terça-feira, 5 de junho de 2012

Nacos

Canto III

128
Homens há que usam o arrependimento
como se usa uma técnica de carpinteiro
sobre as madeiras, mas o sentimentos
são inúteis no mundo que existe, onde apenas
se registam os actos. O arrependimento,
enquanto torção leve do coração, é um acto íntimo, interior;
é nada, portanto.

129
O meu pai, John Bloom, arrependeu-se?
Que sei eu do que não se vê?
O certo é que três homens
mataram uma mulher que eu julgava ser
inseparável dos dias.
Tudo o resto é íntimo e nada.

130
Uma mulher bela de nome Mary foi morta.
Todos os humanos são incompletos,
mas vê-la tornava-os inteiros.
(como se ter olhos fosse bem melhor
do que sempre se julgara
— era isto que se dizia.)

131
Já todos espreitámos a náusea
pelo que resta da porta entreaberta. Sabemos
que o sol não limpa uma mesa suja.
Porém, o sol faz mais forte uma mesa
de madeira vazia. Porque o sol
gosta dos objectos puros,
e o vento também.
E até a poeira vinda de cima se aproxima primeiro
do que está limpo.

132
Mary morreu e Bloom amava-a,
caro Jean M.
O mundo é isto: combate-se. Atacamos, defendemos.
Há milénios atrás, em certos locais,
as flores foram indícios da futura fábrica.
Vejo e percebo: do jardim
vem um fumo que já não cheira a delicadezas.
Gonçalo M. Tavares, Uma Viagem à Índia, Caminho