar que era possuidor de todos os ciclos que compõem o Ensino Básico e que era possuidor do Ensino Secundário. E a razão é esta: Michael Seufert declara que das suas habilitações literárias também fazem parte a frequência de licenciatura em Engenharia Electrotécnica e de Computadores - Ramo Telecomunicações - Redes de Dados e a frequência de mestrado no mesmo curso. Isto é, Michael Seufert ainda não concluiu a licenciatura, mas já frequenta o mestrado. Eu não sabia que isto era possível, mas, pelo vistos, deve ser — ainda que eu não saiba onde. Ora, foi certamente por saber que isto é possível que o deputado Michael Seufert sentiu necessidade de publicitar que possui o 1.º, o 2.º e o 3.º ciclos do Ensino Básico e o Ensino Secundário — não fossemos nós pensar que, do mesmo modo que ele frequenta um mestrado sem possuir a licenciatura, também poderia frequentar uma licenciatura sem ter concluído o ensino básico e o secundário. Todavia, quanto a isto, podemos ficar descansados: o deputado tem o 12.º ano. Por fim, ainda pude verificar, no seu original currículo, que a profissão deste deputado, de 28 anos, é: estudante. 
Foram, portanto, estas duas figuras que o PSD e o CDS escolheram para falar da avaliação dos professores: um advogado — que em Santa Maria da Feira parece ter lidado com assuntos relacionados com a juventude, com a educação, com a cultura e com o desporto — e um jovem estudante — que parece ter o 12.º ano completo.
O que eles hoje disseram no Parlamento é irrelevante, porque, obviamente, nada poderiam ter dito de aproveitável ou politicamente sério. Disseram aquilo que a sua pobre formação no assunto lhes possibilitava dizer e aquilo que a desonestidade política dos seus partidos lhes possibilitava anunciar. Foi lamentável ver reconfirmada a mediocridade ético-política dos deputados que apoiam o Governo: depois de tudo o que disseram e prometeram antes das eleições, votaram agora pela validação do «monstruoso e kafkiano» processo de (pseudo) avaliação dos professores.
Nos últimos seis anos, o país assistiu ao contínuo exercício da falcatrua política. Anunciam-se mais quatro.

Às quartas

ESTUDO

Através da janela
mando
a negra razão
falar com a
paisagem.

Ernst Meister

(Trad.: João Barrento)

terça-feira, 26 de julho de 2011

Bonecos de palavra.

Calvin & Hobbes, por Bill Watterson (trad.: Ana Falcão Bastos).

Para ampliar, clicar na imagem.

segunda-feira, 25 de julho de 2011

Nacos

«A realidade é como um chulo drogado no meio de uma tempestade de trovões e relâmpagos, disse a deputada. A seguir ficou calada um bocado, como se se preparasse para ouvir os trovões distantes. Pegou no seu copo de tequila, que voltava a estar cheio, e disse:  cada dia tinha mais trabalho, essa é a verdade. Todos os dias ocupados com jantares, viagens, reuniões, planificações que não levavam a parte alguma, salvo a ficar com um cansaço infinito, todos os dias com entrevistas, todos os dias com desmentidos, aparecer na televisão, amantes, homens com quem eu fodia sem saber porquê, para manter a lenda, talvez, ou talvez porque gostava deles, ou talvez porque me convinha foder com eles, só uma vez, isso sim, que provassem mas não se habituassem, ou talvez simplesmente porque eu gostava de foder quando e onde me dava a real gana, e não tinha tempo para nada, os meus negócios nas mãos dos meus advogados, o património Esquivel Plata, que já não diminuía, não lhe quero mentir mas sim que crescia, nas mãos dos meus advogados, o meu filho nas mãos dos seus professores, e eu cada vez com mais trabalho: problemas hidrográficos no estado de Michoacán, estradas em Querétaro, entrevistas, monumentos equestres, saneamento público, toda a merda de um bairro a passar pelas minhas mãos. Nessa época, suponho, descuidei um pouco os meus amigos.»
Roberto Bolaño, 2666, p. 703.

domingo, 24 de julho de 2011

Pensamentos de domingo

«Um doido é aquele que acredita em tudo o que lhe vem à cabeça.»
Alain

«Muitas vezes compara-se a crueldade do homem à das feras, mas isso é injuriar estas últimas.»
Fiodor Dostoievski

«O que desculpa Deus é o facto de Ele não existir.»
Stendhal
Paulo Neves da Silva, Dicionário de Citações.

Paul Desmond

sábado, 23 de julho de 2011

Ao sábado: momento quase filosófico

O factor humano e o determinismo divino

«Uma pergunta verdadeiramente incómoda foi um dia feita a um rabino, como nos conta uma das mais saborosas histórias judias.
É na verdade a história de um milagre. Certo dia, um homem deixou cair, por descuido, a sua torrada com manteiga e nesse dia, por extraordinário que pareça, não caiu sobre o lado que tinha manteiga. contrariamente a todos os hábitos, a todas as crenças, contrariamente ao que afirmam as Escrituras, a torrada caiu do lado do pão seco.
Tratava-se sem dúvida alguma de um milagre.
A notícia espalhou-se a toda a velocidade lá na terra, as pessoas juntavam-se e lançavam-se em profundas discussões. Por que razão, naquele dia, a torrada não teria caído do lado da manteiga?
Acorreram à sinagoga, falaram do assunto ao rabino que considerou a questão muito embaraçosa e pediu todo um dia e uma noite de reflexão e oração.
Era homem com grande fama de sábio. Durante todo o dia e noite jejuou, reflectiu, orou e consultou os livros santos.
No dia seguinte, o rosto fatigado mas iluminado pela verdade, dirigiu-se à casa onde se tinha dado o pretenso milagre. Toda a cidade foi com ele. Pediu que o levassem junto do homem e disse-lhe:
— A solução é simples e vou dizer-ta. Não foi a torrada que caiu mal. Foste tu que barraste a manteiga do lado errado.»
Jean- Claude Carrière, Tertúlia de Mentirosos.

Uma fita assim-assim: «Confissões de uma Namorada de Serviço», de Steven Soderbergh

Nacos

«Aos dezanove anos comecei a ter amantes. A minha lenda sexual é conhecida no México inteiro, mas as lendas nunca são verdadeiras e menos ainda no México. A primeira vez que fui para a cama com um homem foi por curiosidade. Como está a ouvir. Nem por amor, nem por admiração, nem por medo, e é por essas razões que as outras mulheres costumam fazê-lo. Podia ter ido para a cama por pena, pois no fundo aquele chavalo com quem fodi a primeira vez metia-me pena, mas a verdade pura e simples é que o fiz por curiosidade. Ao fui de dois meses deixei-o e fui com outro, um idiota que pensava que ia fazer a revolução. O México é pródigo em idiotas desse género. Rapazes de uma estupidez supina, arrogantes que, quando tropeçam numa Esquivel Plata perdem os sentidos, querem logo fodê-la, como se o acto de possuir uma mulher como eu equivalesse a tomar o Palácio de Inverno. O Palácio de Inverno! Eles, que nem sequer são capazes de cortar a relva na Datcha de Verão! Bom, a esse também o deixei passado pouco tempo, agora ele é um jornalista com alguma reputação que, cada vez que se embebeda, diz que foi ele o primeiro amor da minha vida. Os amantes que vieram depois tive-os porque gostava deles na cama ou porque me aborrecia e eles eram inventivos, ou divertidos, ou tão estranhos, tão infinitamente estranhos que só a mim me faziam rir. Durante algum tempo, como sem dúvida deve saber, fui uma personagem com algum interesse na esquerda universitária. Até cheguei a ir a Cuba. Depois casei, tive o meu filho, o meu marido, que também era de esquerda, fez-se do PRI. Comecei a trabalhar na imprensa. Ao domingo eu ia a minha casa, quer dizer, à minha antiga casa, onde apodrecia lentamente a minha família, e andava às voltas pelos corredores, pelo jardim, a ver os álbuns de fotografias, a ler os diários de antepassados desconhecidos, que pareciam mais missas que diários, a ficar quieta durante muito tempo, sentada ao pé do poço de pedra que há no pátio, submersa num silêncio expectante, fumando um cigarro atrás de outro, sem ler, sem pensar, às vezes até sem conseguir recordar fosse o que fosse. A verdade é que me aborrecia. Queria fazer coisas, mas não sabia concretamente que coisas queria fazer. Meses depois divorciei-me.»
Roberto Bolaño, 2666, pp. 689-690.

