sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Fragmentos

«Apesar de tudo ela estava em paz com o mundo, pois embora não tivesse estudado para ser professora primária, como era seu sonho, agora era ervanária e, segundo alguns, vidente, e imensas pessoas estavam gratas por algumas coisinhas que ela fizera por elas, nada importante, pequenos conselhos, pequenas indicações, como, por exemplo, recomendar-lhes que introduzissem na sua dieta a fibra vegetal, que não é comida para seres humanos, isto é, o n osso aparelho digestivo não consegue digerir e absorver, mas que é boa para ir à casa de banho e para fazer as necessidades ou, com perdão do Reinaldo e do distinto público, para defecar. Só o aparelho dos animais herbívoros, dizia Florita, é que contém substâncias capazes de digerir a celulose e portanto de absorver os seus componentes, as moléculas da glucose. A celulose e outras substâncias semelhantes são o que nós chamamos fibra vegetal. O seu consumo, apesar de não nos fornecer elementos energéticos aproveitáveis, é benéfico. Ao não ser absorvida, a fibra faz com que o bolo alimentar, no seu percurso pelo tubo digestivo, mantenha o seu volume. E isso vai gerar pressão no interior do intestino, o que estimula a sua actividade, fazendo com que os restos da digestão avancem facilmente ao longo de todo o tubo digestivo. Ter diarreia não é bom, salvo raras excepções, mas ir à casa de banho uma ou duas vezes por dia proporciona tranquilidade e moderação, uma espécie de paz interior. Não uma grande paz interior, não sejamos exagerados, mas sim uma pequena e reluzente paz interior. Que diferença entre o que representa a fibra vegetal e o que representa o ferro! A fibra vegetal é comida de herbívoros, é pequena e não nos alimenta, só nos proporciona uma paz do tamanho de um feijão saltitão. O ferro, pelo contrário, representa a dureza em relação aos outros e em relação a nós mesmos na sua máxima expressão. De que ferro é que estou a falar? Pois do ferro com que se fazem as espadas. Ou com que se faziam as espadas e que também representa a inflexibilidade. Em qualquer dos casos, era com o ferro que se matava. O rei Salomão, esse rei tão inteligente, provavelmente o mais inteligente que alguma vez houve na História, por sua vez filho do rei das mañanitas e protector da infância, embora se diga que certa vez ele quis cortar um menino ao meio, quando mandou construir o Templo de Jerusalém proibiu taxativamente que se utilizasse o ferro como material de suporte na construção, nem no mais pequeno pormenor, e também proibiu que se utilizasse o ferro na circuncisão, uma prática, diga-se de passagem e sem vontade de ofender, que talvez tenha tido razão de ser naquela época e naqueles desertos, mas que agora, com as medidas de higiene modernas, me parece um exagero. Eu acho que os homens deviam ser circuncidados aos vinte e um anos, se quiserem, e se não quiserem não faz mal nenhum.»
Roberto Bolaño, 2666, pp. 526-528.