sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Novas Oportunidades (4)

A superficialidade e a leviandade com que o discurso político trata a Iniciativa Novas Oportunidades (INO), seja para a criticar seja para a elogiar, retrata bem a qualidade dos políticos que temos. Ambas as partes limitam-se a repetir clichés que afrontam (mesmo quando elogiam) quem, como professor ou como aluno (na terminologia da INO: como formador ou como formando), trabalha e se confronta com uma realidade que pouco tem que ver com a enunciada pelo discurso político, invariavelmente mais preocupado com os efeitos mediáticos das afirmações que profere do que com a resolução séria dos problemas.
Como já referi em textos anteriores, as observações que aqui vou deixando sobre a INO não entram nessa bravata, são somente notas de quem por sensibilidade e dever profissional considera que deve contribuir, ainda que modestamente, para uma análise e um debate de uma iniciativa que, para o bem ou para o mal, já mexeu com a vida de cerca de um milhão de portugueses e que representou e representa um investimento avultado no domínio da Educação.
Relembrado o contexto destes apontamentos, continuarei a dar a minha opinião sobre esta matéria.

Um dos problemas graves de que a INO padece é a de na sua concepção ser dominante um pensamento que, reclamando-se conhecedor das motivações e das necessidades educativas e formativas dos adultos, se revela estruturado em noções pouco consistentes, do ponto de vista teórico e, acima de tudo, muito desadequadas da realidade sobre a qual pretende agir.
Vejamos. Vou transcrever algumas frases inscritas numa das páginas do Guia de Operacionalização de Cursos de Educação e Formação de Adultos — numa só página (p.15) encontramos o seguinte:
«[...] Os cursos EFA pautam-se pelos princípios da abertura e da flexibilidade, permitindo a adaptação curricular a diferentes perfis.» 
«[...] Esta oferta formativa [cursos EFA] traduz uma lógica de construção pessoal e local, no respeito pelo percurso de vida e/ou de escolaridade de cada formando.»
«O modo como a formação se desenvolve estará, necessariamente, determinado pelo princípio da adaptabilidade, independentemente da tipologia de percurso que se implemente: a definição do percurso curricular estará definida à partida mas não o processo de aprendizagem por parte do formando.»
«[...] O formando transporta consigo os seus quadros de referência pessoais, sociais e profissionais, as suas motivações e expectativas, que devem ser tidas em consideração na determinação do percurso formativo a realizar. Daqui decorre que o desenho curricular genérico acabará por se concretizar numa pluralidade de percursos formativos.»
«[...] Isto implica, necessariamente, que os formadores imprimam dinâmicas de trabalho baseadas em metodologias de diferenciação.»
«[...] Poderá dar origem a vários percursos dentro de um mesmo grupo de formação, dando corpo à diversidade característica de um modelo conceptual que pretende respeitar diferentes ritmos e intenções de aprendizagem, concretizados em combinatórias de competências a desenvolver (e até mesmo de componentes de formação) que serão diferenciadas de indivíduo para indivíduo.»
«[...] É fundamental que a equipa de profissionais de formação conheça o perfil dos formandos, de forma a encaminhar as aprendizagens através de instrumentos que se relacionem naturalmente com o quotidiano e a realidade dos mesmos.»

Abertura, flexibilidade, adaptação curricular, construção pessoal e local, respeito pelo percurso de vida, princípios de adaptabilidade, processo de aprendizagem não pré-definido, desenho curricular concretizado numa pluralidade de percursos formativos, dinâmicas de trabalho baseadas em metodologias de diferenciação, vários percursos dentro de um mesmo grupo de formação, respeito pelos diferentes ritmos e intenções de aprendizagem concretizados em combinatórias de competências a desenvolver, encaminhamento das aprendizagens através de instrumentos que se relacionam naturalmente com o quotidiano e a realidade dos formandos — impressiona como numa única página se conglomeram tantos conceitos e se desenvolve uma discursividade que, em roda livre, parece auto-alimentar-se.
Na página seguinte, faz-se a recarga da mesma discursividade:
«[...] Um curso EFA assenta numa atitude formativa que passa pela flexibilização das competências e estratégias para a sua aquisição, pela articulação entre as áreas de competência-chave da componente da formação de base, e entre estas e a formação tecnológica, estratégias essas que farão tanto mais sentido quanto melhor estiverem enquadradas nos contextos e percursos pessoais e socioculturais dos formandos.»
No parágrafo seguinte, continua-se:
«[...] As metodologias de formação desenvolvem-se numa lógica de “actividades integradoras”, que convocam competências e saberes de múltiplas dimensões, que se interseccionam e entreajudam para resolver problemas em conjunto.»
No mesmo fôlego acrescenta-se:
«Este modelo de acção implica uma atitude activa dos formandos, que devem ser impelidos a investigar, a reflectir e analisar, desenvolvendo aprendizagens que sejam significativas para si, dado que nenhuma aprendizagem é significativa por si, mas apenas quando o aprendente se empossa dela e a valoriza porque lhe reconhece aplicabilidade e significado no seu quadro de referências pessoais e sociais.»
Para, a propósito do conceito de competência, se concluir desta forma:
«Esta metodologia implica um trabalho colaborativo entre os elementos da equipa pedagógica, que só poderá construir actividades integradoras se planificar em conjunto, entendendo a competência como um todo complexo de “saberes” e “saberes-fazer” nos mais diversos domínios, inseparável da concretização de um plano de trabalho transversal entre as componentes da formação» (o sublinhado é meu).
Proceder à análise de cada uma destas frases daria origem, provavelmente, a dezenas de posts, mas podemos abreviar porque a derradeira citação ilustra o que de essencial é comum à maioria das frases citadas — refiro-me ao modo como o conceito de «competência» é tratado: «como um todo complexo de “saberes” e “saberes-fazer” nos mais diversos domínios, inseparável da concretização de um plano de trabalho transversal entre as componentes da formação.» Penso que devemos desconfiar sempre de alguém que, ao definir algo, começa essa definição por «é um todo complexo» — fica-se de imediato derrotado com o «todo» e com o «complexo». Todavia, penso que ainda mais desconfiados devemos ficar, se, nessa definição, se acrescenta que esse todo engloba tudo, que é isso que se diz, quando se afirma que é «um todo complexo de "saberes" e "saberes-fazer" nos mais diversos domínios». Neste entendimento, a «competência» é pois um conjunto («um todo») intrincado («complexo») de conhecimentos («saberes») e de técnicas, habilidades, destrezas («saberes-fazer») de uma globalidade («nos mais diversos domínios»). Depois desta definição de competência, parece-me ser inevitável perguntar: afinal o que é exactamente uma «competência»?

Dei como exemplo o modo como esta discursividade trata o conceito de «competência» — que nos obriga, no final, a voltar a perguntar: «o que é competência?» — apenas para observar que, genericamente, na INO, grande parte dos conceitos são tratados deste modo, quer na fundamentação teórica quer, depois, no próprio domínio concreto dos conteúdos das designadas UFCD - Unidades de Formação de Curta Duração.
Ora, tudo isto levanta enormes problemas. De alguns deles procurarei dar conta em textos seguintes — e, deste modo, ir respondendo à segunda e à terceira perguntas formuladas no post Novas Oportunidades (2).