sexta-feira, 22 de julho de 2011

Náusea

Afinal, parece que vamos ter novo modelo de avaliação já em Setembro. É isso que o Ministério da Educação vai deixando passar cá para fora, é isso também que as afirmações dos dirigentes sindicais, proferidas após a reunião com o novo ministro, deixam supor.
É surpreendente que isto seja verdade. Recordo-me de ter ouvido o primeiro-ministro dizer, há cerca quinze dias, que para criar um novo modelo de avaliação não chegavam três meses, que era preciso bastante mais tempo, e que por essa razão não revogava o modelo em vigor. Duas semanas depois, anuncia-se que o modelo está quase pronto e que no início do próximo ano lectivo já haverá fumo branco. Isto é, a razão (falsa e hipocritamente) aduzida para não revogar o actual modelo esfuma-se e a revogação não foi feita.

Confesso a náusea que políticos assim me provocam. A este ritmo, Passos Coelho baterá rapidamente o seu antecessor no número de falcatruas políticas. No curto espaço de um mês, tempo que leva de Governo, já se negou quatro vezes, o que dá uma média de uma negação semanal (1.ª - negou a promessa da revogação; 2.ª - negou a promessa de não cortar nos vencimentos; 3.ª - negou a promessa de não se justificar com o passado; 4.ª -  negou a afirmação que proferira sobre a falta de tempo para elaborar um novo modelo de avaliação). Nada disto é aceitável, tudo isto repugna.
E a Passos Coelho juntar-se-ão agora as dezenas de deputados do PSD e do CDS que, no próximo dia 27, no Parlamento, inviabilizarão a derradeira possibilidade que tinham de acabar com a farsa nacional que está a decorrer nas escolas do país. A vergonha que este processo constitui deveria ser motivo mais do que suficiente para lhe colocar um ponto final. Mas, lamentavelmente, para Passos Coelho e para aqueles deputados, não o é.

Neste momento, o primeiro-ministro e os deputados da maioria lambuzam-se com os votos que ardilosamente obtiveram de milhares de professores, e esquecem tudo o que prometeram e afirmaram. Não merecem o nosso respeito.

quarta-feira, 20 de julho de 2011

O pântano

Quando Passos Coelho, no Parlamento, anunciou que não iria revogar a avaliação do desempenho docente, escrevi, como muitos outros escreveram, que estávamos perante mais um caso de flagrante desonestidade política. Prometer e depois não cumprir é desonestidade política. Desgraçadamente, estamos habituados a esta mediocridade ética. Desde que Mário Soares, em anos já há muito idos, decidiu «meter o socialismo na gaveta», contrariando o que prometera na campanha eleitoral, que assistimos a um infindável desfile de promessas não cumpridas sem o menor escrúpulo, mas com a maior desfaçatez. 
Aceitar este modo de fazer política está muito para além da minha capacidade. Mas tenho de reconhecer que é uma prática cada vez mais disseminada. E disseminada a todos os níveis: começa no topo e vai alegremente até à base.
É o que acontece precisamente no capítulo da Educação. É inacreditável e inaceitável que se produza um discurso de clara oposição a um modelo de avaliação e que, não apenas se aja de modo oposto ao que o discurso enuncia, como, para além disso, se convide para secretarias de Estado e para assessorias quem, no terreno, defendeu e/ou propagandeou e/ou tudo fez para levar à prática esse mesmo processo de avaliação. Isto classifica simultaneamente quem convida e quem aceita. Sobre esta matéria não há grandes hipóteses interpretativas: quem convida ou mente quando discursa ou é incompetente quando convida; e quem aceita ou sabe que o outro mente quando discursa ou é o seu próprio discurso que é uma mentira. Não restam mais hipóteses.
Objectivamente é neste pântano que se move a Educação.

Às quartas

LAVANDO A AREIA NO RIO

A mão rolou a pedra para alcançar o gancho de jade,
Como antes a aversão à primavera aprisionou-me de novo no sótão.
Quem será o mestre da queda da flor no vento?
Penso melancolicamente.

O pássaro azul não transmite mensagem além das nuvens,
As flores de lilás desabrocham em vão no tormento da chuva
Vejo as ondas verdes, através dos três desfiladeiros, no crepúsculo,
Correndo ao encontro do céu.

Li Jing
(Trad.: Li Ching)

terça-feira, 19 de julho de 2011

Trechos - Tony Judt

«Os argumentos para recuperar o Estado não se baseiam somente na sua contribuição para a sociedade moderna como projecto colectivo; há uma consideração mais premente. Começámos uma época de medo. A insegurança voltou a ser um ingrediente activo da vida política nas democracias ocidentais. Insegurança gerada pelo terrorismo, é claro; mas também, e mais insidiosamente, medo do ritmo incontrolável da mudança, medo da perda do emprego, medo de perder terreno para os outros numa distribuição de recursos cada vez mais desigual, medo de perder o controlo das circunstâncias e rotinas da nossa vida diária. E talvez, sobretudo, medo de que talvez não sejamos só nós que já não conseguimos moldar as nossa vidas, mas também que quem manda tenha perdido o controlo, para forças fora do seu alcance.»
Tony Judt, Um Tratado Sobre os Nossos Actuais Descontentamentos, p. 203.

Bonecos de palavra.

Calvin & Hobbes, por Bill Watterson (trad.: Ana Falcão Bastos).
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segunda-feira, 18 de julho de 2011

Nacos

«Segundo a encarregada do departamento de Delitos Sexuais de Santa Teresa, uma entidade governamental que tinha apenas meio ano de existência, a proporção de assassínios em toda a República Mexicana era de dez homens para uma mulher, enquanto que a proporção em Santa Teresa era de quatro mulheres para cada dez homens. A encarregada chamava-se Yolanda Palacio e era uma mulher com cerca de  trinta anos, de pele clara e cabelo castanho, formal, embora se vislumbrasse por trás da sua formalidade o desejo de ser feliz, o desejo da festa permanente. Mas o que é a festa permanente?, interrogou-se Sérgio González. Talvez o que diferencia alguns de nós, que vivemos na tristeza quotidiana. Vontade de viver, vontade de ir à luta, como dizia o seu pai, mas ir à luta contra o quê, o inevitável? Lutar contra quem? E para conseguir o quê? Mais tempo, uma certeza, o vislumbre de algo essencial? Como se houvesse algo essencial nesta merda de país, pensou, como se o houvesse nesta merda de planeta chupador da sua própria verga. Yolanda Palacio tinha estudado direito na Universidade de Santa Teresa, e depois especializou-se em direito penal na Universidade de Hermosillo, mas não gostava dos tribunais, descobriu isto um pouco tarde, nem de ser litigante, por isso dedicou-se à investigação. O senhor sabe quantas mulheres são vítimas de crimes sexuais nesta cidade? Mais de duas mil por ano. E quase metade são menores. E provavelmente um número semelhante não denuncia a violação, pelo que estaríamos a falar de quatro mil violações por ano. Quer dizer, todos os dias violam mais de dez mulheres aqui, fez um gesto como se os estupros estivessem a ser cometidos no corredor. Um corredor mal iluminado por uma lâmpada fluorescente amarela, exactamente igual à lâmpada fluorescente que permanecia apagada no gabinete de Yolanda Palacio. Algumas das violações, é claro, acabam em assassínio. Mas não quero exagerar, a maioria conforma-se com violar e já está, acabou-se, vamos a outra coisa. Sérgio não soube o que dizer. O senhor sabe quantas pessoas trabalham no Departamento de Delitos Sexuais? Só eu. Antes tinha uma secretária. Mas cansou-se e foi para Ensenada, onde tem família. Bolas, disse Sérgio. Isso, sim, bolas, muito bolas por isto e bolas por aquilo, muito caramba, muito fogo, muito é demais, mas na hora da verdade aqui ninguém se lembra de nada, nem uma palavra, nem tomates para fazer alguma coisa. Sérgio baixou o olhar e depois olhou para o rosto cansado de Yolanda Palacio. E, a propósito de tomates, disse esta, tem vontade de comer?, eu estou morta de fome, aqui perto existe um restaurante que se chama El Rey del Taco, se gostar da comida tex-mex deve ir lá. Sérgio levantou-se. Convido eu, disse ele. Eu não tinha dúvida disso, disse Yolanda Palacio.»
Roberto Bolaño, 2666, pp. 646-647.

