A «memória descritiva» que, nos textos anteriores, tenho tentado fazer sobre algumas das razões que, no meu entendimento, põem em causa a alegada superlativa fiabilidade dos exames nacionais e, por consequência, a defesa da sua universalização e do seu carácter decisivo na aprovação do aluno, vai hoje ser brevemente interrompida. A razão é esta: não consigo resistir a comentar o imenso folclore que mais uma vez envolve a realização dos nossos exames nacionais, cujo ínicio está marcado para a próxima segunda-feira. Refiro-me ao folclore em torno das normas que regulam a vigilância dos exames.
1. Aproximadamente há cerca de uma década, não sei precisar, a realização destas provas passou a ser pretexto para um imenso populário que, pretendendo transformar os exames nacionais num momento de sacralidade extrema, acaba por fazer deles um momento quase burlesco. Na verdade, foi perdida a noção do ridículo, porque a substância e o sentido das coisas foram perdidos. Quando assim acontece, o extravagante, o picaresco substitui a substância, e esta troca tem sempre consequências terríveis — em particular, quando o conteúdo cede o lugar à forma, e a forma é somente uma aparência pimba.
Com efeito, nos últimos anos, tem-se desenvolvido um distúrbio mental dirigido à Escola portuguesa — naturalmente, que este distúrbio é reflexo de um distúrbio mais global de que o país tem sofrido e continua a sofrer, mas o facto é que a Escola parece ter sido escolhida como alvo prioritário a contaminar. Quem hoje está por dentro da parafernália de regras e de determinações que provêm do Júri Nacional de Exames, e que depois são ampliadas, interpretadas e executadas pelos agrupamentos e pelas escolas, pode legitimamente interrogar-se como é que há vinte, trinta ou quarenta anos era possível realizar exames sem a esquizofrenia normativa que agora existe. Se compararmos os procedimentos e as práticas desse tempo com o actual pergunta-se de que moléstia padecem as cabeças que hoje têm como entretenimento inventar normativos, determinar comportamentos e, sem contexto nem equilíbrio, fabular incomensuráveis responsabilidades e potenciais sentimentos de culpa nos professores vigilantes.
Com efeito, nos últimos anos, tem-se desenvolvido um distúrbio mental dirigido à Escola portuguesa — naturalmente, que este distúrbio é reflexo de um distúrbio mais global de que o país tem sofrido e continua a sofrer, mas o facto é que a Escola parece ter sido escolhida como alvo prioritário a contaminar. Quem hoje está por dentro da parafernália de regras e de determinações que provêm do Júri Nacional de Exames, e que depois são ampliadas, interpretadas e executadas pelos agrupamentos e pelas escolas, pode legitimamente interrogar-se como é que há vinte, trinta ou quarenta anos era possível realizar exames sem a esquizofrenia normativa que agora existe. Se compararmos os procedimentos e as práticas desse tempo com o actual pergunta-se de que moléstia padecem as cabeças que hoje têm como entretenimento inventar normativos, determinar comportamentos e, sem contexto nem equilíbrio, fabular incomensuráveis responsabilidades e potenciais sentimentos de culpa nos professores vigilantes.
Nos guias de instruções para a realização de exames nacionais encontram-se passagens como esta: «A função de vigilante de provas de exame é uma das mais importantes e de maior responsabilidade de todo o processo das provas finais de ciclo e dos exames finais nacionais, já que um lapso por parte dos professores vigilantes numa única sala poderá pôr em causa toda uma prova a nível nacional» (o negrito é meu). Para além da delícia linguística da expressão «toda uma prova», o que ressalta deste excerto é a desequilibrada necessidade de atemorizar e o desequilibrado peso de responsabilidade atribuído a uma função que apenas precisa de ser feita com seriedade profissional e nada mais. Contudo, quem lê este parágrafo fica com a impressão de que estamos perante uma responsabilidade idêntica à da manutenção de um segredo de Estado, cuja violação coloca em perigo a segurança da nação.
2. A existência de telemóveis tem constituído um afrodisíaco para as mentes normativas dos exames nacionais. Ano após ano observa-se que a fruição do desejo e do prazer de procurar a forma perfeita de impedir a interferência do telemóvel na realização das provas é inibida ou frustrada pela impotência objectiva de o conseguir de forma simples. Deste problema de desejo não concretizado resultam regras assim enunciadas: «Qualquer telemóvel ou outro meio de comunicação móvel que seja detetado na posse de um examinando, quer esteja ligado ou desligado, determina a anulação da prova pelo diretor do estabelecimento de ensino» (o negrito é meu). As mentes normativas, em lugar de prescreverem de modo claro que é proibida a entrada de telemóveis ou de outros meios de comunicação móvel na sala em que decorre o exame, optam por expressões que as mentes interpretativas depois questionam e da qual resultam análises e hermenêuticas do maior interesse: «na posse» significa o quê? Significa que o telemóvel se encontra num bolso do vestuário do aluno? E se o telemóvel estiver na mochila e a mochila for depositada junto da secretária do professor (conforme manda o normativo) continua a considerar-se que ainda está na «posse» ou já não está «na posse» do aluno? E se, nesta circunstância (dentro da mochila, junto à secretária do professor), o telemóvel tocar durante a realização do exame, o aluno proprietário do telemóvel fica com a prova anulada? Ou não fica, porque o telemóvel não está na sua «posse»?
