sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Fragmentos

«A sua mãe era zarolha. Tinha o cabelo muito louro e era zarolha. O olho bom era celeste e calmo, como se ela não fosse muito inteligente, mas em compensação boa, de sobra. O seu pai era coxo. Tinha perdido a perna na guerra e passara um mês num hospital militar perto de Düren, pensando que daquela não saía e a ver como os feridos que se podiam mexer (ele não!) roubavam os cigarros aos feridos que não se podiam mexer. Quando lhe quiseram roubar os cigarros, porém, ele agarrou no colarinho do ladrão, um tipo sardento e de maçãs do rosto largas, costas largas, ancas largas e disse-lhe: alto aí! Com o tabaco de um soldado não se brinca! Então o sardento afastou-se e caiu a noite e o pai teve a impressão de que alguém olhava para ele.
Na cama ao lado havia uma múmia. Tinha os olhos negros como dois poços profundos.
- Queres fumar? - perguntou ele.
A múmia não respondeu.
- Fumar é bom - disse ele, e acendeu um cigarro, procurou a boca da múmia entre as ligaduras.
A múmia estremeceu. Talvez não fume, pensou ele, e retirou-lhe o cigarro. A lua iluminou a ponta do cigarro, que estava manchada por uma espécie de bolor branco. Então voltou a introduzir-lho entre os lábios, ao mesmo tempo que lhe dizia: fuma, fuma, esquece-te de tudo. Os olhos da múmia não o largavam, talvez, pensou ele, seja um camarada de batalhão que me reconheceu. Mas porque é que ele não diz nada? Talvez não consiga falar, pensou. O fumo, de repente, começou a sair por entre as ligaduras. Ferve, pensou ele, ferve, ferve.
O fumo saía à múmia pelas orelhas, pela garganta, pela testa, pelos olhos, que nem assim deixavam de olhar para ele, até que ele soprou e lhe retirou o cigarro dos lábios e continuou a soprar mais um bocado sobre a cabeça ligada até que o fumo desapareceu totalmente. Depois apagou o cigarro no chão e adormeceu.
Quando acordou, a múmia já não estava a seu lado. Onde está a múmia?, disse ele. Morreu esta manhã, disse alguém da sua cama. Então ele acendeu um cigarro e pôs-se a esperar pelo pequeno-almoço.»
Roberto Bolaño, 2666, pp. 731-732.