Anotações

Só assalariados e pensionistas pagam novo imposto em 2011

Português com média negativa tem o pior resultado em 14 anos de exames nacionais
— Os resultado de Matemática A também desceram e levaram um quinto dos alunos a reprovar nesta disciplina —
Público (15/7/11)

Temo que, politicamente falando, Passos Coelho vá conseguir fazer de Sócrates um homem honesto. Se o conseguir, é obra!
Sem ainda ter completado um mês à frente do Governo, Passos Coelho não perde tempo para mostrar como enganou os portugueses. E fá-lo de modo objectivo, sem deixar margem para hermenêuticas. Com a mesma objectividade com que ele nos engana, passo a discriminar:
1. Prometeu revogar o «monstruoso e kafkiano» processo de avaliação do desempenho docente. Não revogou. Enganou-nos.
2. Prometeu não aumentar os impostos sobre os salários. Já anunciou que vai aumentar. Enganou-nos.
3. Prometeu não invocar o passado para justificar a sua política. Já invocou. Enganou-nos.
Até hoje, que me lembre, ninguém fez pior.
Nestas ocasiões, Sócrates afivelava o seu facies com um ar compungido, falsamente compungido, mas afivelava; Passos Coelho não põe ar nenhum, fá-lo com a mesma naturalidade com que respira.

Com a mesma naturalidade, mas de modo mais pausado, monotonamente pausado, Vítor Gaspar, novo ministro das Finanças, também sofisma. Sofisma pausadamente (e não sei se também arrogantemente — o futuro o dirá). 
Vítor Gaspar sofisma quando diz que o novo imposto sobre os rendimentos respeita a equidade fiscal. Vítor Gaspar sabe que isentar os juros e os dividendos do pagamento desse imposto desrespeita gravemente a equidade fiscal, mas, pausadamente, sofisma, dizendo que seria inconsistente taxar os juros face aos esforços de poupança que quer ver incentivados. Sofisma porque:
i) Desse ponto de vista, Vítor Gaspar não poderia criar um imposto sobre os salários, pois, ao fazê-lo, está objectivamente a diminuir as possibilidades de poupança. Menor salário, menor poupança.
ii) Quem ganha pouco, mas mesmo assim ainda tinha alguma poupança, ao ter o seu salário diminuído vai inevitavelmente ter de mexer nesse dinheiro. Menor poupança, portanto.
iii) No fim de contas, só aqueles que vivem folgadamente, e que não precisam de mexer nas suas poupanças, é que saem beneficiados, porque os rendimentos que arrecadam com os juros não sofrem aumento de imposto.
Conclusão: os rendimentos sobre o trabalho têm um novo imposto, os rendimentos sobre o capital não têm. Isto não é equidade fiscal. Mesmo quando pausadamente afirmada.
Quanto à indecorosa isenção dos dividendos, Vítor Gaspar não falou. Nem sequer pausadamente...

Uma anotação final sobre os catastróficos resultados dos exames:
¿Por acaso, não está disponível nenhum daqueles jornalistas que, nos últimos anos, por tudo e por nada, se afobavam a entrevistar Lurdes Rodrigues acerca dos extraordinários resultados da sua obra, à frente do Ministério da Educação? 
¿Nenhum desses jornalistas tem agora a pertinente curiosidade de conhecer o comentário da ex-ministra da pasta sobre os resultados dos exames?
É que é a partir de agora que os frutos do trabalho da senhora ex-ministra se começam a ver. É a partir de agora...

domingo, 17 de julho de 2011

Pensamentos de domingo

«Pouco se pode esperar de alguém que só se esforça quando tem a certeza de vir a ser recompensado.»
José Ortega y Gasset

«A guerra é um massacre entre pessoas que não se conhecem para proveito de pessoas que se conhecem mas não se massacram.»
Paul Valéry
In Paulo Neves da Silva, Dicionário de Citações.

«Eu peço mil desculpas, meu amigo, mas deixe-me acabar esta última dúzia de ostras.»
 (Disse para o carrasco que o iria levar à guilhotina).
Armand Louis de Gontaut
In José Manuel Veiga, Manual para Cínicos.

Charles Lloyd, Zakir Hussain, Eric Harland

sábado, 16 de julho de 2011

Ao sábado: momento quase filosófico

O conhecimento essencial

Uma história árabe conta-nos:
Um imperador mandou vir um homem que passava por ser o mais sábio do conjunto das terras conhecidas e pediu-lhe que redigisse uma obra que contivesse os conhecimentos essenciais.
O erudito deitou mãos ao trabalho e, doze anos mais tarde, ofereceu ao monarca toda uma série de volumes.
— É demasiado extenso — disse o imperador. — Escreve os conhecimentos essenciais num só volume. O homem obedeceu e voltou quatro ou cinco anos mais tarde com um único volume.
— É ainda demasiado extenso — disse o imperador. — Sou um homem ocupado com todos os problemas do império. Escreve em poucas páginas o que consideras essencial e traz-me essas páginas.
O sábio deitou-se ao trabalho. Conseguiu, em dois ou três anos, meter a quinta-essência dos seus conhecimentos em algumas páginas, que ofereceu ao monarca. Este, particularmente ocupado nesse dia, pediu um último esforço: uma só página.
Vários anos de trabalho foram então necessários ao homem para fazer com que o seu conhecimento coubesse numa página.
— Ainda é muito — disse-lhe o imperador. — Proponho-te uma coisa: não escrevas mais nada. Põe o essencial do que sabes numa palavra e vem dizer-ma. Recompensar-te-ei.
O homem retirou-se para um planalto árido e reflectiu durante o tempo necessário. No fim, quando encontrou a palavra que encerrava todos os pensamentos, pediu audiência ao imperador, que já era velho.
— Encontraste a palavra? — perguntou ele ao erudito.
— Sim, Majestade. Encontrei.
— Aproxima-te. Diz essa palavra em voz baixa, depressa.
O sábio aproximou-se do imperador, inclinou-se para o seu ouvido e murmurou uma só palavra. O imperador foi o único a ouvir e exclamou:
— Mas isso já eu sabia!
Jean-Claude Carrière, Tertúlia de Mentirosos.