Não estou a inventar exegéses, estou a transcrever objectivamente partes de um agradável debate que, nos agrupamento de exames e nas escolas, tem ocorrido.
3. Este ano foi introduzida uma novidade: no cabeçalho da folha de resposta do aluno, para além de ser obrigatório indicar o número de páginas utilizadas (como já era), é necessário indicar também o número de folhas utilizadas, sendo que, neste caso, uma folha tem a particularidade de ser composta por quatro páginas... Não se vislumbra, e também ninguém explica, a razão de ser de mais esta norma — que previsivelmente irá introduzir mais perturbações «interpretativas» e mais ruído na fiabilidade dos dados recolhidos — mas o facto é que houve alguém que a considerou muito pertinente.
Não será arriscado tentar adivinhar que, no próximo ano, esta novidade desaparecerá...
4. Mais folclórico do que isto é a «norma» (transmitida apenas oralmente, que a ausência de pudor ainda não chegou a tal ponto...) que estipula que as professoras não devem vigiar exames com sapatos de salto alto, porque o barulho dos passos com tais tacões é susceptível de distrair os alunos, e que esta circunstância (salto alto) pode ser um justificado motivo de reclamação.
Mais folclórico e muito mais grave do que isto é uma outra «norma» (também ainda só transmitida oralmente) que «sugere», a quem vai vigiar, sentido de discrição na escolha da indumentária, de modo a que os alunos não se distraiam ou venham a queixar-se que se distraíram por ausência dessa discrição.
Prosseguindo este caminho, certamente que não teremos de aguardar muito pelo dia em que surja regulamentado o comprimento mínimo das saias, a largura mínima das calças, a área e a profundidade máximas dos decotes, o grau de transparência das roupas...
(Continua na próxima semana, mas sem referência ao folclore)
2. A existência de telemóveis tem constituído um afrodisíaco para as mentes normativas dos exames nacionais. Ano após ano observa-se que a fruição do desejo e do prazer de procurar a forma perfeita de impedir a interferência do telemóvel na realização das provas é inibida ou frustrada pela impotência objectiva de o conseguir de forma simples. Deste problema de desejo não concretizado resultam regras assim enunciadas: «Qualquer telemóvel ou outro meio de comunicação móvel que seja detetado na posse de um examinando, quer esteja ligado ou desligado, determina a anulação da prova pelo diretor do estabelecimento de ensino» (o negrito é meu). As mentes normativas, em lugar de prescreverem de modo claro que é proibida a entrada de telemóveis ou de outros meios de comunicação móvel na sala em que decorre o exame, optam por expressões que as mentes interpretativas depois questionam e da qual resultam análises e hermenêuticas do maior interesse: «na posse» significa o quê? Significa que o telemóvel se encontra num bolso do vestuário do aluno? E se o telemóvel estiver na mochila e a mochila for depositada junto da secretária do professor (conforme manda o normativo) continua a considerar-se que ainda está na «posse» ou já não está «na posse» do aluno? E se, nesta circunstância (dentro da mochila, junto à secretária do professor), o telemóvel tocar durante a realização do exame, o aluno proprietário do telemóvel fica com a prova anulada? Ou não fica, porque o telemóvel não está na sua «posse»?
Não estou a inventar exegéses, estou a transcrever objectivamente partes de um agradável debate que, nos agrupamento de exames e nas escolas, tem ocorrido.
3. Este ano foi introduzida uma novidade: no cabeçalho da folha de resposta do aluno, para além de ser obrigatório indicar o número de páginas utilizadas (como já era), é necessário indicar também o número de folhas utilizadas, sendo que, neste caso, uma folha tem a particularidade de ser composta por quatro páginas... Não se vislumbra, e também ninguém explica, a razão de ser de mais esta norma — que previsivelmente irá introduzir mais perturbações «interpretativas» e mais ruído na fiabilidade dos dados recolhidos — mas o facto é que houve alguém que a considerou muito pertinente.
Não será arriscado tentar adivinhar que, no próximo ano, esta novidade desaparecerá...
4. Mais folclórico do que isto é a «norma» (transmitida apenas oralmente, que a ausência de pudor ainda não chegou a tal ponto...) que estipula que as professoras não devem vigiar exames com sapatos de salto alto, porque o barulho dos passos com tais tacões é susceptível de distrair os alunos, e que esta circunstância (salto alto) pode ser um justificado motivo de reclamação.
Mais folclórico e muito mais grave do que isto é uma outra «norma» (também ainda só transmitida oralmente) que «sugere», a quem vai vigiar, sentido de discrição na escolha da indumentária, de modo a que os alunos não se distraiam ou venham a queixar-se que se distraíram por ausência dessa discrição.
Prosseguindo este caminho, certamente que não teremos de aguardar muito pelo dia em que surja regulamentado o comprimento mínimo das saias, a largura mínima das calças, a área e a profundidade máximas dos decotes, o grau de transparência das roupas...
(Continua na próxima semana, mas sem referência ao folclore)