sexta-feira, 31 de julho de 2009

Fragmenti veneris diei

«Lembro-me de ter lido também nas Selecções a história de um indivíduo que um dia, ao voltar do trabalho, sofre no meio da rua um ataque de amnésia e esquece quem é. O homem não leva consigo a documentação, motivo pelo qual vai pedir ajuda a uma esquadra onde, depois de um breve interrogatório que não proporciona nenhum resultado, o conduzem a um lugar cheio de gente com o mesmo problema. É uma espécie de bairro por onde as pessoas deambulam sem saber quem são. Fora disso, levam uma vida normal com intercâmbios económicos e sentimentais que reproduzem o mundo do qual provêm. Num dado momento o protagonista da história recupera a memória, mas não o diz a ninguém, pois descobriu que aqueles que a recuperam têm alta e são levados para o mundo anterior (e exterior), que era mais duro que o actual. A partir da situação em que está, cedo descobre que há mais pessoas a fingir que continuam amnésicas para não terem de assumir as fadigas da sua vida passada. Identifiquei-me muito com aquela personagem, pois também para mim teria sido um privilégio esquecer-me de quem era. Mais de uma vez, ao passar perto de uma esquadra, estive quase a entrar e dizer que perdera a memória, mas faltou-me a coragem.»
Juan José Millás, O Mundo, Planeta Manuscrito, pp. 140-141.