sexta-feira, 15 de julho de 2011

Erros a não repetir - 12. E algumas sugestões para o futuro

Nos últimos textos (ver o link «Avaliação - Erros a não repetir», na coluna da direita do blogue), tenho estado a tratar do que deveria ser — na minha opinião, naturalmente — a avaliação do desempenho dos professores.
Resumidamente, vimos o seguinte:
1. A  avaliação do desempenho dos professores deve visar exclusivamente a melhoria das práticas lectivas, com vista ao desenvolvimento das aprendizagens dos alunos.
2. Excluímos, por razões éticas e técnicas, que a avaliação do desempenho dos professores visasse a premiação do mérito. Isto é, não deve visar essa premiação (razões éticas) e não pode visar essa premiação (razões técnicas).
3. A avaliação do desempenho dos professores deve estar focalizada numa única dimensão: «Desenvolvimento do Ensino e da Aprendizagem».
4. A avaliação do desempenho dos professores deve estar centrada no Grupo Disciplinar, deve ser realizada em contexto de trabalho colaborativo, ou seja, deve ser realizada segundo as regras de  funcionamento das equipas de investigação, com a clara definição de obrigações (horas de trabalho colaborativo a cumprir, relatórios a apresentar, etc.) e com a garantia de condições (sala de trabalho, horas destinadas a reuniões, horas destinadas a observação recíproca de aulas, etc.).
5. Esta avaliação não visa uma seriação, visa a melhoria das práticas lectivas, por isso, esta avaliação só pode ser feita pelos pares, porque é desenvolvida em contexto de trabalho de equipa. (Na minha opinião, uma avaliação que vise uma classificação/seriação não deve ser feita pelos pares).
6. O trabalho colaborativo, desenvolvido segundo as regras de funcionamento das equipas de investigação, exige um contínuo escrutínio do trabalho realizado por todos os membros da equipa. Este contínuo escrutínio constitui a forma séria, fiável e credível de gerar a  melhoria da prática lectiva dos professores, com vista ao desenvolvimento das aprendizagens do alunos.

Se aquilo que o poder político efectivamente quisesse fosse a melhoria da prática lectiva dos professores, com vista ao desenvolvimento das aprendizagens dos alunos, teríamos, na minha opinião, o problema resolvido com um modelo de natureza semelhante ao acima resumidamente enunciado.
O problema é que aquilo que verdadeiramente tem preocupado o poder político não é a efectiva melhoria da prática lectiva dos professores, aquilo que o tem preocupado são apenas duas coisas:
i) realizar, por obsessão ideológica, uma seriação/classificação dos professores (o que, factualmente, nada tem que ver com a melhoria das práticas lectivas nem com a melhoria das aprendizagens do alunos);
ii) realizar, por razões economicistas, um desinvestimento na Educação, reduzindo drasticamente as verbas destinadas à massa salarial dos professores.
São estas as duas verdadeiras preocupações que, nos últimos anos, têm movido o poder político na guerra que têm feito aos docentes. Todavia, como não existe coragem política para publicamente as assumir, procura-se sofismar, dizendo que se quer seriar/classificar os professores para melhorar o sistema educativo e para alcançar outros pretensamente nobres objectivos.
Se, por dogmas ideológicos e razões economicistas, se quer classificar os professores para os seriar, que haja, no mínimo, o pudor de não misturar avaliação com classificação, que haja o pudor de não se afirmar que está a ser realizada uma avaliação para premiar o mérito e para conduzir à melhoria do desempenho docente.
Se se quer classificar para seriar que se invoquem as verdadeiras razões. 
Se se quer classificar para seriar, não se coloquem os pares a fazê-lo.
Se obsessivamente se quer classificar, por dogmas ideológicos e razões economicistas, existem itens que podem satisfazer essas necessidades ideológicas e têm a acrescida virtude de caber numa folha de Excel. Exemplos: quantificação do tempo de serviço; quantificação da assiduidade; classificação profissional; quantificação de acções de formação; quantificação de pós-graduações, etc. Isto não avalia nada, mas classifica e seria. 
Se há a obsessão ideológica da classificação, que seja plenamente assumida e que, no mínimo, seja realizada de modo coerente com essa obsessão e sem dar aso a compadrios.

Com este post, concluo a série de textos intitulados «Erros a não repetir».

Uma fita para esquecer: «Hanna», de Joe Wright

Trechos - Tony Judt

«Temos de reaprender a pensar o Estado. Sempre vivemos com ele, afinal. Nos Estados Unidos, o país mais propenso a denegrir o papel do governo nos assuntos das pessoas, Washington apoiou e até subsidiou intervenientes seleccionados do mercado: barões dos caminhos-de-ferro, produtores de trigo, fabricantes de automóveis, a indústria aeronáutica, as siderurgias, e outras. Acreditem ingenuamente os Americanos no que acreditarem, o seu governo sempre meteu as mãos no bolo económico. O que distingue os EUA de todos os países desenvolvidos tem sido a convicção generalizada do contrário. [...]
Libertámo-nos de uma suposição de meados do século XX — a qual nunca foi universal mas esteve bastante disseminada —, a de que o Estado é provavelmente a melhor solução para qualquer problema. Agora precisamos de nos livrar da noção contrária: a de que o Estado é — por definição e sempre — a pior opção disponível.»
Tony Judt, Um Tratado Sobre os Nossos Actuais Descontentamentos, pp. 189-190.

quinta-feira, 14 de julho de 2011

Quinta da música - Antonín Dvořák

Nacos

«E as gargalhadas eram gerais. Uma espécie de capa de gargalhadas se erguia naquele espaço oblongo, como se os polícias toureassem a morte com a capa. Nem todos, claro está. Alguns, nas mesas mais distantes, emborcavam os seus ovos com chile, ou os seus ovos com carne, ou os seus ovos com feijão em silêncio, ou a falar entre si, das suas coisas, isolados dos restantes. Era como se disséssemos que tomavam o pequeno-almoço com os cotovelo apoiados na angústia e na dúvida. Apoiados no essencial que não não leva a parte alguma. Hirtos de sono: quer dizer, de costas para os risos propugnavam outro sono. Pelo contrário, apoiados nas pontas do balcão, outros bebiam sem nada dizer, apenas a olhar para a agitação, ou a murmurar mas que conversa de merda, ou sem nada murmurar, simplesmente fixando na retina os polícias desonestos e os inspectores.»
Roberto Bolaño, 2666, p. 636.

quarta-feira, 13 de julho de 2011

Aviltaram o conceito de mérito

Aviltaram o conceito de mérito, e fizeram-no de modo irremediável, pelo menos durante os tempos mais próximos. Na verdade, aquilo de que verdadeiramente falam aqueles que agora enchem, preenchem e abarrotam o discurso com o termo mérito é de meritocracia

O termo mérito não suscita problemas do ponto de vista conceptual, mas levanta enormes problemas do ponto de vista da sua aferição na grande parte das actividades que o ser humano desenvolve. E essa objectiva dificuldade de aferição deveria obrigar a muita parcimónia na sua utilização discursiva. Todavia, o que se verifica é o inverso: não só não existe qualquer parcimónia no seu uso, como, agora e novamente, se chega ao ponto de querer assentar todo o funcionamento da sociedade na operacionalização desse conceito. Pretende-se a aplicação generalizada, indiscriminada e, perdoe-se-me a expressão, atoleimada do mérito a tudo quanto na sociedade mexa, como se essa aplicação fosse possível de ser realizada de modo justo, fiável e credível. Ora não há seriedade intelectual nesta propositura, porque quem o defende sabe que essa aplicação não é possível de ser concretizada daquele modo.
Mas o aviltamento da noção de mérito não advém apenas da sua desonesta utilização discursiva, vem também do facto de terem associado o mérito ao recebimento de um prémio. Dito de modo mais conforme à realidade: de terem associado o mérito à corrida ao prémio. No pensamento dos ideólogos desta meritocracia, deveremos passar a entender o exercício de uma qualquer profissão como uma desvairada correria em busca do prémio que premeie o nosso pretenso mérito.
Contudo, como nada disto é passível de concretização séria, o que na realidade se procura instaurar é o darwinismo social, em que a lei do mais forte, ou do mais chico-esperto, ou do mais reguila, ou do mais candongueiro, ou do mais trapaceiro prevalece. Não havendo possibilidade de garantir uma avaliação séria e transparente do mérito, a inevitável consequência é a institucionalização da batota.
O mérito enquanto conceito axiológico desligado de aderências interesseiras morreu. Morreu, porque foi aviltado e adulterado. E enquanto não o libertarem da contaminação interesseira, por favor, não me falem em mérito. 

