«Se a paixão do meu pai eram as ferramentas, a da minha mãe eram os medicamentos. As lojas de ferragens e as farmácias ficaram associadas na minha imaginação como se fossem instituições complementares. Não há nada comparável ao manuseamento de uns alicates, sobretudo sob a influência de alguns fármacos. Alguns prospectos avisam que não se deve utilizar máquinas sob o efeito de determinados medicamentos. Para mim é ao contrário. Durante anos fui incapaz de usar a caneta, que é o meu alicate, sem ter antes ingerido algum medicamento. Gostava de optalidon, que ainda existe, embora com uma composição diferente daquele tempo. A minha mãe foi dependente dele como o meu pai da chave de parafusos. O seu êxito devia-se a ter na sua composição uma pequena dose de barbitúrico. O barbitúrico, além das suas bondades químicas, gozava do prestígio de ser a substância escolhida pelas actrizes norte-americanas para se suicidarem. O mito. Nós, quando o ingeríamos, só nos suicidávamos um bocadinho, como correspondia a uma condição em que tudo era vivido a meias. A época em que mais os consumi coincide com a minha entrada na companhia Iberia como funcionário administrativo. Chegava aos escritórios às oito da manhã, tomava uma café de máquina, ia para a minha mesa e engolia com o primeiro gole dois optalidons (a sua eficácia era maior se os ingerisse com uma bebida quente). Dez minutos depois, instalava-se entre mim e a realidade uma espécie de nebulosa que facilitava a nossa relação. A realidade parecia menos afiada, perdia arestas, pontas, agressividade... Até o tédio adquiria a brandura de um colchão de penas. Sob os efeitos do optalidon, quando um chefe não olhava para mim, escrevia poemas com uma bic preta de ponta fina. Eis aqui a aliança entre a loja de ferragens e a farmácia, dois universos morais condenados a entender-se.»
Juan José Millás, O Mundo, Planeta Manuscrito, p. 25.