terça-feira, 12 de junho de 2012

Nacos

Canto V

40
De qualquer maneira, ninguém está assim tão vivo.
O inexplicável não é, muitas vezes, o reduzido número de paixões
por dia, mas sim a razão por que não nos atiramos todos, 
um a um, a intervalos regulares, de um prédio alto.
Não há duas pessoas que estejam ao mesmo tempo
no mesmo lugar: uma pessoa foge das
outras. No autocarro, lê-se o jornal para não se olhar para o lado.
O frio deixou de entrar pela janela — entra pelas notícias.
Fecha-se o jornal; já podes levantar os olhos: felizmente, estás sozinho.

41
Os homens estão desolados e com insónias.
Tomam comprimidos e dizem
versos belíssimos, mas esquecem de regar
as plantas. Todos os seres vivos morrerão
se passares dia e noite a recitar versos,
a corrigir pequenos problemas de dicção,
a organizar, por fora, a História da beleza.
É feio e ficou, eis o Homem.
 42
Pagas para ver ruínas e dizes: que belo!
Da janela admiras o exercício explícito do cio
nos animais: nos cães abundam
as semelhanças com a nossa espécie,
mas ficas chocado. Quase fechas a janela.
Não têm pudor, nem quartos baratos
em pensões indecisas: os cães têm que o fazer na rua,
como fazem todas as espécies
não civilizadas. Os cães não tiveram
os Gregos como antepassado, e isso nota-se.
Gonçalo M. Tavares, Uma Viagem à Índia, Caminho.