Às quartas

MATRICIAL

Na leve espessura destas sílabas
Ouço o ar a passagem do ar
No coração do homem no coração
Da montanha no aroma das estevas
E dos pinheiros ouço o vento a respiração
Uma só respiração que se aproxima
Do silêncio um só pulmão de água
Sem direito nem avesso apenas o ar
Na boca no rumor destas bocas
Lisas como o céu matriciais
Como o vasto céu que não tem
Entrada nem saída apenas aves
As aves tristes o rumor supremo
Desta respiração —


Casimiro de Brito

terça-feira, 12 de julho de 2011

Trechos - Tony Judt

«Hoje é como se o século XX nunca tivesse acontecido. Fomos varridos por uma nova grande narrativa de "capitalismo global integrado", crescimento económico e aumentos ilimitados de produtividade. Tal como anteriores narrativas de progresso infinito, a história da globalização combina uma ladainha avaliadora ("o crescimento é bom") e a presunção da inevitabilidade: a globalização veio para ficar, como processo natural que é, e não uma escolha humana. A dinâmica inelutável da competição e integração económica global tornou-se a ilusão da nossa era. Como Margaret Thatcher uma vez explicou: Não Há Alternativa.
Deveríamos desconfiar de proclamações do género.»
Tony Judt, Um Tratado Sobre os Nossos Actuais Descontentamentos, p. 182.

Bonecos de palavra.

Calvin & Hobbes, por Bill Watterson (trad.: Ana Falcão Bastos).
Para ampliar, clicar na imagem.

segunda-feira, 11 de julho de 2011

Anotações

PCP entrega na segunda-feira projecto de lei para suspender avaliação de professores
Público (8/7/11)

As rocambolescas vicissitudes porque tem passado o processo de suspensão-não suspensão do modelo de (pseudo) avaliação dos professores confirmam duas coisas: 
— a mediocridade da maioria dos nossos políticos;
— a mediocridade do modelo de avaliação.
No meio de tudo isto estão os professores, que têm sido bonifrates do Governo (do actual e dos dois anteriores) e do Parlamento. De uma forma inverosímel, brinca-se com a vida profissional de milhares de docentes: elabora-se um modelo de avaliação tecnicamente incompetente que, por orgulhos pessoais, por desequilíbrios emocionais e por irresponsabilidade política, foi arrogantemente imposto (PS); assumem-se compromissos de suspensão que, à última hora, são abjurados (PSD); elabora-se um novo modelo (PS), que é uma cópia quase perfeita do anterior; volta-se, a nível parlamentar, a avançar (BE, PCP, PEV) e a recuar (PSD), e, outra vez, a avançar (BE, PCP, PEV, PSD), até que se chega à aprovação (BE, CDS, PCP, PEV, PSD) da revogação, que, posteriormente, é reprovada no TC; continua-se, antes e durante a campanha eleitoral, a afirmar que o modelo é monstruoso e kafkiano (PSD); e termina-se a dizer (por parte de quem prometeu o inverso, e que, entretanto, venceu as eleições), que já não se revoga o modelo monstruoso e kafkiano (PSD). 
Nem as novelas mexicanas têm enredos tão grosseiros. No fundo, este processo espelha a qualidade das elites que nos dirigem. Estes homens e mulheres pediram-nos votos, empenharam a palavra, e agora renegam  essa palavra com o mesmo à vontade com que brindam às vitórias eleitorais.
O PCP faz bem em tomar a iniciativa de apresentar, no Parlamento, um projecto lei que visa acabar com a vergonhosa farsa avaliativa.
Faz bem porque, apesar de em nada resultar, terá o mérito de obrigar a que o circo da desonestidade política venha para a rua e se exponha na sua total crueza. Assistiremos ao que de mais ordinário há na política: deputados comportarem-se como vigaristas que, quando descobertos, se desfazem em grotescas desculpas para que a vítima não chame a polícia. Vai ser esse terrível fingimento político — que contamina a democracia e progressivamente lhe fere a medula — a que o país assistirá.

Para ajudar a que não caia na deslembrança (em particular os 33s a 45s) fica aqui um conhecido vídeo:

domingo, 10 de julho de 2011

Pensamentos de domingo

«Com Deus falo espanhol, com as mulheres italiano, com os homens francês e com o meu cavalo alemão.»
Imperador Carlos V

«Se os homens pudessem engravidar, o aborto tornava-se num sacramento.»
Fred Allen
In José Manuel Veiga, Manual para Cínicos.

«Somos muito injustos com Deus. Nem sequer lhe permitimos pecar.»
Friedrich Nietzsche
In Paulo Neves da Silva, Dicionário de Citações.

Freddie Hubbard

sábado, 9 de julho de 2011

Ao sábado: momento quase filosófico

A realidade do espelho ou o espelho da realidade 

Um lavrador chinês foi à cidade vender seu arroz. A mulher pediu-lhe:
— Se fazes favor, traz-me um pente.
Na cidade, vendeu o seu arroz e foi beber com amigos. No momento de partir, lembrou-se da mulher. Tinha-lhe pedido qualquer coisa, mas o quê? Impossível recordar-se. Comprou um espelho numa loja para senhoras e voltou para a aldeia.
Deu o espelho à mulher e saiu de casa para ir para o campo. A mulher viu-se ao espelho e pôs-se a chorar. A sua mãe, que a viu chorar, perguntou-lhe a razão daquelas lágrimas.
A mulher estendeu-lhe o espelho dizendo:
— O meu marido reduziu-me a Segunda Esposa.
A mãe pegou por sua vez no espelho, olhou-o e disse à filha:
— Não tens que te inquietar, ela é já muito velha.
.......................................

O poeta persa a quem chamamos Rumi conta, no Masnavi, a história de um homem de uma fealdade abominável que atravessa o deserto a pé.
Na areia, vê qualquer coisa que brilha. É um pedaço de espelho. O homem baixa-se, pega no espelho e olha.
— Que horror! — exclama. — Não admira que tenham deitado isto fora!
Atirou o espelho para a areia e prosseguiu o seu caminho.
In Jean-Claude Carrière, Tertúlia de Mentirosos.

Uma fita interessante: «O Atalho», de Kelly Reichardt

Para clicar



sexta-feira, 8 de julho de 2011

Erros a não repetir - 11. E algumas sugestões para o futuro

No últimos textos (ver na coluna da direita do blogue a pasta «Avaliação - Erros a não repetir», ou clicar aqui), tenho procurado apresentar as razões pelas quais considero que:
— as quatro dimensões do actual modelo devem ser reduzidas a uma, aquela que é nuclear e fundamental: «Desenvolvimento do ensino e da aprendizagem»;
— o novo modelo de avaliação deve ter como base o trabalho colaborativo entre docentes do mesmo grupo disciplinar.
No texto da passada sexta-feira, desenvolvi este último aspecto. Vou agora concluí-lo.

