Canto V40De qualquer maneira, ninguém está assim tão vivo.O inexplicável não é, muitas vezes, o reduzido número de paixõespor dia, mas sim a razão por que não nos atiramos todos,um a um, a intervalos regulares, de um prédio alto.Não há duas pessoas que estejam ao mesmo tempono mesmo lugar: uma pessoa foge dasoutras. No autocarro, lê-se o jornal para não se olhar para o lado.O frio deixou de entrar pela janela — entra pelas notícias.Fecha-se o jornal; já podes levantar os olhos: felizmente, estás sozinho.41Os homens estão desolados e com insónias.Tomam comprimidos e dizemversos belíssimos, mas esquecem de regaras plantas. Todos os seres vivos morrerãose passares dia e noite a recitar versos,a corrigir pequenos problemas de dicção,a organizar, por fora, a História da beleza.É feio e ficou, eis o Homem.
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Pagas para ver ruínas e dizes: que belo!Da janela admiras o exercício explícito do cionos animais: nos cães abundamas semelhanças com a nossa espécie,mas ficas chocado. Quase fechas a janela.Não têm pudor, nem quartos baratosem pensões indecisas: os cães têm que o fazer na rua,como fazem todas as espéciesnão civilizadas. Os cães não tiveramos Gregos como antepassado, e isso nota-se.Gonçalo M. Tavares, Uma Viagem à Índia, Caminho.