sexta-feira, 1 de outubro de 2010

A naturalidade de serem os profissionais do Estado a pagar, em dobro, as consequências da crise

Tornou-se uma assumida naturalidade que, em momentos de crise, sejam os profissionais do Estado a pagar, em dobro, isto é, em impostos e em salário, as consequências dessa crise (para além dos desempregados, que as pagam de modo desmedido). Contudo, quando se pergunta pelo fundamento dessa naturalidade, as respostas escasseiam e as poucas que se ouvem não fazem mais do que repetir clichês, cuja justificação nunca aparece.
Por que razão se considera natural que seja um segmento específico da população particularmente penalizado? Quais são os conceitos de justiça social que sustentam essa penalização directamente dirigida?
A resposta clichê costuma ser esta: «É o Estado que tem dívidas, é o Estado que está a gastar demais, por conseguinte, tem de ser ele a poupar nas despesas que tem. Ora como uma das maiores despesas que o Estado tem é com os salários dos seus profissionais, é aí que tem de cortar.» Normalmente, este clichê é acompanhado de um ar sapiente, próprio de quem profere uma evidência inquestionável.
Como não estou na posse desse saber supremo, permito-me a leviandade de fazer algumas observações. Começarei por observações abstractas, observações de princípio, para, depois, me referir à crise específica que estamos a atravessar.

Em abstracto.
1. Quando um Estado tem dívidas em excesso, essa responsabilidade é dos seus profissionais? Isto é, são os profissionais do Estado que elaboram e que aprovam o seu Orçamento Geral? São os profissionais do Estado que discutem e definem as prioridades e tomam as opções em termos de gastos e de investimentos? Não são. Os profissionais do Estado não são tidos nem achados em nenhuma destas decisões. Essas decisões cabem e são tomadas exclusivamente pelos políticos que governam o País. Os bons ou maus orçamentos do Estado não são da responsabilidade dos seus profissionais. Por que razão, então, são eles co-responsabilizados (baixando-lhes os salários) naquilo de que não têm responsabilidade?

2. O Estado gasta a mais na Saúde? Gasta a mais na Educação? Gasta a mais na Justiça? Gasta a mais na Defesa? Gasta a mais nos subsídios sociais? Gasta a mais na Agricultura? Etc. etc. etc.? Vamos admitir que sim, que gasta a mais em tudo isto. A questão seguinte é esta: O «gasta a mais em tudo isto» é gasto com quem? É gasto com os profissionais do Estado?
Os gastos a mais na Saúde são feitos a tratar da saúde dos profissionais do Estado? Em Portugal, os profissionais do Estado são, se não me engano, cerca de 700 mil; os portugueses são cerca de 10 milhões. Significa que há cerca de 9 milhões e 300 mil portugueses que usufruem dos hospitais e dos centros de saúde e que não são profissionais do Estado. Por que razão, então, hão-de ser os profissionais do Estado particularmente responsabilizados (baixando-lhes os salários) por esses gastos excessivos?
O exemplo que acabei de dar na Saúde, aplica-se a qualquer outra área da governação. As escolas, os tribunais, os hospitais, as forças armadas, etc. estão ao serviço de quem? Apenas dos profissionais do Estado? Não. Estão ao serviço dos profissionais do Estado, em particular? Também não. Estão ao serviço de toda a população. Então, por que razão hão-de ser eles, os profissionais do Estado, particularmente responsabilizados (baixando-lhes os salários) por esses gastos considerados excessivos?

3. O Estado tem profissionais a mais? Vamos admitir que sim. Quem contratou esses profissionais? Foram os profissionais que se contrataram a si próprios? Quem deu autorização para essas contratações ditas excessivas? Os governantes, mais ninguém. Por que razão hão-de ser os profissionais do Estado particularmente responsabilizados (baixando-lhes os salários) pelas más decisões dos governantes? Foram apenas os profissionais do Estado que elegeram esses governantes? Não foram os 6 milhões de eleitores? Nesse caso, temos de voltar a perguntar: por que razão hão-de ser os profissionais do Estado especialmente responsabilizados?
Não vislumbro — mas, como se imagina, teria todo o interesse nisso — que fundamentos sérios existem para sustentar uma penalização especificamente dirigida aos profissionais do Estado.

Agora, em concreto.
A presente crise não foi despoletada pelos profissionais do Estado. Começou por ser despoletada pela ganância, pela irresponsabilidade, pelo desvario de um sector privado, concretamente, pelos mercados financeiros. Foi despoletada por criminosos (alguns estão na cadeia) e por aventureiros privados. Esse sector privado, que em épocas de desenfreada acumulação de riqueza vitupera o Estado, veio implorar ajuda ao Estado para pagar as dívidas que a sua irresponsabilidade e usura provocaram. E os Estados pagaram. E os Estados endividaram-se ainda mais por causa do sector privado. (No caso português, o Estado ainda se endividou proporcionalmente mais que a maior parte — proporcionalmente mais, atendendo à nossa frágil economia — porque temos um Governo eleitoralista e objectivamente incompetente).
Sendo assim, se, em concreto, a origem e o desenvolvimento da crise residiu no sector privado, por que razão hão-de ser os profissionais do Estado particularmente penalizados?

Quer do ponto de vista abstracto, quer do concreto, não encontro nenhuma justificação para que se diga e se aceite com naturalidade, e como uma fatalidade, que os profissionais do Estado têm de ser especialmente penalizados.
Como não sei por que razão, a ter de haver penalização, ela não é proporcionalmente repartida por todos, em função das efectivas responsabilidades que tiveram no despoletar da crise.
Mas tudo isto são, certamente, perplexidades próprias da minha leviandade e da minha ingenuidade.