Começo, no entanto, por lembrar aquele que é, do meu ponto de vista, o elemento decisivo e prévio a tudo o resto (o qual não me cansarei de mencionar, sempre que venha a propósito) e que se expressa na resposta a esta pergunta: faz-se avaliação para quê? Penso que a resposta só pode ser: faz-se avaliação para melhorar a prática lectiva, de modo a atingir-se uma progressiva melhoria das aprendizagens dos alunos. É isto que interessa aos alunos, é isto que interessa aos professores, é isto que interessa aos pais do alunos, é isto que é interessa ao país. O resto, o designado e muito publicitado pretenso apuramento do mérito e da excelência, para além de ser uma impossibilidade técnica é uma duvidosa exigência ética, redundando em faz-de-conta, em folclore, em jogo de sombras e de aparências.

Relembrado isto, darei agora continuidade ao texto da passada semana.
Defendi que a verdadeira avaliação, aquela que visa a melhoria da prática lectiva, só é possível ser realizada em contexto de trabalho colaborativo, isto é, em ambiente de cooperante escrutínio recíproco que se traduz na análise, na interpretação, no debate, na experimentação, na partilha de experiências, na observação recíproca de aulas, na leccionação conjunta de aulas, na partilha de bibliografia, etc.
Também recordei que é assim que se trabalha em equipas de investigação, em equipas de elaboração e/ou realização de projectos, isto é, em equipas cujos trabalhos dependem, quer da criatividade e da autonomia de cada membro, quer dos resultados que a interacção entre os membros da equipa produz.
Da avaliação intersubjectiva que este trabalho continuamente gera assinalam-se os aspectos positivos e os negativos, as dificuldades, os sucessos, os insucessos, e sobre todos eles em equipa se reflecte, e sobre todos eles em equipa se actua, e, desta forma, se progride na qualidade da prática lectiva.
Esta avaliação é exclusivamente formativa. Não é feita para seriar, não é feita para hierarquizar, é feita para formar, para melhorar, para fazer crescer profissionalmente. Enquanto avaliação formativa detecta também, como referi, insuficiências e deficiências. Mas não as detecta por acaso, no decurso do jogo do gato e do rato (como acontece com o actual modelo de avaliação), detecta-as fundamentada e profundamente. Por isso, sobre elas é possível agir com fundamento e profundidade e, no final, com igual fundamento e profundidade concluir da superação das dificuldades, ou, nos casos em que tal suceda, concluir da total impossibilidade dessa superação. Nesta última situação, o processo transitaria para o domínio administrativo com a intervenção das instâncias competentes.

Esta é a avaliação formativa que, com credibilidade e seriedade, se sabe e pode fazer. Desta avaliação não resulta, como disse, nenhuma classificação. Neste preciso contexto, a classificação é um elemento espúrio à avaliação. É uma excrescência que a mentalidade «Excel» idolatra, mas como excrescência que é não acrescenta nada de substantivo à avaliação, pelo contrário, introduz ruído e potencia a adulteração do processo avaliativo.
Esta avaliação formativa, da qual, portanto, não resulta nenhuma classificação, deve e só pode ser feita inter-pares. Mas não deve ser feita inter-pares para poupar dinheiro, como acontece com o actual modelo. Deve ser feita inter-pares, porque o trabalho de equipa só pode ser realizado por quem faz parte da equipa. E, porque não visa nenhuma seriação, pode ser feita pelos pares, ao contrário do actual modelo que atribui responsabilidade de seriação a quem concorre consigo nessa seriação.
Este processo de avalição fundado no trabalho colaborativo exige, como qualquer trabalho de equipa, um coordenador. Mas um coordenador que seja reconhecido pelos pares, a quem os pares reconheçam credibilidade para o exercício dessa coordenação. Deste modo o coordenador deve ser eleito de entre os membros do grupo disciplinar e presta contas superiormente.
Este processo de avalição fundado no trabalho colaborativo é realizado profissionalmente, não é realizado amadoristicamente em regime de voluntariado, ou de calorice, ou em regime de «quando me apetece». De modo idêntico ao funcionamento de uma equipa de investigação, ou de uma equipa de elaboração/contrução de projectos, o grupo disciplinar trabalhará segundo condições que têm de ser asseguradas (salas de trabalho, horas destinadas a reuniões, horas destinadas a observação recíproca de aulas, etc.) e obrigações previamente estipuladas (horas de trabalho colaborativo a cumprir, relatórios a apresentar, etc.).

Esta é a avaliação que, na minha opinião, permite que o nosso sistema educativo evolua qualitativamente. Se, na verdade, é isto que se pretende, julgo que não há outra via. Esta é a via que é seguida pelas equipas de investigação em todo o planeta. É a via que tem permitido os avanços nas ciências, nas tecnologias e em múltiplas actividades. É a via que também permitirá que a nossa Educação se desenvolva.

Estivemos a falar de avaliar para um determinado fim. Outra coisa muito diferente é, como todos sabemos, classificar. Isso é outro assunto, ou como diz um amigo meu: «são outros quinhentos». Para a semana procurarei dizer o que penso sobre essa matéria.

Trechos - Tony Judt

«De todos os objectivos concorrentes e só em parte conciliáveis que podemos procurar, a redução da desigualdade deve ser prioridade. Em condições de desigualdade endémica, todos os outros objectivos desejáveis tornam-se difíceis de obter. [...]
Neste sentido, o acesso desigual a recursos de toda a espécie — dos direitos à água — é o ponto de partida de qualquer crítica verdadeiramente progressista do mundo. [...]
Se continuarmos grotescamente desiguais, perderemos toda a noção de fraternidade: e a fraternidade, apesar de toda a sua tolice como objectivo político, revela-se a condição necessária da própria política. Há muito que o inculcamento de um objectivo de vida comum e dependência mútua é considerado a cavilha de segurança de qualquer comunidade. Agir juntos com um propósito comum é origem de enorme satisfação em tudo, dos desportos amadores aos exércitos profissionais. Nesse aspecto, sempre soubemos que a desigualdade não é só moralmente inquietante: é ineficaz
Tony Judt, Um Tratado Sobre os Nossos Actuais Descontentamentos, pp. 175-176.

quinta-feira, 7 de julho de 2011

Quinta da música - Carl Orff

Nacos

«Durante muitos dias Juan de Dios Martínez pensou nos quatro enfartes que Herminia Noriega sofreu antes de morrer. Às vezes punha-se a pensar naquilo enquanto comia ou enquanto urinava nas casas de banho de uma cafetaria ou de um restaurante com self service frequentado por inspectores, ou antes de adormecer, no exacto momento de apagar a luz, ou talvez segundos antes de apagar a luz, e então levantava-se da cama e aproximava-se da janela e olhava para a rua, uma rua vulgar, feia, silenciosa, pouco iluminada, e depois ia até à cozinha e punha água a ferver e fazia café, e às vezes, enquanto bebia o café quente e sem açúcar, um café de merda, ligava a televisão e punha-se a ver os programas nocturnos que chegavam pelos quatro pontos cardeais do deserto, àquela hora captava canais mexicanos e norte-americanos, canais de loucos inúteis que cavalgavam sob as estrelas e que se cumprimentavam com palavras ininteligíveis, em espanhol ou em inglês, ou em spanglish, mas ininteligíveis todas aquelas palavras de merda, e então Juan de Dios Martínez deixava a chávena de café na mesa e cobria a cabeça com as mãos e dos seus lábios escapava-se um ulular débil e preciso, como se chorasse ou se esforçasse por chorar, mas quando no fim retirava as mãos só apareciam, iluminadas pelo ecrã do televisor, as suas trombas velhas, a sua velha pele infecunda e seca, sem o mais pequeno rasto de uma lágrima.»
Roberto Bolaño, 2666, p. 614. 

