Relembro que o principal objectivo destes apontamentos é o de manifestar e justificar a minha total discordância quer com o fundamentalismo que pugna pela generalização dos exames nacionais e pelo carácter decisório dos mesmos na aprovação dos alunos, quer com o fundamentalismo de sinal contrário que pretende, independentemente das circunstâncias e características específicas de cada sistema educativo e de cada país, a sua abolição.
Terminei o texto da semana passada dizendo que procuraria começar hoje a recordar alguns aspectos concretos relativos à elaboração e classificação dos exames nacionais que, no meu entendimento, são decisivos para me afastar do primeiro fundamentalismo acima referido.
Naturalmente que não descobri nenhum elemento novo sobre as críticas que são feitas aos exames nacionais. Todos os professores conhecem essas críticas, contudo, há professores e deputados e ministros que parecem esquecer a pertinência dessas críticas e, sobretudo, há muitos pais que não conhecendo as limitações e insuficiências dos exames nacionais facilmente se deixam iludir pela aura de alegado rigor e fiabilidade com que se pretende falsamente envolver este tipo de provas.
Passo, pois, a recordar algumas dessas decisivas limitações e insuficiências que, do meu ponto de vista, devem ser motivo mais do que suficiente para desaconselhar a generalização dos exames nacionais e, sobretudo, a atribuição de um peso decisório na passagem de ano de um aluno.
Começarei pela parte relativa à fase de elaboração de uma prova de exame nacional.
1. Referi no texto da semana passada que qualquer prova de exame nacional é um instrumento de avaliação que está inevitavelmente desvinculado dos processos de ensino-aprendizagem que se desenvolvem em cada escola, em cada turma e em cada ano ou anos lectivos. Esta incontornável circunstância é um handicap de relevância significativa. É consensual que esta circunstância não deveria ocorrer: qualquer avaliação tanto melhor cumpre o seu objectivo quanto mais integrada estiver no processo do qual vai resultar essa avaliação. Apesar de existir um programa nacional para cada disciplina, o processo de ensino-aprendizagem que ocorre em cada sala de aula é único e a avaliação do que resulta desse processo deveria idealmente ser feita no contexto específico desse processo e não fora dele. Parece ser indiscutível que a avaliação mais fiável é esta — sendo, evidentemente, bem realizada (tentarei aprofundar esta questão quando criticar o fundamentalismo a favor da abolição total dos exames).
Isto significa que quanto mais nos afastarmos deste ponto ideal (avaliação inserida no contexto específico de cada processo de ensino-aprendizagem) mais colocamos em causa a fiabilidade da avaliação que se fizer. Ora, o exame nacional está no extremo oposto daquele ponto ideal: não há prova de avaliação mais exterior e distante de cada processo de ensino-aprendizagem do que o exame nacional. Esta circunstância, só por si, debilita de modo significativo a ideia de uma superlativa fiabilidade dos exames.
2. Para além da especificidade de cada processo de ensino-aprendizagem não ser respeitada pelo exame nacional, ocorre uma outra circunstância que acentua a falta de fiabilidade das provas sumativas de carácter nacional: utiliza-se o mesmo instrumento de avaliação para avaliar uma grande diversidade de aprendizagens e de competências (apesar de eu não descortinar nenhuma mais-valia na introdução do conceito de «competência» no domínio da pedagogia, vou utilizá-lo aqui, pelo generalizado uso que dele se faz e porque não é este o momento para o discutir). Isto é, considera-se apropriado utilizar o mesmo instrumento de avaliação — de estrutura pouco flexível e com limitações técnicas relevantes — para avaliar aprendizagens e competências tão diversas como são aquelas que mais de dezena e meia de disciplinas requerem. O problema que se coloca é este: ou se restringe significativamente a natureza das competências a avaliar (por motivo das limitações técnicas inerentes a uma prova nacional), e, por consequência, se reconhece a falta de pertinência da generalização dos exames; ou não se restringe a natureza das competência a avaliar e, por consequência, se reconhece que a fiabilidade avaliativa dessas provas cai para níveis inaceitáveis.
3. Aprofundando um pouco mais os problemas referidos em 1 e 2: uma dificuldade que ocorre quando se inicia a fase de elaboração de uma prova nacional prende-se com a selecção das aprendizagens e das competências a avaliar. Esta dificuldade, para além de ser uma consequência objectiva da desvinculação acima referida, varia de disciplina para disciplina. Na verdade, os modos como são elaborados os programas — ponto de partida para a construção de uma prova nacional — são tão diversos e muitas vezes tão incongruentes entre si que as dificuldades de elaboração das provas são também elas muito diversas. (Na verdade, não só não existe uma matriz comum à elaboração dos programas como os pressupostos pedagógicos que presidem a essa elaboração variam de tal forma que se pode duvidar se imanam do mesmo sistema educativo).