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quarta-feira, 6 de julho de 2011

Trechos - Tony Judt

«[Nada]nos devia impedir de compreender a importância do fim moral nos assuntos humanos. Os debates sobre a guerra, o aborto, a eutanásia, a tortura; as discussões sobre a despesa pública com a saúde ou a educação: tudo isto e muito mais é instintivamente formulado em termos que recorrem muito directamente a textos tradicionais religiosos ou filosóficos, mesmo que estes não sejam conhecidos pelos comentadores contemporâneos.
É a distância entre a natureza intrinsecamente ética da tomada de decisões pública e a qualidade utilitária do debate político contemporâneo que explica a falta de confiança na política e nos políticos.»
Tony Judt, Um Tratado Sobre os Nossos Actuais Descontentamentos, p. 171.

Estamos de «rating» e os nossos liberais são uns pontos

Uma agência de notação financeira baixou o rating da nossa dívida pública, de longo prazo, para o nível designado de «lixo», isto é, o rating que nos atribuem é o mesmo que nos dizerem que estamos de rastos.
O Governo apressou-se a reagir, afirmando que a agência em questão ignorou os efeitos do imposto extraordinário sobre o subsídio de Natal e que também ignorou o amplo consenso político que suporta as medidas financeiras e económicas acordadas com a troika. Numa palavra, o Governo acha que se tratou de uma injustiça, de uma imoralidade, para Portugal. 
O interessante de tudo isto é a sensação de déjà vu que nos provoca. Todos nós já vimos este enredo, e o curioso é constatar que os novos protagonistas nada mais fazem do que mimetizar as reacções e as declarações dos protagonistas anteriores. Foi assim que Sócrates e Teixeira dos Santos sempre reagiram. Torna-se pertinente perguntar: é isto que trazem de novo? Também parece pertinente perguntar: é esta a imensa credibilidade de que são portadores, em particular a publicitada credibilidade do ministro das Finanças? E ainda pertinente perguntar parece: não é o mercado o melhor regulador de si próprio? Não é o actual Governo, em particular o seu ministro das Finanças, um crente fervoroso no liberalíssimo funcionamento do mercado? O mercado pode ser imoral? Segundo as teses liberais, não pode. Aliás, segundo as teses liberais, essa questão nem faz sentido. O mercado pode ser injusto? Segundo as teses liberais, não pode. Aliás, segundo as teses liberais, essa questão também não faz sentido. Não é o mercado, por definição, auto-regulador? Segundo as teses liberais, é. De onde vem então o queixume? 
Esforço-me por tentar compreender os nossos liberais, mas não consigo. Todavia, acho que posso deixar este lembrete: Senhores, deixai o mercado funcionar livremente! Mostrai que credes verdadeiramente nos princípios liberais que publicamente apregoais! Não vos deixeis cair em contradição! E, acima de tudo, não vos queixeis!

Mas os nossos liberais são uns pontos. Os do Governo e os da sociedade civil. É uma delícia ouvi-los elogiar a livre concorrência, a competividade e a absoluta defesa da meritocracia, que, segundo eles, premeia sempre os melhores. Vem isto a propósito das reacções de Pinto Balsemão e de Paes do Amaral, respectivamente, patrões da SIC e da TVI. Estes dois defensores da liberdade do mercado surpreenderam-me quando, há dias, se mostraram indignados com a possibilidade da RTP ser privatizada, passando para três o número de estações privadas, com sinal aberto: que isso seria uma catástrofe, que isso levaria à perda de qualidade dos programas, que isso conduziria a menos informação, que isso conduziria à perda de publicidade,  que isso... que isso...
Os nosso liberais são uns pontos. Vamos ver: defende-se a livre concorrência, ou não se defende? Defende-se que seja o mercado a escolher quem é o melhor, ou não se defende? Defende-se que a competitividade premeia o mérito, ou não se defende? 
Pode baixar a qualidade dos programas e da informação? Não acredito que possa baixar. Não é precisamente a livre concorrência e a competitividade que, no vosso entender, faz subir a qualidade? O mercado publicitário é pequeno para três: e, daí, que problema surge? O mercado saberá escolher quais são os dois melhores. Uma das televisões terá de fechar? Mas se o mercado assim o determinar, qual é o problema? Não é isto que os senhores liberais defendem permanentemente? Ou o liberalismo é sou para os outros?
Os nossos liberais são uns pontos.

Às quartas

A SECRETA IDADE

Atravessei as dilaceradas lâmpadas da insónia
Conheci o amargo sabor do livro cego
E os andrajosos pássaros da adolescência
Cheguei à secreta idade da ignorância
E a poeira da dança cobre os meus cabelos
Como se fosse um deus desfeito    E o perfume do prodígio
Liberta-se por vezes não como uma cinza última
Mas como um sopro mais alto do que o mar
No alento do livro toco os ardentes limites
Da terra    Já não sei se vivi     Estou no círculo branco
Rodeado de musicais andaimes   A minha voz é o corpo
Que adere à redondez profunda
Do intacto

António Ramos Rosa

segunda-feira, 4 de julho de 2011

Para clicar


Trechos - Tony Judt

«Por que motivo, nas últimas três décadas, tem sido tão fácil ao poder convencer os seus eleitores da sabedoria — e, de qualquer modo, da necessidade — das políticas que quer seguir? Porque não tem havido alternativa coerente. Mesmo quando há diferenças políticas significativas entre os principais partidos, elas são apresentadas como versões de um único objectivo. Tornou-se um lugar-comum declarar que queremos todos o mesmo, e que temos só formas ligeiramente diferentes de o conseguir.
Mas isso é simplesmente falso. Os ricos não querem o mesmo que os pobres. Os que dependem do seu emprego para viver não querem o mesmo que os que vivem de investimentos e dividendos. Os que não precisam de serviços públicos — porque podem adquirir educação, protecção e transporte privados — não procuram o mesmo que os que dependem exclusivamente do sector público. Os que ganham com guerra — como fornecedores da defesa ou em bases ideológicas — têm objectivos diferentes de quem está contra a guerra.
As sociedade são complexas e contêm interesses em conflito. Afirmar o contrário — negar distinções de classe ou riqueza ou influência — é apenas um modo de promover um conjunto de interesses sobre outro. Esta proposição costumava ser óbvia; hoje somos incentivados a rejeitá-la como um encorajamento incendiário do ódio de classe.»
Tony Judt, Um Tratado Sobre os Nossos Actuais Descontentamentos, pp. 161-162. 

Uma fita assim-assim: «Pequenas mentiras entre amigos», de Guillaume Canet

Anotações

[Modelo de] Avaliação [dos professores] continua

Passos quebra promessa de campanha e anuncia corte no subsídio de Natal
Público (1/7/11)

Os títulos dos jornais são sobre Passos Coelho, mas são-no apenas na aparência, porque, na realidade, estes títulos são sobre Sócrates.
Portugal está a pagar, e vai pagar durante muitos anos, a factura de ter tido como primeiro-ministro um político daquele jaez. Não me refiro apenas à factura financeira, refiro-me igualmente à factura política e a tudo o que ela consigo arrasta.
Com um discurso hipócrita, que se auto-classificava de esquerda, Sócrates chefiou os dois executivos que, desde o 25 de Abril, mais à direita governaram. Deste modo, Sócrates descredibilizou o discurso que hipocritamente proferia: quer pelo seu exemplo pessoal, quer pelo exemplo da sua prática política. Foi assim que, com naturalidade, a direita venceu as eleições. Sócrates foi o primeiro responsável dessa vitória. Adicionalmente, Sócrates deixou uma pesada herança ao PS: deixou um partido envergonhado, de má consciência, cabisbaixo; e deixou um partido manietado para o futuro próximo, pelos compromissos que assinou com as entidades estrangeiras que resgataram Portugal. 
Sócrates foi, de todos os pontos de vista, um enorme desastre para o país e para o PS.
O desastre foi de tal dimensão que deixou os portugueses em estado de completa prostração. Se, normalmente, os portugueses não são possuídos de grandes estados energéticos (exceptuando alguns momentos de êxtase relacionados com pontapés na bola), agora, o seu entorpecimento é praticamente absoluto. Por um lado, estão convencidos de que sobre nós caiu uma maldição, que nos vai obrigar a cumprir um fado de sofrimento e miséria; por outro lado, depois de seis anos de permanente desonestidade política, já não se impressionam, já não se espantam, já não se indignam, seja lá com o que for. 
É a herança de Sócrates. É por isso que os títulos do Público se referem mais ao anterior primeiro-ministro e do que ao actual. Se não estivéssemos habituados a seis anos de promessas fantásticas seguidas de mentiras fantásticas, não poderíamos aceitar, com naturalidade e indiferença, que Passos Coelho, no primeiro dia em que discursou no Parlamento, tivesse declarado, com particular à vontade, o oposto daquilo que prometeu e com que se comprometeu, antes e durante a campanha eleitoral. Depois de ter votado, no final da legislatura anterior, a revogação do modelo de (pseudo) avaliação dos professores, agora anunciou que não o vai revogar; depois de ter garantido várias vezes, antes e durante o período eleitoral, que não lançaria novos impostos sobre os salários nem sobre os subsídios de férias ou de Natal, agora anunciou que vai lançar um imposto de quase 50% sobre o 14.º mês. 
No primeiro dia e num só dia, Passos Coelho repetiu Sócrates, em dose dupla. Passos Coelho foi Sócrates. As notícias são, pois, sobre este, não sobre aquele.

domingo, 3 de julho de 2011

Pensamentos de domingo

«Já alguma vez se ouviu falar numa criança que tenha brincado ao técnico de contas, ou mesmo que tenha querido ser um?»
Jackie Mason

«Eu contei a verdade à minha esposa. Disse-lhe que costumava ir a um psiquiatra. Ela contou-me então que costumava ir a um psiquiatra, a dois canalizadores e a um empregado de bar.»
Rodney Dagerfield
In José Manuel Veiga, Manual para Cínicos.
«Deus é o único ser que, para reinar, nem precisa de existir.»
Charles Baudelaire
In Paulo Neves da Silva, Dicionário de Citações.

John Zorn

sábado, 2 de julho de 2011

Carta ao primeiro-ministro, de Octávio Gonçalves

O meu colega e amigo Octávio Gonçalves dirigiu, ao primeiro-ministro, uma carta a exigir, em nome da seriedade da confiança, a revogação imediata do actual modelo de avaliação do desempenho docente e de todos os seus processos e consequências.
Seguidamente, transcrevo essa carta.

Sua Excelência,
Senhor Primeiro-ministro, Dr. Pedro Passos Coelho.

C/C
Sua Excelência,
Senhor Ministro da Educação e Ciência, Prof. Dr. Nuno Crato.

É pública a discordância de Vossa Excelência relativamente à filosofia que enforma o actual modelo de avaliação do desempenho dos professores, a qual se suporta na total desresponsabilização da tutela e na completa ausência de dimensão externa, alienando o processo ao arbítrio da avaliação entre pares, em que qualquer um está em condições de avaliar qualquer outro, sem se cuidar do reconhecimento da autoridade, da formação, do rigor, do acautelar de conflitos de interesses e da isenção.

É, também, pública a forma enfática como Vossa Excelência tem rejeitado os processos em que se tem vindo a concretizar a implementação deste modelo de avaliação, chegando ao ponto de os qualificar, adequadamente, como "monstruosos" e "kafkianos".

De igual forma, os professores conhecem o seu empenho e convicção em revogar o actual modelo de avaliação, caso contrário não se exporia à acusação de eleitoralismo quando procurou eliminá-lo, no Parlamento, em Março de 2011, do mesmo modo que são testemunhas, tanto do seu aproveitamento eleitoral da figura e das ideias do Professor Santana Castilho, como da sua afirmação de que possuía uma alternativa ao modelo actual ou, ainda, das suas declarações públicas, em sucessivas entrevistas, que iam no sentido do compromisso em acabar com a vigência de tamanha aberração burocrática, pelo que os professores não compreendem outra decisão que não seja a de verem revogado, nos próximos dias, este modelo.

Certamente, não ignora Vossa Excelência, até porque o Professor Santana Castilho deve tê-lo elucidado à saciedade e o Professor Nuno Crato ainda ontem o reafirmou no Parlamento, que este modelo de avaliação não garante condições mínimas de fiabilidade, de seriedade e de imparcialidade, constituindo, quer o principal foco de conflitualidade e de instabilidade nas escolas, quer o pretexto contraproducente para ocupações burocráticas e para produções folclóricas e artificiais que, além de inúteis e destituídas de qualquer impacto positivo nas aprendizagens dos alunos, se consumam num processo opaco de atribuição de classificações que impede, mercê da sua natureza sigilosa, qualquer possibilidade de escrutínio público da avaliação do mérito dos avaliados, sendo susceptível de gerar injustiças, seja sob a forma de favorecimentos, de prejuízos e, mesmo, de incontrolada subjectividade ou incapacidade na avaliação.

Não está em causa acreditar que Vossa Excelência proporá uma nova avaliação (até tomo a liberdade de lhe sugerir que, para aumentar a fiabilidade e a isenção do processo, o docente que vai mudar de escalão possa ser objecto de uma classificação de serviço que resulte da média das classificações atribuídas pelo coordenador de departamento/grupo disciplinar, pelo director e pelo inspector da IGE, uma vez reorganizada esta estrutura por áreas científicas/disciplinares), mas, uma vez consciente do carácter arbitrário, perturbador e injusto do modelo em vigor, torna-se um imperativo de seriedade e de preservação da relação de confiança com os professores que Vossa Excelência despache no sentido da cessação imediata dos processos avaliativos que decorrem, neste momento, nas escolas, inviabilizando que cheguem ao seu termo e gerem injustiças irreparáveis, tanto em termos de progressões na carreira e de concursos, como ao nível da deterioração dos climas relacionais e do regular funcionamento das escolas.

Se Vossa Excelência optar por legitimar este ciclo avaliativo, permitindo a sua finalização, estará, de todo, ciente de ficar associado a uma farsa avaliativa e de ser o responsável pela quebra irreversível da confiança que milhares de professores depositaram em Vossa Excelência, com todas as consequências que daqui advirão em termos, quer da avaliação pública da sua credibilidade, quer da disponibilidade dos professores para se envolverem activamente na concretização das mudanças que postula para a escola pública.

Na expectativa de que prevalecerá o seu sentido de exigência e de fidelidade às iniciativas e intervenções pré-eleitorais e eleitorais, aguardo a sua decisão de revogação imediata do modelo de avaliação de professores em vigor e a declaração de nulidade de todos os processos em curso e suas consequências.

Subscrevo-me, respeitosamente,

Octávio V. Gonçalves
Professor do quadro da Escola Secundária de S. Pedro, em Vila Real.


Para quem desejar enviar esta ou outra tomada de posição, aqui ficam os endereços do Primeiro-Ministro e do Ministro da Educação:

Morada do Primeiro-Ministro
Primeiro-Ministro, Dr. Pedro Passos Coelho
Rua da Imprensa à Estrela, 4 - 1200-888 Lisboa
Correio electrónico do Primeiro-Ministro: pm@pm.gov.pt

Morada do Ministro da Educação
Ministro da Educação, Prof. Dr. Nuno Crato
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