A dificuldade na selecção das aprendizagens e das competências a avaliar torna-se quase insuperável (e certamente insuportável) se nos lembrarmos de que dois outros elementos fundamentais interferem neste processo: a análise e a interpretação que cada grupo disciplinar, em cada escola, faz do conteúdo do programa; e a aplicação específica que cada professor faz dessa análise e dessa interpretação nas planificações das suas aulas e nos processos de ensino-aprendizagem que desenvolve com os seus alunos. As variáveis que aqui intervêm são pois múltiplas e não são susceptíveis de controlo eficaz. Ora o programa de uma disciplina é o único elemento de ligação formal entre quem elabora os exames nacionais e quem desenvolve, em cada turma, os processos de ensino-aprendizagem. Se esse único elemento de ligação é inevitavelmente objecto de diferentes leituras, e essas diferentes leituras são desencadeadoras de diferentes dinâmicas, e se quem elabora as provas é mais um conjunto autónomo produtor de mais uma leitura desse programa, vemos em que fragéis alicerces de fiabilidade avaliativa assenta a construção de um exame nacional.
A este já considerável imbróglio junta-se um outro elemento de significativa relevância: a interpretação que os autores dos manuais escolares fazem dos programas. Essa interpretação, que depois se traduz num manual escolar com um determinado conteúdo, com uma determinada forma e com pressupostos e objectivos pedagógicos muitas vezes pouco coincidentes com outros manuais da mesma disciplina, é mais um factor que objectivamente condiciona a prática lectiva de muitos professores e as aprendizagens de muitos alunos.
Neste universo constituido por tantas partes que muitas vezes se amontoam e não poucas vezes se contrapõem, é obrigatório perguntar pelo grau de fiabilidade que é possível garantir na elaboração de exames nacionais.
Na próxima semana, e continuando ainda na fase da elaboração, tentarei abordar algumas dificuldades que a formulação de perguntas de exame nacional suscita, dificuldades que novamente nos conduzirão a questionar onde se encontra o superlativo rigor, a superlativa fiabilidade e a superlativa credibilidade das provas nacionais.
A dificuldade na selecção das aprendizagens e das competências a avaliar torna-se quase insuperável (e certamente insuportável) se nos lembrarmos de que dois outros elementos fundamentais interferem neste processo: a análise e a interpretação que cada grupo disciplinar, em cada escola, faz do conteúdo do programa; e a aplicação específica que cada professor faz dessa análise e dessa interpretação nas planificações das suas aulas e nos processos de ensino-aprendizagem que desenvolve com os seus alunos. As variáveis que aqui intervêm são pois múltiplas e não são susceptíveis de controlo eficaz. Ora o programa de uma disciplina é o único elemento de ligação formal entre quem elabora os exames nacionais e quem desenvolve, em cada turma, os processos de ensino-aprendizagem. Se esse único elemento de ligação é inevitavelmente objecto de diferentes leituras, e essas diferentes leituras são desencadeadoras de diferentes dinâmicas, e se quem elabora as provas é mais um conjunto autónomo produtor de mais uma leitura desse programa, vemos em que fragéis alicerces de fiabilidade avaliativa assenta a construção de um exame nacional.
A este já considerável imbróglio junta-se um outro elemento de significativa relevância: a interpretação que os autores dos manuais escolares fazem dos programas. Essa interpretação, que depois se traduz num manual escolar com um determinado conteúdo, com uma determinada forma e com pressupostos e objectivos pedagógicos muitas vezes pouco coincidentes com outros manuais da mesma disciplina, é mais um factor que objectivamente condiciona a prática lectiva de muitos professores e as aprendizagens de muitos alunos.
Neste universo constituido por tantas partes que muitas vezes se amontoam e não poucas vezes se contrapõem, é obrigatório perguntar pelo grau de fiabilidade que é possível garantir na elaboração de exames nacionais.
Na próxima semana, e continuando ainda na fase da elaboração, tentarei abordar algumas dificuldades que a formulação de perguntas de exame nacional suscita, dificuldades que novamente nos conduzirão a questionar onde se encontra o superlativo rigor, a superlativa fiabilidade e a superlativa credibilidade das provas nacionais.